19 Mai 2014
"A inteligência coletiva é mais eficaz que a soma das inteligências individuais. O mundo não quer mais eleger alguém que escolha por ele, mas quer participar da escolha, porque agregar inteligência humana e artificial é muito mais eficiente do que um grupo eleito para decidir por nós", afirma o sociólogo.
"Como compreender uma estrutura não estruturada? Uma organização desorganizada? Um movimento que parte da virtualidade das conexões da web em direção às ruas apenas temporariamente, mas que logo se dissolve? Um grupo sem rostos ou líderes, sem propostas estruturadas e, mais do que isso, sem o desejo de participar do teatro político mundial seguindo as mesmas regras dos jogadores veteranos?”
Para Massimo Di Felice, sociólogo e professor da Universidade de São Paulo - USP, a dificuldade em compreender (ou mesmo de aceitar) estas mobilizações construídas em diálogo com tecnologias de conectividade – o chamado Net-ativismo - vem da manutenção de uma lógica da política moderna, predominantemente europeia e ocidental. Para ele, ao considerar este tipo de ação política, devemos compreender outro tipo de ação “cuja qualidade deve remeter a uma ecologia que associa atores humanos e não humanos”.
A lógica ocidental está tão entremeada em nossa sociedade que, mesmo com o rompimento de paradigmas positivistas e a emergência de uma visão sistêmica, ainda há a insistência na visão dualista da relação entre sujeito e objeto, sujeito e natureza ou mesmo sujeito e técnica. Di Felice sugere a assunção de uma lógica conectiva, que compreenda a totalidade não como a soma de individualidades em relação, mas as próprias relações – ou rede de redes – como condição de existência. “Heidegger dizia que a essência do humano é a técnica, mas também pode-se dizer, de maneira não contraditória, que a essência da técnica é o humano”
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Di Felice explora sua visão sobre net-ativismo, a mediação das relações humanas e políticas pela tecnologia e os fundamentos de uma visão pós-política – tanto a partir de outro tipo de participação cidadã quanto pela consciência das decisões não apenas a nível humano, mas de toda a biosfera. “Não é apenas o modelo econômico que determina o nosso impacto ambiental, mas um problema filosófico mais profundo, baseado nesta separação entre humano e mundo; nesta narrativa que pensa o humano como uma espécie separada do resto da realidade.”
Massimo Di Felice é graduado em Sociologia pela Università degli Studi La Sapienza, de Roma, possui doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. Professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, coordena o Centro de Pesquisa Atopos (ECA/USP), que desenvolve estudos sobre as transformações sociais promovidas pelo advento das novas tecnologias comunicativas digitais.
É professor visitante da Libera Università di Lingue e Comunicazione (IULM) de Milão e autor de ensaios e artigos editados na Itália em revistas acadêmicas tais como La Critica Sociológica e Agalma.
No Brasil, coordena a coleção Era Digital, na qual é organizador das obras Do público para as redes (2008) e Pós-humanismo (2010), e a coleção Atopos (Editora Annablume), na qual publicou os livros Paisagens pós-urbanas: O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (2009) e Redes digitais e sustentabilidade: As relações com o meio ambiente na época das redes (São Paulo: Annablume, 2012).
O pesquisador esteve na Unisinos na última quarta-feira (14), ministrando a palestra Os efeitos pós-políticos da emergência do Net-ativismo, parte do III Seminário preparatório para o XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os efeitos pós-políticos da emergência do Net-Ativismo?
Massimo Di Felice – Primeiramente, é importante dizer que o que chamamos de net-ativismo é o resultado de uma prática de protagonismo e ativismo – isto é, de mobilização de pessoas – construída em diálogo com tecnologias de conectividade. Isso significa o agir não só pelos indivíduos, mas por indivíduos conectados a dispositivos de conexão e banco de dados (big data). Há, portanto, a formação de outro tipo de ecologia, que reúne ao mesmo tempo indivíduos, informações, circuitos informativos, banco de dados e territórios (territorialidades). A primeira coisa a ser sublinhada é que não estamos falando de uma ação política como podemos pensá-la, imaginá-la ou descrevê-la segundo a tradição dos estudos políticos ou das ciências sociais de outra época. Estamos falando de outro tipo de ação, cuja qualidade deve remeter a uma ecologia que associa atores humanos e não humanos.
A partir deste primeiro esclarecimento, o net-ativismo - termo que utilizamos para descrever esse tipo de interação - está se conotando como uma nova prática de protagonismo no mundo inteiro. Não é algo específico de um país ou de outro, mas é toda uma nova forma de participação que está se dando através da interação fértil entre circuito, dispositivo e pessoa. Isso conota um novo tipo de cidadania e, também, um novo tipo de participação, cujas características podemos destacar em alguns elementos:
Primeiro, o anonimato. São movimentos que têm uma grande ênfase em um protagonismo individual. Que não têm líderes ou criadores, mas que tomam forma no decorrer das atividades e, neste interim, passam a assumir bandeiras ou, mais do que bandeiras, indicações específicas que não estavam previstas no começo. Portanto, pelas características de conectividade, são movimentos que não estão vinculados a alguma entidade.
Outro elemento importante é que eles não podem ser inscritos na lógica ideológica da modernidade. Não são de esquerda nem de direita e, portanto, não possuem nem mesmo a ambição da formação de um movimento duradouro institucional, como um partido político ou algo do gênero. São movimentos que se associam e desassociam, isto é, são temporários. Ou conforme Hakim Bey (1), são libertações temporárias de espaços e de pessoas. Expressões de uma forma orgástica, no sentido grego do termo ὄργια (orgia), de conexão de indivíduos em volta de uma temática comum momentânea.
O terceiro elemento é que os movimentos estão fora da lógica, no sentido do pós-político, da arquitetura política do ocidente. Esta, da pólis grega até a modernidade, é baseada em alguns elementos: a eleição de representantes (a democracia representativa) e a disputa pelo poder, com a alternância de governos. Esses movimentos estão fora dessa lógica. Não disputam eleições, não elegem ninguém, mas estão ligados a uma forma de interação tecnológica, que exprime um tipo de ecologia social distinta da tradicional.
Assim, me parece que há alguns elementos muito importantes que nos fazem pensar não somente a necessidade de pensar as categorias políticas, mas também a qualidade da ação e a ecologia do social.
IHU On-Line – Muito se discute sobre a questão pós nas humanidades. Quais características permitem se pensar em uma pós-política? Como ela se insere na pós-modernidade?
Massimo Di Felice – Como sempre, o termo “pós” é ainda muito moderno, não é? Ao darmos ao termo um sentido evolutivo, estaremos ainda na modernidade. Devemos dar a este “pós” um sentido não diacrônico, de superação, mas sim um sentido atópico – isto é, de deslocamento em outra direção, que não é necessariamente um processo evolutivo. Assim, o pós-moderno não é a transformação do moderno, mas outra forma de ler a pós-modernidade naquele período histórico. Da mesma forma, na minha interpretação, o pós-político não é a evolução da democracia ou da política, mas outra forma de pensar o público, a cidadania e as relações.
Esclarecido isso, há vários elementos que dialogam com a pós-modernidade. Em particular, esse desfazer da construção da linguagem moderna europeia das ciências sociais positivistas sobre o mundo. Por exemplo: a distinção sujeito–objeto; pensar a ação do sujeito como uma ação do sujeito racional direcionada ao mundo externo; a distinção entre o sujeito e a técnica; a relação entre sujeito e tecnologia. Todas essas são questões que a pós-modernidade, de certa forma, põe em discussão e obviamente a pós-política está ligada a isso. Mas, em específico, a pós-política pode ser uma forma de pensar o político em uma dimensão de hipercomplexidade. Algo parecido com o que Isabelle Stengers define como cosmopolítica.
A cosmopolítica seria esta forma de pensar o político em um contexto de hipercomplexidade, um contexto de uma rede de redes, no qual se considera o agir não só pelos humanos, mas também o agir do dispositivo, da tecnologia, do banco de dados. Isto é, a construção de uma nova arquitetura do social que inclua, além dos humanos, também os elementos não humanos - entendendo como elemento não humano toda a biosfera. Neste sentido, é a superação do conceito de política moderna que era limitado ao parlamento; um parlamento de pessoas, no qual os indivíduos elegiam alguém que os representava e administrava a cidade ou o Estado-Nação a partir da exigência dos humanos.
Hoje, com as redes e a conectividade, temos a consciência de que existem outros atores, e que nossas ações impactam também na biosfera. E nela não existe a ideia de uma ação direcionada ao externo. Na biosfera não há externalidade e, portanto, nossas ações (políticas, econômicas, de desenvolvimento, de consumo, etc.) têm impacto imediato na biosfera, que, por sua vez, vai impactar na nossa saúde. Percebemos isso em termos de qualidade do ar, aquecimento global, diminuição de biodiversidade e outros.
Esta concepção da ação nesta outra ecologia cosmopolítica e complexa constitui em pensar que o nosso parlamento deveria ser composto não só pelas pessoas, mas pela biodiversidade inteira. Pelos animais, pelas plantas, pelas florestas, pelas matérias-primas. Existe hoje uma percepção que vem desta alta conectividade que os dispositivos tecnológicos estão alcançando, nos dando a percepção clara não só do impacto da nossa ação, mas também da existência de um outro tipo de discussão no qual deve ser inserido o elemento não humano. Neste sentido, seria pensar um tipo de política que não seja a da pólis, que não esteja limitada ao debate das ideias e das opiniões entre os humanos, mas que seja uma política mais complexa, que introduza o não humano no ambiente das decisões e que passe a ter uma visão complexa do significado da ação e do fazer humano.
IHU On-Line – Ao pensar na constituição de um novo tipo de ecologia, a partir da sinergia e da interação dos diversos actantes, como encarar a relação do ser humano com a técnica? Até que ponto realmente esta dimensão ecossistêmica não permanece sendo opositiva e separatista?
Foto - Andriolli Costa
Massimo Di Felice – Esta é uma pergunta muito profunda e de fato é aquela que devemos nos pôr. O que devemos pensar, de fato, é primeiramente a redefinição do conceito do humano. A definição ou a ideia do humano criada pelo ocidente – e quando falo em ocidente, obviamente estou falando de parte do ocidente, daquela que tradicionalmente estudamos, que começa da Grécia antiga até a Modernidade madura –, seja pelo colonialismo, seja pela grande divulgação das filosofias ocidentais, acaba influenciando boa parte do mundo, se não o mundo inteiro. No interior dessa cultura, que obviamente não é homogênea, mas, digamos, na síntese que normalmente se faz sobre a cultura ocidental, a ideia do humano, desde Platão e Sócrates até Kant e a modernidade, é a ideia de uma individualidade ou de uma espécie não somente superior às demais, mas também autopoiética.
O mundo das formas, dos mitos, da narrativa europeia ocidental sobre o humano é o autopoietismo, isto é, a possibilidade de pensar que o humano se transforma no tempo e muda a si mesmo a partir de uma elaboração, seja de ideias ou atividades próprias, internas, sem dependência com o mundo externo. Assim, a tecnologia não teria um papel nesta transformação do humano, o meio ambiente também não. Este é o mito do sujeito autopoiético.
Esta concepção do humano separado, obviamente, cria uma dialética entre o sujeito e o objeto, o sujeito e o mundo, o sujeito e a natureza, o sujeito e a técnica, que são o fundamento da crise não só do pensamento, mas também da crise ecológica contemporânea que condena a espécie humana ao desaparecimento. Não é apenas o modelo econômico que determina o nosso impacto ambiental, mas um problema filosófico mais profundo, baseado nesta separação entre humano e mundo; nesta narrativa que pensa o humano como uma espécie separada do resto da realidade.
Para, portanto, pensar uma dimensão ecossistêmica ou ecológica distinta, devemos compor outras palavras. Devemos pensar o humano de outra maneira. A etimologia da palavra humano vem de húmus, que em latim significa “fertilidade”. A palavra é utilizada na biologia para descrever os resíduos do solo que o tornam fértil. Se pensarmos o humano a partir do húmus, já nos abrimos para uma perspectiva menos opositiva. Mas, de fato, a perspectiva ecológica pode ser ainda positiva se pensarmos apenas em termos agregativos, como pensa Latour, por exemplo, em que atores diferentes se agregam e formam uma ecologia, mas em que cada um continua mantendo a própria identidade separada. Os animais de um lado, vegetais de outro, bem como os minerais, o humano, a tecnologia, etc. Aí ainda estaremos em uma lógica agregativa que não supera esta distinção opositiva.
A superação desta distinção pressupõe, primeiro, uma nova etimologia, uma nova filosofia e uma nova lógica que eu defino como “lógica conectiva”. Esta é de uma complexidade em que cada elemento não existe em si, mas encontra a própria dimensão a partir da conexão com os demais. Assim, o humano se torna humano a partir de sua conexão com a tecnologia, com a biodiversidade e com o ambiente que o forma e o torna, em determinado período, uma determinada espécie ou determinada entidade. Esta entidade, obviamente, está sujeita continuamente a transformações e a novos estatutos de sua própria espécie, a partir de outros tipos de conectividade.
Nessa perspectiva, podemos começar a pensar um tipo de complexidade que não reduz o indivíduo, não dilui a especificidade em uma complexidade anônima, nem é, ao mesmo tempo, um agregador de individualidades. É uma forma que está na lógica da conectividade que encontra o surgimento de especificidades a partir da conexão de vários elementos. Algo próximo do que Heidegger define como ontologia relacional. Quando ele define a ontologia relacional, pensa o ser com a interação entre quatro elementos: o céu, a terra, os divinos e os mortais, onde cada elemento é incutido no ser e encontra nele sua própria definição.
Penso que esta é uma grande questão, fundamental para passarmos de um tipo de humanidade poluidora, antiecológica, opressora e negativa para outro tipo de humanidade, conectiva e, portanto, mais inteligente.
IHU On-Line – Ao pensar a técnica como uma ação humana, que com sua naturalização faz com que o ser humano passe a servi-la, e não o contrário, a mediação das relações humanas e políticas pela técnica esvazia ou supera estas mesmas relações?
Massimo Di Felice – Não sei se esvaziar ou superar é correto. A mediação humana sempre foi tecnológica. Isto é, a especificidade da interação do ser humano com o mundo sempre se deu através da técnica, dando a esta um significado mais amplo que o instrumental. A escrita é uma técnica, o alfabeto fonético é uma tecnologia de armazenamento e transmissão de informações.
A técnica não é nem apenas uma criação humana, nem algo externo ao humano. A concepção que devemos utilizar ao pensar a técnica deve ser conectiva. Ou seja, o humano não existe sem a técnica, e esta, ao mesmo tempo, oferece ao humano a possibilidade de exercer a sua humanidade. Neste sentido, a técnica não é externa ao humano, assim como a biodiversidade também não é. Então voltamos à necessidade de superar o conceito tanto de humano quanto de técnica. Afinal, ao pensar em “humano” e “técnica”, estamos pensando em duas realidades, duas entidades separadas. Que é como a filosofia pensou. Hoje devemos pensar em termos que associem o que a filosofia separou.
Michel Puech fala de homo sapiens tecnologicus que, para ele, seria um novo tipo de espécie. Uma espécie distinta do homo sapiens, pois se desenvolve e se transforma em relação com a técnica, ele fala de coevolução entre humano e tecnologia. Heidegger dizia que a essência do humano é a técnica, mas também se pode dizer, de maneira não contraditória, que a essência da técnica é o humano.
Isso é muito visível em nossa relação com a tecnologia digital. Um dispositivo não produz nada a menos que nos conectemos a ele. Não somente isso, mas a qualidade da conexão depende de nós e do conjunto de disponibilidades que o dispositivo oferece. A complexidade da relação entre o humano e a técnica não pode ser manifestada de forma dualista. No ensaio sobre a técnica, Heidegger escreve isso muito bem. Diz que, se continuarmos a pensar a relação com a técnica em termos dualistas e opositivos, não teremos outra possibilidade: ou é o humano que domina a técnica ou é a técnica que domina o humano. Isto é, a relação sujeito–objeto leva a uma lógica de dominação.
Nós devemos substituir esta lógica por uma lógica conectiva, ao pensar que nem a técnica é externa ao humano e tampouco o humano é externo à técnica. Portanto, cada um encontra na interação com o “outro”, que não é outro, a sua própria essência. Devemos pensar um conceito de humano ecológico, em que o humano é composto por elementos biológicos, naturais (proteínas, células, etc.) e elementos também minerais. Se sairmos da ideia do sujeito e começarmos a pensar como uma rede, veremos que a tecnologia faz parte do nosso corpo, de nossa especificidade. E isso é o que nos torna humanos.
Falávamos da leitura. Ela é uma tecnologia, mas como poderíamos pensar nosso conhecimento sem a leitura? A leitura é um fundamento tecnológico que contribui para a criação de nossa inteligência. Então, nossa inteligência não é algo que está apenas em nosso cérebro, mas algo que deve ser exercitado e treinado através de várias funções, entre elas a leitura. O que McLuhan chamava de “homem tipográfico” é o homem que passa a conhecer e interagir com o mundo através da tecnologia – no caso, a mídia livro. Hoje estamos agregando, ao lado desta tecnologia, a criatura cognitiva, que nos dá a possibilidade de construir também outros tipos de conhecimentos inteligentes.
IHU On-Line – As manifestações do ano passado foram um marco na historiografia brasileira, articulando-se mundialmente com um espírito de insatisfação que percorre sociedades de todo o mundo e denotando uma crise geral nas instituições (governos, bancos, mídia, etc.). Pode-se entender que a nova ecologia que vem se estabelecendo, ao construir uma nova relação de proximidade e pluralidade de voz, “dessacraliza” as instituições a partir de uma ótica mais cínica e iconoclasta? Ou são outros os motivos que levam a esta visão mais crítica?
Massimo Di Felice – Com certeza dessacraliza, e isso dando ao termo “sagrado” um sentido não etimológico. Obviamente pode ser visto como uma operação mais cínica, mas também como uma operação emancipadora, ou seja, da população se livrar de instituições ineficientes, que gastam dinheiro público e oferecem serviço escasso. Nesse sentido, no caso do Estado, hoje teríamos tecnologias de administração das coisas públicas melhores que o Estado moderno, com a organização em rede, com o acesso de informações, com a possibilidade de disseminação de informações, possibilitando uma forma de administração mais aberta e colaborativa e, sobretudo, mais inteligente e eficaz. Deste ponto de vista, esses movimentos estão de fato dessacralizando essas instituições.
Por outro lado, é também uma exigência tecnológica, que faz tornar obsoleta ou inadequada a possibilidade ou a limitação que a arquitetura da democracia europeia ocidental produzia, que é a lógica da representatividade a qual limita a participação do cidadão à eleição a cada quatro anos. Nós, hoje, temos tecnologia que nos permite não somente opinar em tempo real a custo zero, mas que possibilitaria até mesmo fazer eleições todos os dias. Ou, pelo menos, debater questões de seu interesse todos os dias por meio de tecnologias de conectividade e pela possibilidade de administrar uma grande quantidade de informações, através do banco de dados e computadores, acesso a todas as informações. É o que se chama de sociedade dos amadores, nós não precisamos de especialistas para tomar as decisões por nós. A população é muito bem informada, pode se tornar ainda mais informada com a tecnologia e as redes de conhecimento.
Existem redes de cidadãos que estão há muito tempo se organizando, produzindo conhecimento para resolver problemas. Talvez, nesse sentido, a mediação política se tornou obsoleta por vários motivos. Primeiro porque cria uma forma de participação limitada, com a possibilidade de exercer sua cidadania de 4 em 4 anos. Segundo porque, como se revela na maioria dos casos, esses eleitos são incompetentes. Ou ao menos têm uma inteligência muito inferior à inteligência coletiva, que pode ser agregada à tecnologia em rede. Então, por que devemos delegar a alguém escolher para nós?
Outra grande crítica à instituição está no fato de que a inteligência coletiva é mais eficaz que a soma das inteligências individuais. O mundo não quer mais eleger alguém que escolha por ele, mas quer participar da escolha, porque agregar inteligência humana e artificial é muito mais eficiente do que um grupo eleito para decidir por nós.
IHU On-Line – Frente à iminência de um grande evento como a Copa do Mundo, que mais do que nunca vem sendo questionado devido às notícias constantes de ingerência e promiscuidade com os gastos públicos no superfaturamento de obras inconclusas, você acredita que poderemos ver uma nova articulação de grupos sociais igualmente representativos como os de junho passado?
Massimo Di Felice – Tomara, mas agora há um elemento muito triste que deve ser destacado. Houve uma repressão violentíssima da polícia, uma barbárie que levou a torturas, espancamentos... Falo isso por experiência até como professor, tenho alunos que passaram por isso. Há um clima, de fato, ameaçador. Outro dia houve uma manifestação em São Paulo que deveria fazer um trajeto até o estádio novo do Corinthians – um estádio bastante polêmico, não apenas na questão do desvio do dinheiro público, mas para as várias mortes e acidentes de trabalhadores que perderam a vida durante a construção – e a manifestação não pôde ir adiante, pois tinham avisado a torcida do Corinthians, que estava fora do estádio esperando os manifestantes para o enfrentamento.
Estava neste nível de organização da repressão muito articulado, estruturado e que, de fato, tirou essa espontaneidade dos movimentos e transformou a atividade de rua em conflito violento. Uma verdadeira guerra. A possibilidade de ir para rua se manifestar durante o jogo da copa do mundo significa enfrentar o exército e, portanto, ir numa expectativa de guerrilha. Aí não seria uma manifestação de rua de protesto, mas uma ação de guerra, o enfrentamento ao exército. E isso foi determinado pela escolha política do governo, que decidiu enfrentar e reprimir esses movimentos. Nesse sentido, espero manifestações em rede e presenciais, mas penso, sobretudo, qual será o impacto disso para este desvio que os movimentos foram levados a ter por esta repressão brutal.
IHU On-Line – Ao pensar a “tomada coletiva da palavra”, nos termos de Vattimo, para vislumbrar a superação dos mediadores tradicionais, quais os perigos da remediação dos conteúdos para espalhar palavras de intolerância ou estímulo à violência (como as páginas e grupos de “justiceiros” no Facebook)?
Massimo Di Felice – A realidade humana é complexa e as redes exprimem essa complexidade da totalidade humana, e obviamente podem surgir mediadores que levam ou incitam a comportamentos violentos e agressivos. Isso é uma possibilidade, e, no caso que você citou, levou à morte de uma pessoa e pode levar a coisas parecidas. Mas ao mesmo tempo, como é próprio da condição humana, a rede pode oferecer formas de difusão de conhecimento, acesso às informações e, consequentemente, a possibilidade de o indivíduo se emancipar das próprias tendências negativas através do conhecimento, ter capacidade de encarar de uma forma mais inteligente as problemáticas sociais. Não é possível determinar a identidade da rede, ela se torna no que os diversos actantes conectados vão transformá-la. Não podemos culpar a tecnologia do Facebook pelo linchamento. Embora ela tenha colaborado, isso não é uma causa e efeito. Se observarmos redes de criminosos, eles a utilizarão para realizar crimes; em redes de estudantes, as utilizarão para fazer pesquisa.
A rede é conectiva e, portanto, não é a solução dos problemas da humanidade, mas é uma possibilidade a mais de criar uma inteligência coletiva, como chama Pierre Levi, ou uma inteligência complexa que integra, além dos humanos, os outros elementos que compõem a biodiversidade; portanto, possibilita uma forma de interação, escolha, decisão complexa, levando em conta muito mais variáveis que a política e a forma das escolas tradicionais que o homem moderno ocidental desenvolveu.
IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?
Massimo Di Felice – Quero acrescentar que, ao se falar em net-ativismo e pós-político, falamos de uma outra ecologia do social e, consequentemente, de uma transformação muito profunda, não apenas da esfera do político, mas da esfera do social e da mesma esfera do humano em relação à tecnologia. Portanto, devemos ter a consciência de que as transformações que estamos enfrentando em nossa contemporaneidade são, de um lado, muito difíceis, porque pressupõem uma transformação filosófica profunda. E, por isso mesmo, são muito atrativas, porque nos colocam numa condição bastante desconfortável de um lado e bastante ambiciosa do outro, fazendo-nos repensar categorias e conceitos consolidados desde muitos séculos.
Notas:
1.- Hakim Bey: É o pseudônimo de Peter Lamborn Wilson historiador, escritor e poeta, pesquisador do Sufismo bem como da organização social dos Piratas do século XVII, teórico libertário cujos escritos causaram grande impacto no movimento anarquista das últimas décadas do século XX e início do século XXI. Seu livro T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária escrito em 1985 foi traduzido para vários idiomas sendo lido no mundo todo. Nele, a partir de estudos históricos sobre as utopias piratas, descreve a criação e propagação de espaços autônomos temporários como tática de resistência e esvaziamento do poder. (Nota da IHU On-Line)
(Por Andriolli Costa)
Veja também:
A fonte das duas primeiras imagens acima, respectivamente, é netativismo.wordpress.com e www.immobilia-re.eu
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Pensamento em rede. Net-ativismo e lógica conectiva nas configurações da pós-política. Entrevista especial com Massimo Di Felice - Instituto Humanitas Unisinos - IHU