27 Julho 2012
“Não há como não pensar em uma verdadeira reforma do Código Penal se não se enfrentar as duas questões: proporcionalidade e dignidade da pessoa humana”, declara o coordenador geral da elaboração normativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
Confira a entrevista.
“O encarceramento em massa, como vemos hoje, é a solução para os males da nossa sociedade atual?”, questiona o advogado Patrick Mariano Gomes, ao comentar as propostas de reforma do Código Penal que tramitam no Congresso Nacional. Entre os temas mais polêmicos da reforma estão os que dizem respeito ao aborto, às drogas, aos regimes prisionais e à tipificação do terrorismo.
Na avaliação de Mariano, as duas propostas de reforma do Código Penal compartilham de um aspecto negativo ao sugerirem o aumento de penas em várias das alterações. “Nossa sociedade não pode aceitar que seres humanos sejam amontoados em depósitos, sem as mínimas condições de dignidade. Está mais que claro, lembrando Evandro Lins e Silva, que a prisão não regenera ninguém; ela avilta, despersonaliza, degrada, vicia, perverte, corrompe e brutaliza”, argumenta em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Outro ponto polêmico da proposta de reforma refere-se à tipificação de crimes de terrorismo. Na interpretação de Mariano Gomes, “é um absurdo querer tipificar o terrorismo no Brasil e, se isso for adiante, na falta de terroristas como no seriado do Jack Bauer, não tenha dúvidas de que integrantes de movimentos que reivindicam políticas públicas como terra, educação, moradia e trabalho tenham suas ações tipificadas como terrorismo, até porque não são raros os casos de aplicação da Lei de Segurança Nacional contra esses movimentos, em pleno Estado de Direito Democrático”.
Patrick Mariano Gomes é advogado, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente exerce o cargo de coordenador geral de elaboração normativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor participou da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de reforma do Código Penal – CP? Quais foram os principais apontamento em relação à reforma?
Patrick Mariano – Pude acompanhar os debates na subcomissão de crimes e penas instalada na Câmara dos Deputados assim como os debates da Comissão de Juristas, instalada no Senado Federal. É importante registrar de início que, historicamente, as reformas do Código sempre foram realizadas no âmbito do poder Executivo. O Legislativo é o lugar da composição por excelência, e muitas vezes acaba adotando-se um critério de escolha dos membros de Comissão pela representatividade, ou seja, precisamos colocar alguém do Ministério Público, da advocacia, de um partido etc. O problema, a meu ver, é que para uma reforma de Código, o critério primordial de escolha dos membros deveria ser o do compromisso com um direito penal mais sensível aos dramas de quem sente na pele o encarceramento e o notório saber jurídico. Dessa forma, com esse perfil torna-se irrelevante a área de atuação profissional. Interesses corporativos e a influência dos meios de comunicação de massa não devem pautar o debate de algo tão sério quanto a elaboração de uma nova codificação penal.
Essas duas iniciativas do Legislativo, de alteração ou reforma do Código Penal – CP, funcionaram concomitantemente no Senado e na Câmara. Esse seria um primeiro e importante apontamento, no sentido do desafio que será juntar os dois trabalhos a fim de evitar a tramitação concomitante das duas propostas de alteração do CP, o que seria muito prejudicial para o sistema de justiça e dificultaria a colaboração da academia, dos atores jurídicos e da sociedade civil em geral. Outro apontamento inicial que faria, positivamente, é que tanto uma como a outra Comissão diminuem as penas dos crimes patrimoniais sem violência e tentam propor saídas para a questão das drogas. Um terceiro e último apontamento geral que faria é uma pergunta que deve ser feita por todos, sociedade civil, academia, profissionais do direito: O encarceramento em massa, como vemos hoje, é a solução para os males da nossa sociedade atual? A resposta é fundamental para análise dos dois documentos legislativos.
IHU On-Line – Entre os temas que estão sendo revistos no atual Código Penal, quais geram mais tensionamento nas discussões? Em que aspectos do Código há maior divergência?
Patrick Mariano – Sem dúvida alguma a questão do aborto, das drogas, dos regimes prisionais e da tipificação do terrorismo. Penso que nas duas comissões as divergências foram colocadas na mesa e se chegou a um resultado final. No entanto, o maior tensionamento com certeza se dará no andamento das propostas, dado que no Legislativo as propostas só caminham por consenso. Os quatro temas têm potencial para despertarem muitas discussões, o que é bom.
IHU On-Line – Senadores de quais partidos políticos estão analisando o projeto de lei de reforma do Código Penal? Na Câmara dos Deputados, como as bancadas congressistas têm se posicionado diante da reforma?
Patrick Mariano – Foram indicados os senadores Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), Armando Monteiro (PTB-PE), Benedito de Lira (PP-AL), Clovis Fecury (DEM-MA), Eunício Oliveira (PMDB-CE), Jorge Viana (PT-AC), Magno Malta (PR-ES), Pedro Taques (PDT-MT) e Ricardo Ferraço (PMDB-ES). Depois do recesso parlamentar, serão definidos presidente e relator. Já na Câmara, ainda se aguarda a apresentação do relatório final. Somente depois disso é que será analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ. Portanto, ainda é muito cedo para saber como as bancadas se posicionarão. Lembrando que, atualmente no Congresso, temos o novo Código de Processo Penal parado na Câmara, além de discussões sobre o novo Código de Processo Civil e Comercial. Ou seja, o que o Congresso tem como tarefa de codificação nos próximos anos se assemelha aos 12 trabalhos de Hércules.
IHU On-Line – Quais são os principais descompassos do Código Penal vigente com as transformações sociais e culturais que ocorreram nos últimos 70 anos?
Patrick Mariano – Penso que não existe um descompasso, pois a legislação extravagante acabou abrangendo grandes temas como a Lei dos crimes ambientais, Estatuto do Idoso, Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei da Lavagem de dinheiro e por aí vai. Um problema sério desse fenômeno é que o cidadão não sabe o que é proibido hoje, tamanha quantidade de leis esparsas, sendo necessário e urgente uma codificação dessas leis para facilitar a compreensão e assimilação dos destinatários, que somos todos nós.
Sob a ótica penal, as transformações de nossa sociedade exigem a despenalização de uma série de condutas. A punição da vadiagem, herança de 1800, ainda está em nosso ordenamento, o que é inadmissível, e acentua a criminalização da pobreza.
IHU On-Line – Uma das propostas da reforma do Código Penal é aumentar a tipificação de crimes. Por que discorda? E no caso da tipificação dos crimes, que princípios devem ser considerados ao determinar as penas?
Patrick Mariano – Considero desnecessária. Sem dúvida, os princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade devem ser observados. Neste ponto, imprescindível a leitura do relatório da CPI do Sistema Carcerário. O que os parlamentares que correram o Brasil viram foi a pena como sofrimento! Nossa sociedade não pode aceitar que seres humanos sejam amontoados em depósitos sem as mínimas condições de dignidade. Está mais que claro, lembrando Evandro Lins e Silva, que a prisão não regenera ninguém; ela avilta, despersonaliza, degrada, vicia, perverte, corrompe e brutaliza.
O projeto do Senado optou infelizmente por tipificações muito abertas de crimes, que possibilitam o componente ideológico de interpretação. Além disso, ambos os projetos trabalham com a inclusão de causas de aumento de pena em várias das alterações, sem grandes justificativas para tanto, o que não é bom. Volto à primeira pergunta: o aumento de pena e o encarceramento são a solução para nossos problemas atuais? Infelizmente não se faz análise aprofundada do impacto social que o aumento de pena causa ao sistema, resultando no desconhecimento de muitas mazelas do nosso cárcere. Para se ter uma ideia da desproporcionalidade, basta ver que o crime de extorsão mediante sequestro tem pena maior do que o de genocídio. Não há como não pensar em uma verdadeira reforma do Código Penal se não se enfrentar as duas questões: proporcionalidade e dignidade da pessoa humana. Na proposta dos crimes patrimoniais e das drogas chegou-se perto de se juntar as duas coisas.
IHU On-Line – Como a discussão acerca da criminalização da pobreza e a relação entre pobreza e criminalidade aparecem nas propostas de reforma do Código Penal?
Patrick Mariano – Esse é o aspecto mais dramático da realidade carcerária hoje. Os dados do Ministério da Justiça indicam que temos uma população carcerária formada, em sua maioria, por pobres com baixíssima escolaridade. Pior, muitos deles nem lá deveriam estar se fossem respeitados seus direitos. Ou seja, a pena de prisão, numa sociedade de classes, tem foco preciso e determinado: os do andar de baixo. Um erro frequente que vemos é querer compensar a balança punitiva com bodes expiatórios: cai um banqueiro na prisão, logo se exige que de lá ele nunca saia, mesmo que seja preciso passar por cima de seus direitos constitucionais. Não, isso não resolve nada, só agrava o problema! Pois, no dia em que os direitos constitucionalmente assegurados não valerem para os de cima, os pobres estarão nas valas dos cemitérios.
Só se faz justiça social garantindo que os pobres tenham seus direitos respeitados da mesma forma que aqueles que possuem melhores condições financeiras. Para isso é preciso ampliar as defensorias públicas e rediscutir a questão da punição e classe social. Nos dois projetos há, felizmente, uma tentativa de alteração dos crimes patrimoniais sem violência diminuindo penas, e isso é positivo. Por outro lado, aumentam-se penas dos crimes cometidos pelo andar de cima, e isso não é bom; é cair no canto da sereia relatado há pouco.
IHU On-Line – Nas discussões acerca da reforma do Código Penal, percebe uma tentativa de criminalizar ou até mesmo enquadrar como ato de terrorismo condutas movidas por propósitos sociais e reivindicatórios, como luta pela terra, greve, ocupação de prédios públicos? Nesse sentido, os movimentos sociais seriam criminalizados? Qual é a legitimidade dessas mudanças?
Patrick Mariano – No projeto da Câmara felizmente isso não existe. No do Senado, por pressão de setores jurídicos preocupados com organismos internacionais como o Grupo de Ação Financeira Internacional – GAFI, acabou entrando, embora com uma saída de blindagem para os movimentos sociais. Entendemos que mesmo com essa blindagem – que não garante coisa alguma, pois o Código Florestal nos deu uma medida da força da bancada ruralista no Congresso – é um absurdo querer tipificar o terrorismo no Brasil e, se isso for adiante, na falta de terroristas como no seriado do Jack Bauer, não tenha dúvidas de que integrantes de movimentos que reivindicam políticas públicas como terra, educação, moradia e trabalho tenham suas ações tipificadas como terrorismo, até porque não são raros os casos de aplicação da Lei de Segurança Nacional contra esses movimentos, em pleno Estado de Direito Democrático.
IHU On-Line – A proposta de reforma do Código Penal sugere alguma alteração entre o trabalho das delegacias, Ministério Público e Judiciário? Questões como celeridade processual, questões de provas, crimes que prescrevem ou não, crimes inafiançáveis ou não, serão contempladas de que maneira na proposta de reforma?
Patrick Mariano – Sobre esse aspecto, seria importante que o novo Código de Processo Penal – CPP, trabalho bem feito por uma Comissão de Juristas, voltasse a tramitar. A proposta busca adequar o CPP à Constituição da República de 1988, atacando nossa matriz inquisitória, infelizmente ainda presente na lei e na mentalidade dos atores jurídicos.
IHU On-Line – Que mudanças são urgentes no atual Código Penal, para que ele fique em sintonia com a Constituição de 1988?
Patrick Mariano – Mudanças urgentes seriam aquelas que corrigiriam distorções do sistema como penas desproporcionais, fruto da legislação de pânico. Para ficar em sintonia com a Constituição de 1988, auge da democracia brasileira, seria imprescindível um debate profundo sobre o que queremos com o instituto da prisão; precisaríamos nos perguntar por que razão nossas cadeias estão abarrotadas de pobres, ou por que ainda se encarcera quem quer matar a fome. Deveríamos nos questionar a respeito da influência dos meios de comunicação de massa na disseminação do medo e quem ganha com tudo isso. Qual a sociedade que queremos? Uma sociedade justa, fraterna e solidária ou uma sociedade que segrega, exclui, faz sofrer e prejulga o outro?
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Patrick Mariano – Espero que na tramitação outros aspectos sejam levados em conta, e não somente o pragmatismo. É preciso trazer para o debate o conhecimento acadêmico, da doutrina, das correntes de pensamento do direito penal e da criminologia e os impactos no sistema carcerário. Somente assim será possível revelar as nódoas de um punitivismo seletivo e desumanizante, tornando a discussão sobre um novo Código digna de uma sociedade que se pretende justa, fraterna e solidária.
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Reforma do Código Penal: ''Qual a sociedade que queremos?'' Entrevista especial com Patrick Mariano Gomes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU