01 Agosto 2013
“A compreensão de ‘conversão pastoral’ em Francisco vai, antes de mais nada, muito além das mudanças meramente ‘estruturais’ na Igreja. Ela se refere principalmente a ‘mudanças de atitudes’”, frisa o historiador.
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Confira a entrevista.
“Apoteótica”. É assim que o historiador Sérgio Coutinho define a primeira visita do Papa Francisco ao Brasil, a qual, “teve um impacto maior que a primeira visita do Papa João Paulo II, em 1980, e muitíssimo acima em relação à visita de Bento de XVI, em 2007”. Na avaliação dele, os discursos breves foram “bem estruturados do ponto de vista das ideias” e tiveram uma “forte carga profética: denunciando as injustiças e anunciando a possibilidade de ‘outro mundo possível’ e de ‘outra Igreja possível’”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Coutinho ressalta que Bergoglio desenvolveu um “verdadeiro programa pastoral” para os bispos do Brasil e do CELAM, o qual teve como “chave de leitura não o magistério dos Papas anteriores e dos Padres da Igreja, mas o magistério dos bispos da América Latina e Caribe explicitado no documento de Aparecida”, acentuando a necessidade de uma “conversão pastoral”.
Para ele, este pontificado representa uma “ruptura com o modo ‘monárquico-imperial’ de papado para um mais ‘pastoral-colegial’”. E acrescenta: “Faz lembrar muito o pontificado de João XXIII, mas só que não na condição de um pontificado de ‘transição’ após a longuíssima era do papa Pio XII. Desta vez, paradoxalmente, o pontificado de ‘transição’ foi feito justamente por Bento XVI porque, mesmo sendo uma continuidade em termos de projetos eclesiológicos (ou modelos de Igreja) com o longo período de governo de João Paulo II, ele iniciou a ‘ruptura’ com a sua renúncia e isto que possibilitou este giro de 180º”.
Sérgio Ricardo Coutinho dos Santos é mestre em História pela Universidade de Brasília - UnB e doutorando na mesma área pela UFG. É professor do curso de pós-graduação lato-senso em História do Cristianismo Antigo da UnB e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina - CEHILA-Brasil. É assessor nacional da Comissão Episcopal para o Laicato - CEBs.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - Como avalia a visita do Papa Francisco ao Brasil? Quais foram os pontos altos e baixos analisando seus pronunciamentos?
Sérgio Coutinho - Diria que foi apoteótica. Penso que, comparativamente, sua visita teve um impacto no Brasil talvez maior que a primeira visita do Papa João Paulo II, em 1980, e muitíssimo acima em relação à visita de Bento XVI, em 2007.
Sobre os pronunciamentos, penso que todos foram muito bem medidos e estratégicos: para cada tipo de público, um recado bem direcionado. Foram discursos breves, bem estruturados do ponto de vista das ideias e, o mais importante, com forte carga profética: denunciando as injustiças e anunciando a possibilidade de “outro mundo possível” e de “outra Igreja possível”.
De acordo com os interesses temáticos, sejam eles sociais, políticos ou até mesmo religiosos, cada analista acabará por escolher algumas de suas falas. Sei, por exemplo, que a fala no Hospital para os jovens em recuperação da dependência química não foi bem recebido por aqueles que defendem a liberalização das drogas, já que Francisco se colocou contrário a esta proposta de forma contundente. Para os analistas, a “dependência química” mata muito menos que a “guerra do tráfico” e o papa Francisco não desenvolveu esta questão social importante.
Discursos
No meu modo de ver, de todos os discursos, eu elencaria quatro deles que me chamaram mais a atenção em função dos meus interesses de estudo: à comunidade de Varginha (no complexo de favelas de Manguinhos), aos jovens argentinos na Catedral do Rio de Janeiro e as duas feitas aos bispos da CNBB e do CELAM.
Em Varginha porque ele vai à “periferia existencial” do Brasil e do mundo, explicitando sua opção pelos pobres e explicitando a centralidade da solidariedade (“sempre se pode ‘colocar mais água no feijão’!”) e da justiça social, elementos centrais da teologia latino-americana da libertação. Apesar disso, senti falta dele valorizar o protagonismo dos pobres nesta luta contra as injustiças diante de um belíssimo banner de Dom Oscar Romero estendido no alambrado do campo de futebol da comunidade.
Os outros três, diria que são discursos mais pastorais e eclesiológicos. Para os jovens argentinos, Francisco, falando totalmente de improviso, incentiva-os a fazerem “barulho” e ajudar a Igreja a sair de si, desejando que a Igreja saia pelas estradas, se defendendo de tudo o que é mundanismo, imobilismo, comodidade, clericalismo, enfim “de tudo aquilo que é viver fechados em nós mesmos”.
Já para os Bispos do Brasil e do CELAM, ele desenvolve um verdadeiro programa pastoral tendo como “chave de leitura” não o magistério dos Papas anteriores e dos Padres da Igreja, mas o magistério dos bispos da América Latina e Caribe explicitado no documento de Aparecida. Para os bispos da CNBB lança quatro desafios: prioridade da formação para todos sujeitos eclesiais (bispos, padres, religiosos e leigos), colegialidade e solidariedade episcopal, estado permanente de missão e conversão pastoral, e, finalmente, a Amazônia. Mas para enfrentar estes desafios, como disse aos bispos do Comitê de Coordenação do CELAM, é necessário a “Conversão Pastoral” e, neste ponto, o papa Francisco avalia que “ainda estamos um pouco atrasados”.
IHU On-Line - A postura, os gestos e os discursos de Francisco apontam para que tipo de pontificado? Neste sentido, como avalia os primeiros meses do papado de Francisco, considerando a história e trajetória da Igreja?
Sérgio Coutinho - Devo concordar com o conhecido vaticanista italiano Marco Politi que este pontificado é sim de “ruptura”. Ruptura com o modo “monárquico-imperial” de papado para um mais “pastoral-colegial”.
Faz lembrar muito o pontificado de João XXIII, mas só que não na condição de um pontificado de “transição” após a longuíssima era do papa Pio XII. Desta vez, paradoxalmente, o pontificado de “transição” foi feito justamente por Bento XVI porque, mesmo sendo uma continuidade em termos de projetos eclesiológicos (ou modelos de Igreja) com o longo período de governo de João Paulo II, ele iniciou a “ruptura” com a sua renúncia e isto que possibilitou este giro de 180º.
Por isso, me lembra também de um famoso livro do historiador italiano Giuseppe Alberigo sobre o papa Roncalli: “Do Bastão à Misericórdia”. O papa Francisco está de fato reintroduzindo este giro: do “bastão”, da “volta à grande disciplina” (João Batista Libânio) de João Paulo II e Bento XVI, para a “misericórdia”. Neste sentido, “misericórdia”, “serviço”, “diálogo”, “proximidade”, “encontro”, “simplicidade” e “transparência” são as palavras de ordem deste pontificado.
IHU On-Line - No encontro com os bispos do CELAM, o Papa disse que o trabalho das Pastorais na América Latina ainda está muito atrasado. Como compreende essa declaração? De algum modo ela se relaciona com a 51ª AG da CNBB?
Sérgio Coutinho - A última Assembleia Geral da CNBB teve como preocupação central introduzir uma reflexão e estudo sobre a Paróquia enquanto como “comunidade de comunidades”. Um passo importante em vista da necessidade de “Conversão Pastoral” como pede o Documento de Aparecida.
No entanto, a compreensão de “conversão pastoral” em Francisco vai, antes de mais nada, muito além das mudanças meramente “estruturais” na Igreja. Ela se refere principalmente a “mudanças de atitudes”.
Neste encontro com os bispos do CELAM, Francisco propôs seis conjuntos de questões que poderíamos resumi-las numa só: “Temos dado, enquanto Igreja-hierárquica, espaço para a atuação madura e responsável dos agentes de pastoral e dos fiéis leigos, isto é, do conjunto de todo o Povo de Deus, na missão da Igreja no mundo de hoje?” A resposta: o nosso laicato é imaturo e clericalizado.
Por isso, para o Papa Francisco, as mudanças de atitudes (a “conversão pastoral” propriamente dita) devem seguir o seguinte roteiro de “pautas eclesiológicas”: a) uma Igreja que quer ser discípula missionária precisa se “des-centrar”, sair de si e ir para as “periferias existenciais”; b) para isso é necessário que a Igreja assuma a mesma postura da Virgem Maria: exercitar a maternidade, deixando de ser controladora para ser servidora e facilitadora da fé; c) daí, uma aproximação que toma a forma de diálogo para criar uma “cultura do encontro”; d) neste sentido é necessário que tenhamos bispos-pastores com “cheiro de ovelhas”, próximo ao povo, que amem a pobreza, sem a “psicologia de príncipes”.
IHU On-Line - O Papa também condenou o abuso de poder na Igreja e a inclusão de ideologias sociais no Evangelho, seja marxista, seja liberal. Como a Teologia da Libertação recebe essa crítica? Nesse sentido, o que é possível falar sobre a Teologia do povo, seguida pelo Papa?
Sérgio Coutinho - Em relação ao abuso de poder na Igreja, não só os(as) teólogos(as) da libertação denunciaram esta prática, mas ela é ainda uma das reclamações mais ouvidas e combatidas por muitos agentes de pastoral e fiéis em geral. Uma parte da explicação para a sangria de católicos para outras denominações cristãs está nesta prática que o papa Francisco chama de “clericalismo”.
Sobre a leitura que a Teologia da Libertação faz e a chamada Teologia do Povo, que papa Francisco parece se inspirar, há de fato pontos de partida diferentes, mas que não se excluem.
No discurso para os bispos do CELAM, Francisco exemplificou a “tentação” de uma leitura ideologizada da mensagem evangélica a partir do modo como se queria utilizar o método ver-julgar-agir em Aparecida. Ali, segundo ele, sofreram a tentação de se querer “ver a realidade” de forma totalmente asséptica, neutra, e isto, para ele, era totalmente inviável. “Sempre o ver está afetado pelo olhar. Não existe uma hermenêutica asséptica”, afirmou. Daí que se optou por uma hermenêutica a partir do olhar do “discípulo” para não “ficar fora da mesma mensagem do Evangelho e fora da Igreja”.
Pois bem, o “discípulo” para o papa Bergoglio é o “católico como povo” “e que se expressa fundamentalmente na piedade popular”. Como disse em Aparecida, “a fé simples dos romeiros” ou, como costuma dizer, “o povo fiel de Deus”. E ele sabe muito bem que este povo simples, em sua grande maioria, é pobre e sofre com a “cultura do descartável”.
A hermenêutica da Teologia da Libertação também não é asséptica porque o olhar é a partir do “pobre” que, além de praticar sua fé simples, também é sujeito para mudar a realidade de injustiça que existe, tal qual o Papa Francisco se referiu aos jovens para lutarem por um mundo novo sem injustiças. Portanto, penso que as duas hermenêuticas, os dois olhares, da Teologia do Povo de Francisco e a da Teologia da Libertação latino-americana, se complementam e não se excluem.
Papa Francisco faz uma junção muito boa destas duas teologias, mas sem enfatizar o “pobre” como sujeito social, político e eclesial quando dá a receita para pôr fim ao clericalismo e a imaturidade do laicato: “A proposta dos grupos bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos de pastoral vai na linha de superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical”.
Penso que isso ajuda a entender o mandato de Francisco aos jovens argentinos: “Com essas duas coisas vocês têm o Plano de Ação: as Bem-aventuranças e Mateus 25. Vocês não precisam ler mais”.
IHU On-Line - A postura de Bergoglio e seus discursos mostram um desejo de reforma na Igreja? Que mudança seria esta? Qual é o significado da
“missionariedade”, da qual fala o Papa ao tocar esse assunto?
Sérgio Coutinho - Parece-me que a grande reforma de Bergoglio é acabar com um modelo de Igreja que ele chama de autorreferencial, centrada em si mesma, e dar vazão a uma Igreja missionária que saia de si. De uma Igreja “encurvada” e “doente” para uma Igreja “acidentada” que corre o risco de ir para o mundo, tocar “a carne de Cristo” nas periferias geográficas e existenciais.
IHU On-Line - O que Francisco quis dizer à igreja quando se referiu ao caminho da sinodalidade?
Sérgio Coutinho - Esta me parece ser também uma das grandes reformas de Francisco. “Synodós” significa “caminhar juntos”. Francisco quer que o ministério petrino seja feita em comunhão com os demais bispos deixando de lado de uma vez por todas as práticas de “matriz-filial” que nos dois últimos pontificados se sedimentaram, apesar dos caminhos indicados pelo Concílio Vaticano II.
O problema que vejo aqui é se o conjunto dos bispos quer caminhar desta forma. Por isso, em seu discurso aos bispos da CNBB, Francisco sinalizou fortemente para a valorização não só de uma articulação nacional, mas também regional, criando assim uma rede de testemunhos para que assegurem a verdadeira unidade na riqueza da diversidade de experiências de Deus “para por em marcha uma dinâmica vital”.
(Por Patricia Fachin)
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Uma Igreja missionária: a reforma de Papa Francisco. Entrevista especial com Sérgio Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU