Por: Luciano Gallas | 08 Junho 2014
"Conforme os cientistas do Instituto Alemão para Ciências Econômicas, a Copa na Alemanha, em 2006, não gerou “nenhum impulso conjuntural relevante” e os efeitos econômicos “não tiveram dimensão perceptível na economia”. A conclusão deles foi: “Não houve aumento do consumo privado durante o período da Copa”, informa o jornalista e cientista político alemão.
“Diferentemente do Brasil, na Alemanha não houve protestos e a grande maioria dos alemães era a favor da Copa. Por que isso? Na Alemanha não houve remoções, não houve os custos sociais que ocorreriam caso fosse realizada uma tentativa política de reestruturação das cidades em torno do argumento da Copa, porque os estádios já estavam lá, e a infraestrutura também”, avalia o jornalista Christian Russau.
Para ele, nos dias atuais, a população alemã conseguiu se distanciar o suficiente do evento para fazer sua própria reflexão sobre a organização da Copa, a atuação da FIFA e os lucros históricos de 816 milhões de francos suíços obtidos pela entidade no período entre 2003 e 2006. “Somente agora, com todos esses relatos nos jornais sobre os absurdos da Copa no Brasil e no Qatar, as pessoas aqui na Alemanha estão formando um sentimento generalizado de repúdio à FIFA. Só que querem ver a Copa. Torcemos ainda para que um dia a FIFA não seja mais a entidade que organiza e controla a Copa. Queremos o futebol de volta!”, exalta.
Christian Russau cita as exigências feitas pela FIFA para a realização da Copa de 2006 nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, mas destaca também as iniciativas que se opuseram à barganha comercial que visava beneficiar a entidade e seus parceiros de negócios. Ele cita dois exemplos: “Próximo ao famoso estádio de Dortmund, no lugar chamado Westfalenhalle, há muitos anos existe um ‘U’ gigante em cima de um prédio fazendo propaganda para uma determinada marca de cerveja da região. Esse ‘U’ é um símbolo popular na cidade. E o que exigiu a FIFA? Para proteger o seu patrocinador de cerveja para a Copa, a FIFA mandou que o ‘U’ fosse retirado. A cidade de Dortmund recusou-se a isso e somente conseguiu a liminar jurídica argumentando motivos de patrimônio histórico. Em Colônia, a FIFA exigiu que uma parada de ônibus ao longo do estádio a qual leva o nome de uma fábrica fosse rebatizada por quatro semanas como ‘parada estádio da Copa’. Para isso, todos os folhetos da cidade com os roteiros de ônibus teriam de ser reimpressos. Mas a Prefeitura de Colônia não cedeu à pressão da FIFA”.
Christian Russau é jornalista alemão e ativista de direitos humanos, mora e trabalha em Berlim. Escreve para diversas mídias alternativas. Estudou Ciências Políticas e Filosofia na Freie Universität – FU (Universidade Livre), de Berlim, Alemanha, e na Universidade de São Paulo - USP, onde defendeu a tese Urteil und Gemeinsinn. Ein Beitrag zur Theorie des Politischen von Hannah Arendt (Juízo e bom senso. Uma contribuição para a Teoria da Política de Hannah Arendt).
Trabalhou oito anos no Centro de Pesquisa e Documentação Chile-América Latina (FDCL), em Berlim, entidade à qual continua ligado. Também é ativo na rede alemã de organizações de solidariedade ao Brasil, a KoBra - Kooperation Brasilien. Christian é um apaixonado por futebol, torcedor do Tennis Borussia - TeBe, clube da sexta divisão alemã e que pratica, na avaliação do jornalista, “um futebol autêntico”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que impacto a Copa de 2006 produziu sobre a Alemanha? A identidade do país após a Copa era a mesma de antes?
Christian Russau – O legado mais visível é que desde então os alemães parecem ter uma relação mais leve com seu próprio país. E, no exterior, aquela imagem dos alemães como pessoas sérias, não festivas, também mudou com as enormes festas daquele verão. Mas existem outros impactos, que não são tão visíveis, e são bastante preocupantes. A vigilância por vídeo do espaço público na Alemanha, por exemplo. Antes da Copa de 2006 só havia vigilância por vídeo em meia dúzia de cidades. Esse número pulou para 30 durante a Copa, e continua subindo. Embaixo do argumento de “segurança”, os políticos conservadores sempre introduzem algo dizendo que aquilo era necessário para o evento — e depois aquela “novidade” se torna a “regra”.
Outra questão são os absurdos direitos extraconstitucionais que o país ofereceu à FIFA — em todas aquelas leis para as quais o governo conseguiu o aval do parlamento durante as quatro semanas de futebol. Como a atenção midiática e da opinião pública se focalizava mais no futebol, para os políticos era o momento oportuno de sancionar leis que normalmente seriam altamente contestadas. Em meio a toda aquela euforia, passou quase despercebido o maior aumento do imposto sobre faturamento, equivalente ao ICMS brasileiro, na história da Alemanha: de 16% para 19%, aprovado em 16 de junho de 2006. Esse aumento em três pontos percentuais representou uma carga mensal alta que atingiu especialmente as camadas mais pobres da população, na comparação com os mais afortunados. Ou na véspera do clássico Alemanha x Argentina [disputado em 30-06-2006], quando o governo alemão aprovou uma série de leis para mudar impostos que, em condições normais, teriam sido motivo de debates acirrados na imprensa e pela opinião pública.
Ocorre que a Alemanha estava tomada pela febre do futebol. E para aumentar a tensão, no dia do jogo das quartas-de-final contra a Argentina, o parlamento alemão resolveu colocar em pauta nada menos do que a maior reforma da história da República Federal da Alemanha desde 1949. Todos os artigos da Constituição que tocam a relação entre governo central e estados da federação, bem como as respectivas atribuições, foram modificados. Segundo as transcrições do debate no Legislativo, os parlamentares pareciam muito apressados para terminar a votação ainda antes de o jogo começar.
IHU On-Line – No que diz respeito ao clima festivo, seria correto afirmar que a Copa do Mundo representou o momento de maior alegria e união dos alemães desde a queda do muro de Berlim, em 1989?
Christian Russau - Falando em termos de um clima geral festivo, sim. Ninguém esperava que nós, os alemães, de repente nos tornássemos anfitriões festejando aquele verão nas ruas, nos bares, nos botequins da forma que fizemos, mas com certeza não se pode subestimar a influência que teve o clima para isso — foi um verão excepcional, com um calor inesperado que durou do primeiro minuto até o apito final da Copa.
Houve aquele medo de que poderiam acontecer ataques racistas ou que os hooligans nazis poderiam causar tumultos, mas felizmente isso não aconteceu. Esse era um tema que se discutia muito antes da Copa. Havia o alerta que o conselho dos africanos de Berlim publicou, o alerta sobre as chamadas “no go areas”, áreas onde negros deveriam ir com maior cuidado ou mesmo não ir, por causa da alta probabilidade de ataques neonazis naqueles locais. Houve uma grande discussão sobre isso, os políticos afirmando “que isso na Alemanha não tem”, mas, ao final, como a imprensa continuou insistindo no tema, algumas cidades tomaram medidas para evitar os ataques nazistas e racistas.
IHU On-Line - Antes da Copa, os alemães eram conhecidos pela resistência em utilizar símbolos nacionais, como a bandeira, e em vestir as cores do país. Quais eram os principais motivos para isso? Há hoje uma espécie de orgulho nacional renovado?
Christian Russau - Desde o final da Segunda Guerra Mundial e da libertação da Alemanha do fascismo, qualquer insinuação de nacionalismo, patriotismo ou demonstração de orgulho nacional dos alemães era tida como vergonhosa. Qualquer gesto neste sentido era visto como suspeito. Para muitos, era assim: mostrar patriotismo por um país que causou duas guerras mundiais e que cometeu a pior barbárie da história, o holocausto, era inimaginável. Isso não quer dizer que não havia nacionalistas ou patriotas na Alemanha, só que eram uma minoria. Nas escolas, o hino nacional fazia parte do programa, mas quase nunca era cantado. Até os anos 1990, nem os jogadores da seleção cantavam o hino nacional antes dos jogos. Muitos deles mantinham a boca fechada. Bandeiras da Alemanha podiam ser observadas aqui e acolá durante os jogos da seleção nos estádios, mas muito raramente eram vistas nas ruas. O patriotismo alemão tinha praticamente desaparecido do país após o fim da Segunda Guerra Mundial. Eu pessoalmente diria, graças a Deus!
Só que, na Copa de 2006, de repente isso tudo mudou. Uma pesquisa feita naquele ano com alunos e alunas revelou que, por causa dos jogos, “passou a ser normal usar as cores nacionais para a maioria dos jovens”. Para muitos alemães e observadores de fora, aquilo foi uma surpresa; para alguns, chegou a ser um choque. Naquele verão da Copa de 2006, aparentemente voltou tudo aquilo que, durante quase 60 anos, ninguém na Alemanha parecia ter sentido falta: bandeirinhas nacionais nos carros e caminhões, nas sacadas e janelas... Para os alemães, tornou-se aparentemente normal ter uma relação “menos tensa” com a própria Alemanha. Naquele verão de 2006, o que se via era um patriotismo festeiro. Afinal, é algo que cada pessoa teria que decidir por si mesma. Eu pessoalmente nunca cantaria o hino alemão e não necessariamente vou torcer para a seleção alemã. Torço para um futebol lindo. Mas, em geral, se compararmos o grau de patriotismo na Alemanha com o de outros países, aqui ele ainda continua sendo menor.
IHU On-Line - Qual foi a relação entre investimentos públicos e investimentos privados na Copa de 2006? Qual foi o total de recursos investidos na Copa, oficialmente e extraoficialmente?
Christian Russau - Depois da Copa, o governo federal alemão lançou um relatório dizendo que os gastos públicos federais destinados diretamente à organização do evento somaram apenas 294 milhões de euros, e que um total de 530,7 milhões de euros em dinheiro público foi investido nos níveis federal, estadual e municipal para as reformas ou novas construções de doze estádios, os quais chegaram a custar um total de 1,4 bilhão de euros — o que equivaleria a dizer que o dinheiro público gasto representava um terço do total de custos do evento. Considero isto altamente duvidoso. Um montante de 3,7 bilhões de euros dos cofres públicos federais foram investidos na ampliação das autoestradas no país, como o governo mesmo registra em seu relatório final da Copa de 2006. Mas, o que diz o governo? “Não incluímos essas despesas no orçamento geral da Copa”. Por que não? Um colega jornalista, Jens Weinreich, dá a explicação: “A arte consiste em incluir o mínimo possível de custos no orçamento e indicar o máximo possível de gastos previstos como investimentos, não os ligando diretamente às Olimpíadas ou à Copa do Mundo. Assim, acaba-se chegando a um belo superávit nos respectivos orçamentos”.
Do outro lado vale também lembrar que é verdade ser difícil alocar exclusivamente no item Copa do Mundo projetos de infraestrutura financiados com recursos públicos, uma vez que na Alemanha ainda ocorre um verdadeiro boom de construção pós-queda do Muro. Os estados da antiga Alemanha Oriental continuam recebendo meios públicos para projetos de infraestrutura através do adicional de solidariedade cobrado nos impostos; Berlim ainda se encontra no boom imobiliário depois da queda do Muro, da unificação, da mudança da capital e do aumento de atratividade da cidade em termos mundiais. Mas quem sabe avaliar quanto os gastos em infraestrutura feitos antes do anúncio da decisão da FIFA de que a Alemanha sediaria a Copa de 2006 influenciaram nesta decisão? Quem sabe avaliar quanto alguns políticos sonharam com a Copa e encaminharam projetos de infraestrutura antes dessa decisão ser anunciada? Economistas alemães fizeram as contas em 2009 e descobriram que os gastos públicos em todas as cidades-sede da Copa de 2006, incluindo todas as medidas de infraestrutura, somaram cerca de 7 bilhões de euros. Mas ainda assim é difícil vislumbrar um limite claro entre investimentos feitos exclusivamente para a Copa ou para outros fins. Simplesmente não se pode medir isso.
IHU On-Line - Quais foram as principais obras realizadas para o evento? Como se deram as relações de trabalho na realização das mesmas? Qual era a origem dos operários?
Christian Russau - Dos 12 estádios, 7 foram renovados e 5 foram construídos, com o custo total que citei antes, de 1,4 bilhão de euros. Mas, de novo, não se pode atribuir isso exclusivamente às demandas e necessidades da Copa. Por exemplo, os times de Bayern München e Schalke 04 já tinham tomado a decisão de construir um estádio próprio bem antes da Copa. Também todas aquelas exigências de ter cadeiras nos estádios (e acabar com os espaços da Geral) foram estabelecidas pela UEFA já nos anos 1990 para os times que participam da Liga dos Campeões ou da, à época, Copa UEFA [hoje, Liga Europa]. Infraestrutura, como falei, é algo que está sendo feito desde a reunificação, em outubro de 1990. Então, não se pode atribuir isso diretamente à Copa ou não.
No começo dos anos 1990, muitos operários vieram de Portugal ou da Irlanda. Depois, de outros países mais, sempre conforme a situação econômica de cada época. Na União Europeia, existe a livre escolha de onde trabalhar. Mas, para evitar que haja concorrência no mercado da construção civil de quem trabalha por um salário ainda menor que os outros, os sindicatos estão na luta faz anos para que tenhamos na Alemanha também um salário mínimo fixo válido para todos os empregos. O novo governo acabou de decidir que teremos isso na Alemanha a partir de 2017. O que já existe são salários mínimos para alguns setores. Na construção civil, por exemplo, se paga atualmente 11,10 euros por hora.
IHU On-Line - A população alemã aprovava a realização do torneio antes do início do mesmo? Quem se posicionava de modo contrário à realização do evento? Houve manifestações?
Christian Russau - Diferentemente do Brasil, na Alemanha não houve protestos e a grande maioria dos alemães era a favor da Copa. Por que isso? Na Alemanha não houve remoções, não houve os custos sociais que ocorreriam caso fosse realizada uma tentativa política de reestruturação das cidades em torno do argumento da Copa, porque os estádios já estavam lá, e a infraestrutura também.
Em Berlim houve um protesto de rua contra o Ministério de Relações Exteriores, que se negou a dar vistos para jogadores de rua de Gana e da Nigéria, que foram convidados a participar de um evento patrocinado pelo próprio governo federal: a copa do Streetfootballworld, cujo objetivo era trazer times juvenis de diversos países para campeonatos de futebol de rua na Alemanha. Essa era a ideia. Mas os pedidos de visto das equipes de Gana e da Nigéria foram recusados. Segundo o ministro responsável, os menores sonhavam com uma carreira profissional de jogador de futebol no exterior [o que, na leitura do ministro, poderia incentivá-los a não voltar para os seus países de origem] — e aí os vistos foram negados. Altamente discriminatório. Qual o jovem de qualquer país que joga futebol de rua que não sonha com uma carreira profissional? Infelizmente, na Alemanha há ainda muito racismo — especialmente quando se fala de um racismo das instituições, que tenta se disfarçar.
Contra o racismo houve uma ação muito bacana na abertura da Copa do Mundo da Alemanha: era de um grupo de brasileiros, o Coletivo 3 de Fevereiro. Na fanfest, no meio de um milhão de pessoas, eles conseguiram passar pelos seguranças com uma bandeira antirracista de 20 metros por 15 metros com a frase “Know Go Area”, fazendo alusão ao alerta do conselho de africanos de Berlim sobre os “no go areas”. Os seguranças acharam que era uma enorme bandeira do Brasil e, quando a TV mostrou as imagens da multidão festiva lá na fanfest, de repente via-se aquela enorme bandeira desmascarando o racismo alemão — e o mundo inteiro está assistindo. Muito bacana.
Mas, em geral, quase não houve protestos contra a Copa. O que houve, sim, eram manifestações ligadas a um outro evento: os Jogos Olímpicos. Quando Berlim candidatou-se, entre 1991 e 1993, para os Jogos Olímpicos de 2000, formou-se um enorme movimento contra aquele megaevento, porque as pessoas temiam — com toda razão — todos aqueles processos de reestruturação da cidade que acompanham esses megaeventos.
E em Berlim, com a queda do muro e a reunificação da cidade, já vivíamos um enorme processo de reestruturação. Então, para aquele movimento “Berlin Nolympic City”, que era composto por pessoas dos mais diversos segmentos da sociedade, era óbvio que se deveria lutar contra a candidatura de Berlim para os Jogos Olímpicos de 2000. Com muitas manifestações, atividades e contrapropaganda, o movimento conseguiu abalar no exterior e no próprio comitê olímpico a imagem de uma Berlim feliz por ser cidade-candidata aos Jogos Olímpicos.
Como também os protestos em Munique no ano passado e o plebiscito de lá mostraram, a população está contra a cobiça do Comitê Olímpico Internacional - COI. Este sentimento as pessoas têm também em relação à FIFA, só que há uma diferença: contra a Copa na Alemanha ou a FIFA, ninguém foi a uma manifestação; contra os Jogos Olímpicos e o COI, sim. Isso tem a ver com a maior descentralização dos eventos da Copa, o que não acontece com os Jogos Olímpicos — onde praticamente tudo se passa em uma única cidade.
IHU On-Line - A Copa da Alemanha representou uma experiência inclusiva coletiva para a população ou foi um evento direcionado a uma minoria?
Christian Russau - Era difícil conseguir ingressos para os jogos, mas isso era mais algo por causa dos milhões de fãs do mundo todo que queriam assistir às partidas e nem tanto por causa do valor dos ingressos. As cidades organizaram grandes fanfests, com mais de um milhão de pessoas na rua, como ocorreu em Berlim, mas o que era muito maior (e muito mais bonito) eram as multidões de pessoas nos botequins, nos biergärten alemães, as pessoas que colocaram a TV e algumas cadeiras e sofás na rua para assistir aos jogos, com cerveja barata do supermercado e curtindo o verão que parecia não acabar nunca.
IHU On-Line - Houve alguma vantagem econômica ao país pela organização do torneio? O lucro econômico foi repartido por quem?
Christian Russau – Antes da Copa, o governo alemão estimou um aumento do consumo em torno de 10 bilhões de euros durante o evento, o que representaria 0,5% do Produto Interno Bruto - PIB. Nem pensar! Os dados macroeconômicos eram — segundo pesquisadores — muito menores. Conforme os cientistas do Instituto Alemão para Ciências Econômicas, a Copa não gerou “nenhum impulso conjuntural relevante” e os efeitos econômicos “não tiveram dimensão perceptível na economia”. A conclusão deles foi: “Não houve aumento do consumo privado durante o período da Copa”.
Em 2004, a Agência Federal para Trabalho e Emprego previa “100 mil novos empregos”. Dois anos mais tarde, em janeiro de 2006, a mesma agência já falava em apenas 50 mil empregos. E que tipo de emprego era esse? Segundo o próprio ministério, eram “em sua maioria empregos no setor de venda de refeições, em bares ou como segurança” — portanto, de curto prazo. Os únicos setores que aumentaram significativamente o volume de vendas foram três: a venda de equipamentos eletrônicos aumentou 5,2%, ou 227 milhões de euros, crescimento, em grande parte, atribuído aos novos televisores de tela plana; o setor hoteleiro do país recebeu 10% a mais de turistas do que o previsto, o que forneceu receitas extras de 220 milhões de euros; no setor de restaurantes e bares, não foram exatamente os restaurantes que ganharam, porque as vendas de refeições cresceram só 0,3% — o que cresceu drasticamente foi a venda de bebidas, que subiu 4,7%.
Afinal, a indústria que mais lucrou com a Copa na Alemanha foi a das cervejarias. E a FIFA, claro. Esta entidade de “utilidade pública”, sediada na Suíça, faz balanços de cada Copa do Mundo em períodos de quatro anos. Esses períodos costumam começar no dia 1º de janeiro, depois da realização da última Copa, e vai até 31 de dezembro do ano da Copa seguinte. O resultado, como ela mesma declarou: “No período de 1º de janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006, a FIFA contabilizou receitas totais no valor de 3,238 bilhões de francos suíços, contra despesas totais de 2,422 bilhões. Disso resulta um resultado líquido de 816 milhões de francos suíços nos quatro anos. A FIFA fechou o período 2003–2006 com um resultado recorde de 816 milhões de francos. O capital próprio fechou 31 de dezembro de 2006 com 752 milhões de francos suíços, o maior valor nos 103 anos de história da FIFA”.
IHU On-Line - A FIFA solicitou privilégios e direitos especiais durante a realização da Copa? Quais foram atendidos? Quais foram negados?
Christian Russau - No dia 6 de julho de 1999, o governo social-democrata e verdes entregou à FIFA uma longa lista de garantias governamentais, anunciando medidas, assegurando amplos privilégios à associação futebolística, seus patrocinadores e parceiros, bem como aos jogadores das seleções de outros países e seus assessores: isenções fiscais, adaptações às taxas alfandegárias e modificações de leis para garantir os privilégios da FIFA. Somou-se a isto uma série de garantias relativas à modernização de estádios e a reivindicação da FIFA de reservar um raio de cerca de um quilômetro em torno dos estádios para que os direitos sobre marcas fossem adaptados às necessidades da entidade. Assim, os estádios de futebol se tornaram territórios licenciados pela FIFA e em torno deles só poderia haver publicidade e produtos dos seus parceiros comerciais. Aquela área de exclusividade para os patrocinadores oficiais da Copa não se limitou apenas aos estádios e arredores, mas a todos os lugares no país inteiro onde houvesse comemorações de torcedores e eventos relacionados à Copa.
Nos estádios, em vez da marca de cerveja preferida, os torcedores foram obrigados a tomar a cerveja americana Budweiser. O nome Budweiser na Europa normalmente está associado unicamente à cerveja original com este nome, a Budweiser da República Tcheca. Mas, como a Anheuser-Busch, dona da marca Budweiser, é patrocinadora da FIFA, pode vender a marca dela exclusivamente nos estádios com o nome Anheuser-Bud, uma cerveja que aqui na Alemanha quase ninguém bebe. Mas aí houve outros problemas, que a própria FIFA causou: próximo ao famoso estádio de Dortmund, no lugar chamado Westfalenhalle, há muitos anos existe um “U” gigante em cima de um prédio fazendo propaganda para uma determinada marca de cerveja da região. Esse “U” é um símbolo popular na cidade. E o que exigiu a FIFA? Para proteger o seu patrocinador de cerveja para a Copa, a FIFA mandou que o “U” fosse retirado.
A cidade de Dortmund recusou-se a isso e somente conseguiu a liminar jurídica argumentando motivos de patrimônio histórico.
Em Colônia, a Fifa exigiu que uma parada de ônibus ao longo do estádio a qual leva o nome de uma fábrica fosse rebatizada por quatro semanas como “parada estádio da Copa”. Para isso, todos os folhetos da cidade com os roteiros de ônibus teriam de ser reimpressos. Mas a Prefeitura de Colônia não cedeu à pressão da FIFA.
Com tudo isso, a imagem negativa da FIFA na opinião pública cresceu ainda mais. As pessoas começaram a se convencer de que a FIFA é uma organização funcionando como uma máquina de dinheiro. Até o prefeito de Munique, Christian Ude, chegou a criticar publicamente os “acordos leoninos” da entidade.
IHU On-Line - Quem ganhou com a Copa de 2006? Qual é o sentimento dos alemães hoje em relação à FIFA?
Christian Russau - A FIFA fez aquele lucro enorme de 816 milhões de francos suíços. Mas somente hoje em dia os alemães estão começando a ter uma reflexão sobre a FIFA. Somente agora, com todos esses relatos nos jornais sobre os absurdos da Copa no Brasil e no Qatar, as pessoas aqui na Alemanha estão formando um sentimento generalizado de repúdio à FIFA. Só que querem ver a Copa. Torcemos ainda para que um dia a FIFA não seja mais a entidade que organiza e controla a Copa. Queremos o futebol de volta!
(Por Luciano Gallas)
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Queremos o futebol de volta! Por um futebol sem o controle da FIFA. Entrevista especial com Christian Russau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU