06 Janeiro 2011
Mais do que palavras emocionadas e emocionantes em seu discurso de posse, a presidenta da República, Dilma Rousseff, tomou atitudes emblemáticas em seus primeiros passos à frente do governo brasileiro. Convidou suas ex-companheiras de cárcere para assistirem à solenidade em Brasília, provando que não se esqueceu de onde veio. Apenas quatro dias depois, chamou ao seu gabinete o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general José Elito Siqueira, e questionou-o sobre sua afirmação de que “desaparecido político não é vergonha”. A intenção da presidente é clara, pondera o historiador Jair Krischke, na conversa por telefone que teve com a IHU On-Line: Dilma tem luz e opinião próprias, e manifestou seu ponto de vista com toda a objetividade nos dois casos. Com ela, o tratamento aos temas relacionados à anistia, desaparecidos políticos e Comissão da Verdade serão outros, acredita Krischke, que se mostra esperançoso no tratamento que esses assuntos irão ter daqui para frente: “ela sabe exatamente de onde veio”. Como comandante em chefe das Forças Armadas, uma fina ironia do destino, Dilma está autorizada a tomar satisfações de seus colaboradores, inclusive os militares.
Outro tema da conversa com Krischke é a importância da criação da Comissão da Verdade, que agora está “parada” no Congresso Nacional. A recente história brasileira precisa ser esclarecida, pondera o estudioso. Ele critica a cultura da indenização como solução para os crimes políticos que ocorreram no passado. É a típica postura do “cala a boca”.
Jair Krischke, formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos Direitos Humanos da Região Sul do Brasil. Também é o fundador do Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Do ano passado para cá, o que mudou no PNDH-3? Qual é a situação de tramitação do PNDH hoje?
Jair Krischke - Na verdade, nada mudou. Naquela ocasião houve uma discussão imensa e um recuo. O Plano falava de várias coisas, era um grande e amplo guarda-chuvas no qual discutiam-se temas como o aborto, símbolos religiosos e matérias extremamente polêmicas que abriam um debate que desviou daquilo que, para nós, era o fundamental, a criação da Comissão da Verdade. De qualquer forma, o presidente Lula criou um grupo de trabalho que elaborou uma proposta, que foi encaminhada à presidência e transformada em um projeto de lei, apresentado ao Congresso Nacional em maio. O ano de 2010 foi um ano eleitoral, e sabemos que no Congresso Nacional, depois de junho, nada funciona. Neste dia 4 de janeiro, fui verificar e o projeto está absolutamente parado. Não houve nenhum avanço. Nada aconteceu. Na verdade, eu diria que a única novidade foi que a presidência da República apresentou um projeto, mas que está parado no Congresso. Nos toca, neste ano, fazer que ele avance e se concretize.
A criação da Comissão da Verdade é fundamental, importantíssima. Temos essa história recente do Brasil que precisa ser esclarecida. Temos desaparecidos no Brasil. Quando se discute a anistia no país, se esquecem que os familiares dos desaparecidos não foram anistiados. Eles continuam com sua dor e sofrimento. A anistia para os familiares dos desaparecidos não chegou. Eles continuam não tendo a menor informação sobre onde se encontram os restos mortais de seus entes queridos, não têm o direito que as pessoas têm ao longo de sua trajetória na guerra, que é o direito de prantear seus mortos. É uma questão que precisa, definitivamente, ser resolvida, e a Comissão da Verdade pode fazê-lo. Precisamos saber quem fez o quê. Quem tem responsabilidade sobre o que houve na ditadura?
Puxão de orelhas
Em dezembro nós tivemos um avanço, mas que não tem nada a ver com as questões nacionais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou e condenou o Brasil por não abrir os arquivos da ditadura; por não investigar profundamente a questão do Araguaia; por não apontar os responsáveis e por não entregar aos familiares os restos mortais dos seus entes. Só que isso ocorreu a nível internacional, que colocou o Brasil numa tremenda saia justa, porque aí é no consenso das nações que nosso país deve se explicar. Trata-se de um tremendo puxão de orelhas. Digam-se que os crimes de lesa humanidade não são passíveis de nenhuma anistia, graça ou beneficio. No governo da presidenta Dilma, essa condenação da corte deverá ser enfrentada. A pergunta que paira é: “como o governo brasileiro irá cumprir essa decisão da corte?”
IHU On-Line – Acredita que agora os arquivos da ditadura serão abertos? Como será a condução desse tema no governo Dilma?
Jair Krischke – Eu tenho muita esperança nesse sentido, porque conheço Dilma Rousseff pessoalmente. Ela viveu no Rio Grande do Sul por muitos anos. É uma mulher que tem opinião própria, tem luz própria. Ela não é, absolutamente, um subproduto de Lula. Suas opiniões são fortes, ela não regateia, mas impõe o que pensa. Esta semana se passou um episódio que a imprensa não deu a devida importância e atenção. José Elito, que substituiu o major Jorge Félix, ao assumir disse coisas muito “interessantes”. Nesta quarta-feira, 05-01-11, ela o convocou em seu gabinete e deu-lhe um “puxão de orelhas”. José Elito deu a resposta que todos os covardes dão: “a imprensa não me entendeu”. No tempo de Lula, qualquer general dizia essas bobagens e não era chamada a sua atenção. Jorge Félix foi mantido oito anos nesse posto por Lula. E nesse período, esse general disse coisas muito inconvenientes, sobretudo em relação à abertura de arquivos. Ele chegou a afirmar que não convinha abrir os arquivos porque iriam aparecer coisas muito constrangedoras. Se ele dissesse isso agora, sob o governo de Dilma, ele não seria repreendido, apenas, mas iria preso. Isso é uma barbaridade, um acinte. Então, o gesto da Dilma com o ministro José Elito, que pode parecer algo muito simples, é, pelo contrário, muito importante, porque marca como ela trata esse assunto.
IHU On-Line - Como compreende a afirmação do general José Elito Siqueira ao dizer que “desaparecido político não é vergonha”? O que essa frase demonstra sobre a forma como os militares compreendem a ditadura e suas consequências?
Jair Krischke - Esse general José Elito era um jovem cadete na academia militar quando aconteceram as barbaridades da ditadura. Assim, ele e todos os oficiais generais em serviço do Exército, Marinha e Aeronáutica da sua idade não têm responsabilidade sobre esse assunto, até porque não tinham naquele tempo funções capazes de tomar parte na barbaridade das torturas. Mesmo assim, eles mantêm um espírito completamente equivocado, de respaldar os absurdos que foram cometidos por gente que os antecedeu. Mas eles não têm postura, diferentemente do que acontece na Argentina, Paraguai, Chile, onde há vários oficiais presos, outros sendo processados. No Uruguai há dois ex-presidentes na prisão. O último presidente civil da democracia e o presidente da ditadura. Os dois foram condenados e presos. Na Argentina o general Jorge Rafael Videla, que nem general é mais porque foi-lhe cassada a patente, recebeu agora a terceira condenação à prisão perpétua. Está numa prisão comum. No Brasil, não se molesta nem o cabo da guarda, porque eles ficam “açulados”.
"Dilma é, assim, a comandante em chefe das Forças Armadas. Não gostou do que José Elito disse e manifestou seu ponto de vista com toda a clareza"
Dilma, comandante em chefe das Forças Armadas
No dia 30 de dezembro, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, ainda sob o comando de Paulo Vanucchi, lançou um CD-ROM contando as histórias das vítimas das atrocidades cometidas pela ditadura brasileira. Você não imagina a gritaria dos militares em contrário à iniciativa. Postaram inclusive um vídeo no YouTube, revoltadíssimos, perguntando quem era mesmo Paulo Vanucchi. Veja bem o perfil dessas pessoas... É por isso que o gesto de Dilma é emblemático, de grande importância. Quem não conhece bem esse assunto pode não valorizar tanto o que houve, mas eu penso que se trata de algo exemplar. Isso fez a diferença. Nas entrelinhas, o que ela diz é que, daqui para frente isso não será mais tolerado. Não há porque se exasperar, porque ela é a presidenta da República. E, segundo a Constituição do Brasil, o presidente da República é o comandante em chefe das Forças Armadas, que funcionam através do princípio da hierarquia. Dilma é, assim, a comandante em chefe das Forças Armadas. Não gostou do que José Elito disse e manifestou seu ponto de vista com toda a clareza.
IHU On-Line – Trata-se de uma fina ironia do destino que Dilma, ex-guerrilheira e presa política, seja hoje a comandante em chefe dos seus “algozes”, digamos assim...
Jair Krischke – Certamente. Dilma, assim como Michelle Bachelet, também sofreu tortura. E eis que essas duas mulheres tornaram-se presidentas de seus países.
IHU On-Line – Como o governo Dilma irá enfrentar a questão da Anistia? Haverá um tratamento diferenciado ao tema em função da história política da presidenta?
Jair Krischke – Lula foi preso por razões políticas quando era dirigente sindical. Comandou uma greve e foi preso. A história da prisão da Dilma foi outra. Foi uma prisão ideológica de alguém que lutava contra a ditadura e foi barbaramente torturada. Não podemos, portanto, exigir de Lula um comportamento muito diferente do que ele teve. Dilma sabe exatamente do que se trata a ditadura e a tortura, e já na sua posse teve um gesto impressionante que foi o de convidar suas ex-colegas de prisão, as “damas da torre”, que foram confinadas no presídio Tiradentes, no piso superior do prédio.
"Nelson Jobim continua ministro porque foi imposto por Lula. Esse é um dos ministros que ele bancou"
IHU On-Line – Que simbologia há por trás desse convite?
Jair Krischke – Dilma deu seu recado: “Não esqueci de minha história. Eu sou a Dilma Rousseff”. Em seu discurso, ela ficou emocionada quando disse que havia entregado sua juventude na luta pela redemocratização do país. Essa é uma verdade completa. Todos que lutaram nesse período entregaram sua juventude, sua vida. Dilma, em seu discurso, provou que sabe exatamente de onde veio. São gestos que valem mais do que as palavras. Ela convidou as ex-colegas de prisão para a posse e chamou o general José Elito a dar satisfações sobre o que acabara de afirmar. Por isso eu me encho de esperanças, mas temos que compreender, por outro lado, as dificuldades que ela enfrentará. O ministro da Defesa permanece Nelson Jobim, que é uma pessoa difícil de se lidar. Foi ele que dificultou tudo o que pode para que a Comissão da Verdade ainda não se concretizasse. Ele ameaçou renunciar, junto de outros comandantes militares. Sua permanência é algo complicado. Como é que isso vai se equacionar daqui para a frente?
IHU On-Line – Mas por que, afinal, permanece Nelson Jobim no governo Dilma?
Jair Krischke – Por que foi imposto por Lula. Esse é um dos ministros que ele bancou. Sei que os militares estão muito satisfeitos com Jobim. Ele resolveu o problema dos salários da categoria, que novamente está ganhando bem. Além disso, tem comprado os “brinquedinhos” que eles gostam. Todos os dias chegam tanques da Alemanha ao Rio Grande do Sul. Aviões foram adquiridos, e submarinos foram encomendados. Com habilidade, Dilma irá vencer essa situação, mas também tenho a expectativa de que, se Jobim ficar recalcitrante em algumas posições, a presidenta mande-o embora solenemente. Quando digo isso, falo com conhecimento de causa porque conheço Dilma. Ela não tem pavio comprido, não.
IHU On-Line – A partir desses “afagos” aos militares munindo-os de armamentos, como é possível compreender a postura do Brasil frente à política armamentista que é praticada no restante do mundo e do continente?
Jair Krischke – Ocorre que Hugo Chávez foi o elemento de desequilíbrio em nossa região. Ele comprou muito armamento da Rússia, e isso trouxe desequilíbrio para os países vizinhos. O Brasil passa, então, a se rearmar como uma resposta. Olhei os números há poucos dias e nosso país tem gasto em armamentos mais do que o dobro, em termos proporcionais, do que os demais países da região. A indústria bélica brasileira também tem suprido essa demanda dos militares, além dos armamentos importados adquiridos. Acontece que só ficamos sabendo dos armamentos adquiridos de outros países, por que, então, a mídia tem acesso e divulga. Quando são compras internas, isso nem vem a público. Esse acúmulo de armas é preocupante, porque com o mínimo pretexto elas podem ser usadas. O que nos salva é o excelente trabalho do Itamaraty, que trata todas essas questões de belingerância. Eles têm uma habilidade diplomática incrível, muito superior a diversos outros países que conheço. Se no Brasil outros serviços públicos não funcionam, o Itamaraty é uma exceção impressionante. São muito competentes.
IHU On-Line – Qual é o balanço que faz dos oito governos de governo Lula em relação à anistia e à Comissão da Verdade?
Jair Krischke – Lula deu sequência ao que FHC vinha fazendo. Primeiramente, criou uma comissão de mortos e desaparecidos, que tinha como objetivo indenizar os familiares das vítimas, mas também a obrigação de investigar o que havia ocorrido. Contudo, o que foi feito foi apenas o pagamento das indenizações, numa postura de “cala a boca”. Pagando, liquidamos o assunto. Essa era a ideia. Algo do tipo “agora chega”. No governo Lula foram feitos alguns desses pagamentos. No Brasil, esses assuntos se tratam “pagando”. Na verdade, se trata de detectar as responsabilidades, e não apenas de dar dinheiro.
Em São Paulo, o Ministério Público federal entrou com uma ação muito interessante. Alguns militares, inclusive o general Brilhante Ustra, deveriam ressarcir os cofres públicos das indenizações que o Estado brasileiro havia pago. Se eles foram os torturadores, foram eles que mataram, então devem indenizar os cofres públicos que estão pagando as famílias. Em seguida o juiz mandou arquivar o processo. Mas o pensamento jurídico está correto. Se um funcionário público cometeu improbidades e o Estado foi acionado pela vítima, deve, em seguida, acionar o funcionário para que este devolva o dinheiro da indenização.
"A criação da Comissão da Verdade é fundamental, importantíssima. Temos essa história recente do Brasil que precisa ser esclarecida"
Jobim em ação
Vou destacar outro aspecto. Havia uma decisão em primeiro grau da justiça federal de Brasília que dizia que o Exército brasileiro deveria abrir os arquivos da Guerrilha do Araguaia, sob pena de pagar uma polpuda multa diária. Essa decisão ocorreu nos primeiros dias do governo Lula. O presidente mandou o advogado geral da União recorrer, o que foi feito. Isso acabou no Supremo, que decidiu que essa sentença tinha valor e que o Exército deveria, sim, abrir os arquivos para poder encontrar os corpos. Essa decisão é de outubro de 2007, mas só chegou ao Palácio do Planalto no ano passado. Aí entra o Jobim outra vez. Às pressas, ele fez uma portaria ministerial criando um grupo de trabalho, sem a participação de familiares, para procurar os corpos. Mas então Jobim, usando seu talento jurídico, se deu conta que uma portaria era pouco. Então Lula fez um decreto; quando juridicamente o presidente faz um decreto, é ao ministro que compete dar baixa a uma portaria dizendo como vamos cumprir o decreto presidencial. Nesse caso, ocorreu o contrário. A comissão foi criada e rumou ao Araguaia, ficando lá por meses. Nada foi encontrado. Um mês depois, uma das vítimas, junto de seu esposo, um policial federal aposentado, foi para o Araguaia. Lá cavaram cerca de 30 metros de distância de onde a comissão de Jobim havia procurado os corpos. E começaram a encontrar ossos. É surpreendente como esses assuntos têm sido tratados no Brasil.
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Governo Dilma: as esperanças para a Comissão da Verdade. Entrevista especial com Jair Krischke - Instituto Humanitas Unisinos - IHU