27 Março 2010
Na opinião do professor e pesquisador do PPG em Comunicação da Unisinos, Pedro Gilberto Gomes, as instituições religiosas ainda vêem a Internet como um “dispositivo tecnológico”. A partir do uso da Internet, explica, se cria um ambiente de midiatização, ou seja, uma espécie de “caldo cultural onde as coisas interagem”, surge um “novo patamar baseado numa lógica de inter-relação”. Nesta nova ambiência, acrescenta, “as instituições podem estabelecer novos tipos de relações” ao invés de utilizar a rede apenas como um meio para divulgar sua mensagem. Com base nisso, ele lança o questionamento: “Como as Igrejas, dentro desse ambiente, desse mundo interconectado, podem trabalhar no estabelecimento de vivência, de espiritualidade, de religião?”
Ao utilizarem a Internet apenas como um meio para alcançar mais fiéis, muitas instituições não estão refletindo sobre que espiritualidade está sendo gerada a partir desse processo. Na avaliação do pesquisador, “o simples fato da pessoa se relacionar via portal já está criando uma forma de espiritualidade ou uma forma de ver religião diferente. Isso é o que deve ser questionado. Esses são os desafios e perspectivas”. O uso da Internet desacompanhado de uma reflexão mais profunda pode trazer alguns riscos e gerar efeitos desconhecidos ou indesejados. “O desejo de incentivar a solidariedade, as pessoas a rezarem, pode, ao invés disso, fazer com que elas formem um Deus a sua imagem e semelhança, pode incentivar o individualismo, as pessoas podem fazer a sua própria religião”, conclui.
Pedro Gilberto Gomes, padre jesuíta, irá ampliar este debate no IHU ideias do dia 8-4-2010, onde discute Espiritualidade via Internet: desafios e perspectivas. O encontro acontece na sala Ignacio Ellacuría, no IHU, às 17h30min.
Pedro Gilberto Gomes é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e especialista em Teologia pela Universidade Católica de Santiago, no Chile. Mestre e doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP. Entre suas obras, destacamos Filosofia e ética da comunicação na midiatização da sociedade (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006), Comunicação e governabilidade na América Latina (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008) e Midiatização e processos sociais na América Latina (São Paulo: Paulus, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em linhas gerais, o que o senhor pretende abordar ao relacionar espiritualidade e Internet? Essa relação funciona?
Pedro Gilberto Gomes – Existem vários sites de organizações católicas ou não, que usam a Internet como um espaço de interação, de congregação das pessoas. Essas instituições consideram, por exemplo, a Internet um meio importante para passar a sua mensagem. Alguns sites disponibilizam as leituras dominicais, velas virtuais, enfim, há todo um arcabouço de ações litúrgicas que são veiculadas a partir dos portais. Essa é uma concepção de dispositivo tecnológico, ou seja, antigamente, determinadas atividades eram realizadas na Igreja e, hoje, também estão disponíveis na Internet.
Participei de uma defesa de dissertação de mestrado em Santa Maria, em que a estudante analisava o site da Canção Nova. Neste portal, no link de Liturgia, é possível escolher ler apenas as leituras ou os sermões. O conteúdo está fragmentado, e o internauta pode montar sua própria missa. Muitos pensam que essa é uma maneira de chegar na residência das pessoas com maior possibilidade. Mas, a partir disso, me pergunto: que tipo de espiritualidade está sendo criada, gestada? Não estou pensando na instituição Igreja, mas sim que a vivência religiosa, a espiritualidade como um todo, é uma produção simbólica fundamental na vida do homem. Essa religiosidade é importante. Agora, quando as instituições religiosas fazem uso massivo desses novos ambientes, temos de nos perguntar que tipo de religiosidade, espiritualidade está surgindo desse processo. Que diferença existe entre acender uma vela para o padre Reus num site, ou ir até o santuário? Esse é o questionamento. É um desafio que se tem de responder. Ouvir o sermão do padre na Internet tem o mesmo significado de ouvi-lo na Igreja? Na missa há outro ambiente. Não estou dizendo que isto é bom ou ruim. Estou questionando que tipo de espiritualidade esses espaços virtuais estão criando. É esse ambiente de midiatização que está trazendo desafios para nós. Então, não se deve perguntar como uma instituição usa um portal para fomentar a espiritualidade. Isso não importa. Tenho de perguntar: ao fazer isso, que forma de espiritualidade está sendo formada? É por ai que vou esboçar alguma coisa no evento.
IHU On-Line - As instituições religiosas têm a dimensão da riqueza que essa mídia proporciona? Ela consegue compreender o que significa hoje esse novo patamar?
Pedro Gilberto Gomes – Claro que elas têm. Todas as instituições perceberam e estão usando esse meio. Só que elas estão colocando nos portais, simplesmente, a transcrição do que elas já vinham fazendo. A Igreja faz celebração litúrgica presencial desde que foi criada. Com essa sofisticação tecnológica, ela reproduz a missa que era feita para um grupo pequeno nos portais, com o objetivo de atingir milhares de pessoas. As instituições perceberam a importância desses meios para divulgar a sua mensagem e promover as suas ações. Entretanto, o que elas não se perguntam – e que é o grande desafio –, é se, ao fazer essa transposição de suas ações milenares para um site de relacionamento, estão criando uma nova forma de espiritualidade independente do desejo delas, ou uma forma diferente de fazer e viver religião. Vou exemplificar: uma criança que, desde pequena, desenvolve a sua consciência religiosa de espiritualidade via Internet terá a mesma vivência religiosa de uma criança que participa da catequese, que vai à missa com os pais? Essas são formas iguais ou diferentes de fazer religião? De ter espiritualidade? E quando digo isso, novamente, não estou afirmando que uma é boa e outra é ruim. Estou apontando a existência de dois níveis de diferença. Que tipo de espiritualidade emerge de um portal? Isso vai além do conteúdo.
IHU On-Line – A partir do uso da tecnologia e da Internet, as pessoas podem, também, ter uma relação mais individualista com a sua espiritualidade?
Pedro Gilberto Gomes – Vou usar a palavra individualista, mas sem dar a conotação de juízo moral. Por exemplo: se um jovem passa parte do seu tempo navegando na Internet, se todas as suas relações amorosas acontecem no ambiente virtual, dizemos que ele está vivendo uma ilusão e precisa de acompanhamento. Mas, por outro lado, se o jovem não tem nenhuma vivência religiosa a não ser a virtual, achamos isso normal. Há muitos anos, foi feita uma pesquisa com jovens paulistas que jogavam vídeo-game. Percebeu-se que não era o conteúdo do vídeo-game que estava mudando a vida destes jovens, mas o simples fato de jogar mudava a lógica do raciocínio deles. Para esses jovens, o fato de alterar essa lógica linear (início, meio e fim) não representa nenhum problema, porque esse é o modo de raciocínio do jogo. Então, o que está em questão não é o modelo do jogo.
McLuhan já dizia, na década de 60: o que muda o comportamento das pessoas não é o conteúdo da televisão, mas o simples fato de ver televisão. Na vivência das espiritualidades, é essa realidade que as instituições religiosas não estão percebendo porque, para elas, o importante sempre foi a mensagem. E tudo aquilo que ajuda a levar a mensagem para um maior número de pessoas é bom. Então, o que muda é a mensagem. O instrumento é completamente neutro.
Se questionarmos mais profundamente para além do instrumento, vamos perceber que, independente do conteúdo, o fato de ele entrar no relacionamento já está criando um novo tipo de religião, de espiritualidade, porque mesmo a religiosidade não é unívoca. Na Igreja Católica, há setores que vão de A a Z, da extrema direita, de um espiritualismo total, até a extrema esquerda. Quem ainda faz isso está num ambiente do passado. O ambiente atual está exigindo outra coisa e nos faz considerar que, independente da mensagem de extrema esquerda ou da extrema direita, o simples fato da pessoa se relacionar via portal já está criando uma forma de espiritualidade ou uma forma de ver religião diferente. Isso é o que deve ser questionado. Esses são os desafios e perspectivas. Então, muito menos respostas e muito mais questões é que eu vou colocar na palestra.
IHU On-Line - Quais os riscos de uma possível ingenuidade da Igreja ao fazer uso da Internet sem se dar conta das suas potencialidades e consequências?
Pedro Gilberto Gomes – O risco é ter uma intenção, essa não ser concretizada e ainda gerar um efeito desconhecido ou indesejado. O desejo de incentivar a solidariedade, as pessoas a rezarem, pode, ao invés disso, fazer com que elas formem um Deus a sua imagem e semelhança, pode incentivar o individualismo, as pessoas podem fazer a sua própria religião. A Canção Nova, quando, em seu site, divide a missa, está iniciando uma consequência que não pode ser mensurada. A missa tem uma dinâmica, uma lógica e um movimento que forma um conjunto. A partir do momento em que, num portal, é feita uma partição dessa missa, a pergunta é: que tipo de missa é essa?
Vou dar outro exemplo: Partenia é uma diocese virtual (www.partenia.org). Um bispo francês perdeu a sua diocese em função de um problema com o Vaticano. Para continuar exercendo a função de bispo, o Vaticano o nomeou como bispo de Partenia, que foi uma diocese da Ásia Menor, a qual acabou há dois mil anos. Os amigos queriam saber o que era a tal Partenia, e ele explicou que se tratava de uma diocese “virtual”. A partir disso, os amigos dele tiveram a ideia de criar uma diocese na Internet. O site deles funciona em espanhol, alemão, francês, inglês e português e tem fiéis no mundo todo. No momento em que eles criam uma diocese virtual e que esse bispo começa a interagir com todas essas pessoas, que religião emerge desse processo? Que Igreja é essa? Que tipo de religiosidade nasce? Se não nos preocuparmos com isso, estaremos gerando efeitos desconhecidos, e, por via das vezes, contrários ao que desejamos. Não sou contra esses sites, acho que eles são importantes, mas precisamos refletir sobre essas questões.
Religião, (des)religião, (re)religião
McLuhan falava que a história da humanidade poderia ser dividida a partir da história dos meios de comunicação e, que, no início, pelo gregarismo, as pessoas humanas se uniram em tribos, onde havia a cultura oral e a transmissão da história da tribo era feita pelos anciões. Quando se inventou a escrita, que sinalizou um salto na história da humanidade, McLuhan diz que começou a destribalização porque as pessoas não dependiam mais dos anciões para contar histórias. O auge da destribalização foi a invenção dos tipos móveis por Gutemberg. Com a eletricidade e os meios eletrônicos, McLuhan disse que houve uma comunidade verbo-oral que criou uma retribalização. Só que esse processo, essa aldeia global, se dá num nível diferente do passado, ou seja, não significa retomar o que já existiu. Nós vivíamos num mundo fechado de espiritualidade, o mundo fragmentou, e as pessoas estão em todos os lugares. Agora, estamos retomando, via esses mecanismos de portal, a religiosidade. Então, fazendo um neologismo: religião, (des)religião, (re)religião. Entretanto, este modo simbólico de relacionamento, que está sendo retomado via esses meios para poder congregar as pessoas que estão dispersas, cria uma religião diferente da primeira. Não se trata simplesmente de uma repetição, uma retomada. Todas as experiências que tentaram retomar, fracassaram.
IHU On-Line – A retomada a partir dos meios digitais pode dar certo?
Pedro Gilberto Gomes – Não sei. Só sei que se trata de outra realidade, de outra ambiência, portanto é uma nova vivência religiosa, de espiritualidade.
IHU On-Line – O que podemos entender por midiatização e como relacionar este conceito com a espiritualidade?
Pedro Gilberto Gomes – Esse mundo da sociedade de midiatização está criando uma espécie de gloretribalização, esse mundo está proporcionando uma nova ambiência que está criando novos espaços de relacionamento em termos geral. Essa rede em que as pessoas estão interconectadas está criando novos espaços de relacionamentos, novos espaços de espiritualidade. Isso coloca um desafio para nós. Volto a dizer: as Igrejas não estão preparadas para isso. O que elas conseguem compreender é o fato de ter uma vivência que foi fragmentada por uma série de motivos, e agora ela usa esses meios para recongregar as pessoas. Só que eles querem fazer com que as pessoas retornem ao estado que acontecia anteriormente. E essa recongregação acontece em outro nível, outro estágio. Nós estamos em pleno processo de “salto” e não sabemos aonde vamos cair, mas é certo que vamos para um lugar distinto do qual queremos ir. Lançamos, mas ainda não chegamos ao outro estágio. Dessa nova ambiência, dessa nova espiritualidade e desse novo modo de fazer religião estamos - usando uma expressão poética - levantando a fímbria do manto. Ainda não sei tudo que tem do outro lado.
IHU On-Line – Podemos dizer que a lógica da midiatização ainda não é compatível com a lógica dessas instituições?
Pedro Gilberto Gomes – Poderia dizer isto: estamos vivendo uma nova lógica, que não é simplesmente a retomada da lógica tradicional. Gosto de dizer que começamos a viver uma nova ambiência, e quando as Igrejas entram para esses meios, elas pensam que os meios são apenas dispositivos tecnológicos e, portanto, elas estão pensando que devem retomar as pessoas e trazê-las para sua ambiência. Acontece que a ambiência que essa realidade está criando é outra e não a passada. Essa é a questão.
IHU On-Line - Como as teorias de Teilhard de Chardin (a noosfera, por exemplo), podem contribuir para a compreensão do fenômeno da espiritualidade via Internet?
Pedro Gilberto Gomes – O que Teilhard de Chardin diz é que estamos num processo de evolução. Todo o mundo está evoluindo. O homem é um dos estágios dessa evolução, mas ela continua. Essa evolução da complexidade, ele diz que o homem o faz também através do desenvolvimento da técnica. Então, a técnica não é algo externo.
Nessa caminhada em direção ao Ponto Ômega, essa unidade total, Teilhard diz que toda a técnica se articula com o ser humano e ela é expressão dessa unidade. Esse supercérebro que ele cita é justamente uma conjugação de todos os cérebros da humanidade, formando esse cérebro único num desenvolvimento.
A técnica está intrinsecamente ligada ao ser humano e faz parte da humanidade. Claro que essa realidade vai fazer com que a minha forma de me relacionar com o transcendente, portanto, toda uma vivência religiosa, atinja outras dimensões que não essa atual.
IHU On-Line – Como a midiatização pode ajudar as instituições a construir uma rede de inter-relações?
Pedro Gilberto Gomes – Essa pergunta está partindo da antiga ambiência, porque a midiatização é vista como um dispositivo tecnológico que alguém pode manejar. E a relação é contrária: como as instituições, navegando dentro desse novo ambiente, podem estabelecer novos tipos de relação, e não utilizando isso para algo. Eu posso utilizar a mídia, mas a midiatização é o ambiente que se cria, é como se fosse um caldo cultural onde as coisas interagem, e as instituições estão ali dentro, trabalhando nesse novo ambiente no desenvolvimento dessa vivência espiritual e religiosa, que não deixa de ser uma construção simbólica, que se dá num novo patamar baseado numa lógica de inter-relação. Até porque as pessoas já estão ligadas. A pergunta é: como as Igrejas, dentro desse ambiente, desse mundo interconectado, podem trabalhar no estabelecimento de vivência, de espiritualidade, de religião. Então, a questão é: como as religiões podem se inserir no desenvolvimento de espiritualidade, que não é simplesmente a transposição de seus antigos processos mentais para a Internet? As instituições religiosas precisam mudar a ambiência ou pelo menos se questionar sobre isso.
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Espiritualidade na Internet: o surgimento de uma nova religião? Entrevista especial com Pedro Gilberto Gomes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU