24 Agosto 2013
“Getúlio continua, até hoje, sessenta anos após sua morte, alvo de acaloradas controvérsias. Os getulistas o colocam como um personagem quase imaculado, acima do bem e do mal. Os antivarguistas, ao contrário, só conseguem ver nele o caudilho e o ditador do Estado Novo”, afirma o jornalista.
Confira a entrevista.
Foto: http://bit.ly/aU5udU |
“Os escritos pessoais de mostram, de forma explícita, que a opção pelo sacrifício pessoal sempre esteve no seu campo de possibilidades”, diz o biógrafo do ex-presidente, que cometeu suicídio em 24 de agosto de 1954. Autor da trilogia Getúlio (Companhia das Letras), com dois volumes publicados, Lira Neto (foto abaixo) enfatiza que os escritos de Getúlio em 1930, 1932, 1941, e 1954 demonstram que ele “parecia disposto a jamais sair desonrado das situações-limites. (...) Em 1945, poucos meses antes de ser deposto, escreveu uma antecipação da célebre carta-testamento de 1954. ‘Estou resolvido ao sacrifício, como um protesto, marcando a consciência dos traidores’, redigiu, já sentindo o chão se abrir sob os pés”.
Com base em pesquisas e apuração jornalística, o jornalista investigou o passado de Getúlio Vargas no Rio Grande do Sul, sua vida intelectual, correspondências e diários, para traçar o perfil de um dos presidentes que mais divide opiniões no país. Segundo ele, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, “por trás da figura simpática e sorridente, eternizada na memória coletiva nacional, havia na verdade um homem melancólico, por vezes quase sombrio. (...) A imagem de um indivíduo onipotente e seguro de si, manejando os cordéis da história com singular desenvoltura, nem sempre encontra correspondência no Getúlio de carne e osso”.
Na entrevista que se segue e publicada no dia do 59º aniversário da morte de Getúlio Vargas, Lira Neto apresenta as influências intelectuais que contribuíram para sua ascensão à presidência da República, e refletiram na “imagem de um político jovem, modernizador e austero, que havia proclamado a paz entre os conterrâneos após o longo histórico regional de disputas sangrentas entre chimangos e maragatos”.
Lira Neto é jornalista, e escreveu, entre outros livros, as biografias Padre Cícero (Companhia das Letras, 2009), Maysa (Globo, 2007), O Inimigo do Rei (Globo, 2006) e Castello (Contexto, 2004).
Lira Neto é autor de uma importante biografia de Getúlo e cujo segundo volume acaba de ser publicado. Os dois volumes são: Getúlio (1882 - 1930). Dos anos de formação à conquista do poder. Volume 1, Companhia das Letras; e Getúlio (1930 - 1945) Do governo provisório à ditadura do Estado Novo. Volume 2, Companhia das Letras, 2013. Um terceiro volume completará a trilogia.
Confira a entrevista.
Foto: http://bit.ly/1bmHPZ9 |
IHU On-Line - Que ligações e interações faz entre Getúlio Vargas da vida pública e Getúlio Vargas da vida privada?
Lira Neto - Como se trata de uma narrativa biográfica, meu trabalho procura estabelecer exatamente as interfaces dessas duas dimensões — a vida pública e a esfera privada — sobrepondo, sempre, uma e outra, como em um jogo de transparências mútuas. Neste segundo volume, a trajetória do indivíduo Getúlio Dornelles Vargas é traçada no interior do vasto pano de fundo histórico compreendido entre 1930 e 1945. Busco elucidar de que modo tais dimensões interagiram e produziram impactos recíprocos. Procuro colocar em evidência o quanto acontecimentos como a chamada Revolução Constitucionalista de 1932, o movimento comunista de 35 e o ataque ao Palácio Guanabara em 38, por exemplo, entre tantos outros episódios, repercutiram na vida pessoal do biografado. Do mesmo modo, busco compreender de que forma as circunstâncias domésticas e íntimas do homem Getúlio influenciaram, em certo sentido, suas decisões políticas.
IHU On-Line - Como o cenário regional e local do Rio Grande do Sul influenciou na atuação política de Getúlio?
Lira Neto - As matrizes político-ideológicas de Getúlio são exploradas, de forma detalhada, no primeiro volume da trilogia. Para compreender as opções de Getúlio após sua chegada ao poder máximo do país é necessário conhecer bem, inicialmente, o cenário regional gaúcho da Primeira República. Vigorou no Rio Grande do Sul, à época, a pretensa “ditadura científica” preconizada pelo positivismo de Augusto Comte. Getúlio, portanto, bebeu na fonte política de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, cardeais do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), agremiação que pregava a necessidade de um governo unipessoal e autocrático, desdenhava o sistema representativo e defendia que o poder devia ser exercido por uma elite moral e intelectual, presumivelmente situada “acima” das contingências da política e das barganhas típicas do jogo democrático.
IHU On-Line - Qual então a influência do borgismo e castilhismo na formação política e intelectual de Getúlio? Em que medida eles são fundamentais para entender o Getúlio que chegou à presidência da República?
Lira Neto - Getúlio, ainda na Faculdade de Direito, em seus tempos de militância estudantil, filiou-se à juventude castilhista, defendendo ardorosamente a ditadura de Borges de Medeiros. É preciso lembrar, contudo, que no Rio Grande do Sul a própria palavra “ditadura” não tinha conotação pejorativa — pelo menos para os membros do PRR. Ao contrário, a ditadura era defendida abertamente como algo positivo — e até necessário — para o projeto maior de “conduzir as massas ao seu destino histórico”. Comte pregava que o proletariado deveria ser incorporado à sociedade, mas sempre através da tutela do Estado, por meio de ações ditadas do alto, de cima para baixo. O trabalhismo getulista, nesse sentido, constituiu, de certo modo e em certa medida, uma herança desse tipo de pensamento.
IHU On-Line - Quem era o Getúlio que chegou ao poder em 1930?
Lira Neto - Getúlio era um político de expressão apenas regional, a despeito de ter sido, antes, ministro da Fazenda. A dinâmica e a evolução do movimento oposicionista contra Washington Luís, iniciado em Minas e contrapondo-se ao poderio paulista, ofereceram ao Rio Grande do Sul — então um estado emergente — as condições propícias para a composição da Aliança Liberal, que reuniu Minas, Rio Grande e Paraíba. Getúlio, na condição de governador (presidente estadual, de acordo com a denominação da época) gaúcho, cacifou-se como candidato oposicionista, rompendo o seu pacto de lealdade com o Catete. A imagem de um político jovem, modernizador e austero, que havia proclamado a paz entre os conterrâneos após o longo histórico regional de disputas sangrentas entre chimangos e maragatos, contribuiu também, sobremaneira, para atrair visibilidade — e legitimidade — para seu nome.
IHU On-Line - Quais as principais características dos primeiros 15 anos da era Vargas?
Lira Neto - Os primeiros quinze anos da chamada Era Vargas, entre 1930 e 1945, foram marcados por duas características básicas. De um lado, prevaleceu a forma de governo discricionário, que administrava por decreto, controlava a imprensa pela censura, perseguia adversários políticos e mantinha o Congresso fechado. Com exceção de um breve interlúdio democrático, entre 1934 e 1936, Getúlio autoinvestiu-se de poderes absolutos, como uma espécie de déspota esclarecido. De outro lado, em contraposição, pôs em ação uma política de modernização do país, regulamentou a relação entre capital e trabalho, instituiu o voto feminino e promoveu uma série de outras conquistas para a classe trabalhadora.
IHU On-Line - Que interpretação faz das leis trabalhistas implantadas por Getúlio?
Lira Neto - Alguns getulistas mais sinceros interpretam o conjunto de leis trabalhistas como uma concessão de um homem magnânimo aos trabalhadores da época. Não há dúvida de que tais leis representaram um avanço histórico em um setor no qual até então prevalecia a lei do mais forte, ou seja, dos patrões. Não podemos perder de vista que, em 1930, fazia apenas quarenta anos que o Brasil se libertara da chaga do trabalho escravo. Numa perspectiva histórica, quatro décadas representam um intervalo de tempo insignificante.
Portanto, Getúlio teve a sensibilidade de trazer a questão social para o primeiro plano, respondendo a uma demanda específica da época. Com isso, neutralizou a pressão do movimento operário independente, abafando as pressões dos comunistas e anarcossindicalistas. Permitiu e incentivou a formação de sindicatos, mas desde que essas organizações recebessem o beneplácito e a autorização oficial do Estado, por meio do Ministério do Trabalho. Como tudo o mais em relação a Getúlio, essa é uma questão complexa, que não pode ser analisada com as ferramentas do pensamento binário e dicotômico.
IHU On-Line - Qual é o Getúlio do imaginário brasileiro?
Lira Neto - Getúlio continua, até hoje, sessenta anos após sua morte, alvo de acaloradas controvérsias. Os getulistas o colocam como um personagem quase imaculado, acima do bem e do mal. Os antivarguistas, ao contrário, só conseguem ver nele o caudilho e o ditador do Estado Novo. Meu trabalho, ao biografá-lo, propõe uma discussão mais equilibrada e menos maniqueísta em torno do personagem e de seu legado histórico.
IHU On-Line - O senhor fala que é possível dividir o Brasil em antes e depois de Getúlio. Em que aspectos? Por que ainda hoje Getúlio divide opiniões?
Lira Neto - Getúlio pegou um país essencialmente agrário, em 1930, e o conduziu ao caminho do desenvolvimento e da industrialização. Isso é inegável. O que podemos perguntar, como fez Maria Celia D’Araújo em uma resenha sobre o primeiro volume da biografia, é quanto dessas conquistas poderiam ter sido obtidas pela via democrática e sem a repressão brutal infligida pelo Estado Novo. O potencial de controvérsia de Getúlio permanece vivo, dadas as ambiguidades de sua própria trajetória.
IHU On-Line - O senhor concorda que “é preciso virar a página da Era Vargas”?
Lira Neto - Esta expressão — “virar a página da Era Vargas” — foi utilizada por Fernando Henrique Cardoso em seu discurso de posse como presidente da República. Agora, o mesmo FHC assina um dos textos da contracapa do segundo volume, no qual afirma textualmente que “a despeito do que se pense sobre suas ações e posições, Getúlio teve a grandeza que só os estadistas possuem”. Logo ao lado, também na contracapa do livro, Luís Inácio Lula da Silva assina o outro texto, relatando o impacto que a leitura do primeiro volume produziu sobre ele. Para mim, ter Lula e FHC, juntos, lado a lado, referendando a obra, mostra que a minha intenção de buscar um relato equilibrado parece ter sido bem sucedida.
IHU On-Line - Como estão as pesquisas para a preparação do terceiro volume da biografia de Getúlio, que trata de 1945, quando Getúlio é derrubado, seu exílio em São Borja, e a volta consagradora à presidência, até agosto de 54?
Lira Neto - Estou trabalhando nos capítulos iniciais do terceiro volume, que deve sair daqui a um ano, quando se completam os 60 anos da morte do ex-presidente.
IHU On-Line - Como o senhor explica o suicídio do ex-presidente?
Lira Neto - Os escritos pessoais de Getúlio mostram, de forma explícita, que a opção pelo sacrifício pessoal sempre esteve no seu campo de possibilidades. Ele parecia disposto a jamais sair desonrado das situações-limites. Em 1930, no dia 3 de outubro, data do estopim da chamada Revolução de 30, escreveu no seu diário: “E se perdermos? Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”. Em 1932, ao saber da eclosão da revolução paulista, sentindo que podia ser deposto, deixou um nítido bilhete de suicida. “Reservara para mim o direito de morrer como soldado, combatendo pela causa que abraçara. A ignomínia duma revolução branca não o permitiu. Escolho a única solução digna para não cair em desonra, nem sair pelo ridículo”, escreveu. Em 1941, ao decidir a participação brasileira no cenário da Segunda Guerra Mundial, rabiscou em seu diário: “Não sobreviverei a um desastre para minha pátria”. Em 1945, poucos meses antes de ser deposto, escreveu uma antecipação da célebre carta-testamento de 1954. “Estou resolvido ao sacrifício, como um protesto, marcando a consciência dos traidores”, redigiu, já sentindo o chão se abrir sob os pés.
IHU On-Line - Que releituras da Era Vargas o senhor propõe a partir da biografia do ex-presidente, baseada na apuração jornalística?
Lira Neto - No início, quando comecei a trabalhar na pesquisa sobre Getúlio, percebi que por trás da figura simpática e sorridente, eternizada na memória coletiva nacional, havia na verdade um homem melancólico, por vezes quase sombrio. Suas cartas, seus diários, seus escritos íntimos revelam um sujeito atormentado por fantasmas interiores, permeado por indecisões, hesitações, perplexidades. A imagem de um indivíduo onipotente e seguro de si, manejando os cordéis da história com singular desenvoltura, nem sempre encontra correspondência no Getúlio de carne e osso.
(Por Patricia Fachin)
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Getúlio Vargas: “Estou resolvido ao sacrifício, como um protesto, marcando a consciência dos traidores”. 59 anos depois. Entrevista especial com Lira Neto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU