14 Dezembro 2009
No último mês de outubro, o Ministério da Justiça, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, lançou o Marco Regulatório Civil da Internet. A intenção, segundo o Ministério, é respeitar a natureza colaborativa da web. Regras de responsabilidade civil para provedores e usuários e medidas para preservar a liberdade de expressão e a privacidade compõem a temática do processo colaborativo para estruturação do Marco Civil. A respeito dessa iniciativa, o advogado e professor Marcel Leonardi conversou por telefone com a IHU On-Line. Leonardi considera boa a ideia de consulta à sociedade, mas acredita que o governo tem a ganhar se focar em questões importantes como a definição da responsabilidade dos provedores.
“A discussão é se esses intermediários, que fornecem ferramentas virtuais, têm algum tipo de responsabilidade e, se têm, qual é. Muitas vezes, as pessoas não enxergam que a ausência de definição de responsabilidade atrapalha a inovação e o crescimento da Internet no Brasil”, garante. Leonardi fala ainda sobre o plano nacional de expansão da banda larga, os principais Cibercrimes que ocorrem no Brasil e as contribuições da Confecon para a construção do Marco. “Acho que a Confecon pode entrar perfeitamente nessa discussão relativa à qual é a extensão da liberdade de expressão e o que desejamos para o Brasil, principalmente agora que estamos às vistas com a queda da lei de imprensa e temos uma possibilidade de tentar regulamentar de uma maneira mais democrática do que foi no passado”, destaca.
Marcel Leonardi, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e PhD pela University of California at Berkeley - Boalt Hall School of Law. Atualmente, é professor de cursos de especialização e de pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP/SP), Escola Superior de Advocacia (ESA/SP) e Centro de Extensão Universitária (CEU/SP). Atua como advogado e assessor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No que consiste o Marco Civil da Internet Brasileira?
Marcel Leonardi – O Marco Civil consiste em uma iniciativa de regulamentar a parte civil de alguns aspectos da Internet. Preocupou-se muito no início com a ideia de combater os crimes praticados por meio da Internet, como a questão da pornografia infantil, a disseminação de vírus e fraudes, e esqueceu-se um pouco da regulamentação civil, ou seja, definir responsabilidades e certos critérios de quem “paga a conta” no momento em que alguém comete algum tipo de ato ilícito por meio da Internet. Se duas pessoas se ofendem mutuamente por meio de uma ferramenta, se alguém expõe a imagem de outra pessoa, publica um vídeo íntimo ou cria algo falso, a ideia era discutir justamente como isso seria resolvido do ponto de vista civil. O objetivo do Marco Civil é tratar destas e de outras questões, regulamentar, por exemplo, a questão da privacidade na Internet, a responsabilidade dos intermediários e outros aspectos muito importantes como a liberdade de expressão.
IHU On-Line – Considerando a Internet e suas diversas possibilidades, qual a sua opinião sobre as tarefas que o governo deve assumir a esse respeito?
Marcel Leonardi – Acho muito boa a iniciativa do governo de ouvir toda a sociedade para entender quais são os principais anseios e problemas da internet, mas acho que o governo tem muito a ganhar se tiver um foco em questões que, particularmente, considero mais importantes. Essas questões são exatamente sobre a definição do sistema de responsabilidade dos provedores e dos intermediários, e, principalmente, sobre como fica a investigação dos atos ilícitos, que é uma questão polêmica da guarda de certos logs e dados de acesso a essas ferramentas todas por parte dos usuários. Um exemplo prático é uma discussão que existe muito claramente hoje. O sujeito usa uma ferramenta comum da Internet, como o Twitter, o Facebook ou Orkut, e comete algum tipo de ato ilícito. A discussão é se esses intermediários, que fornecem ferramentas virtuais, têm algum tipo de responsabilidade e, se têm, qual é. Se é só de remover um conteúdo eventualmente ilegal, de avisar quem é, de tentar ajudar a identificar essa pessoa, ou eles serão responsabilizados pelo mero fato de que a ferramenta foi utilizada. Com esse tipo de discussão, o governo tem a ganhar se fomentar algum projeto de lei que estabeleça regras a respeito disso.
IHU On-Line – Nesse sentido, como a revisão dos contratos de concessão está inserida?
Marcel Leonardi – A concessão foge do objetivo do Marco Civil. O Marco Civil não aborda essa questão pelo fato de que a ideia é traçar alguns direitos dos usuários e algumas isenções de responsabilidade. A questão da concessão, principalmente de telecomunicações ou, eventualmente, se os portais podem ou não ter capital estrangeiro, não está sendo discutida diretamente no Marco Civil, ainda que, obviamente, exista um diálogo e uma referência direta. Não adianta nada termos um Marco Civil e não ter infraestrutura capaz de lidar com o crescimento da Internet no país.
IHU On-Line – Quais os eixos que devem fazer parte do Marco Civil da Internet Brasileira?
Marcel Leonardi – O Marco Civil definiu claramente alguns eixos. Primeiro, essa questão dos direitos dos usuários, discutindo a questão dos limites e da extensão da privacidade, da liberdade de expressão. O segundo eixo é a questão da responsabilidade dos intermediários, propriamente dita, para definir essas regras claras de isenção. Insisto neste ponto, nem tanto porque o pesquiso há anos, mas pelo fato de que, muitas vezes, as pessoas não enxergam que a ausência de definição de responsabilidade atrapalha a inovação e o crescimento da Internet no Brasil. Digo isso não só como acadêmico, mas principalmente como advogado que recomenda isso aos clientes no dia-a-dia.
É muito comum me procurarem perguntando quais são os riscos legais na abertura de um site hoje e o que deve ser feito. Quando se expõe o quadro, que na ausência da regulamentação tem decisões para todos os lados e tem decisões que entendem que o mero fato de se fornecer uma ferramenta gera responsabilidade, a pessoa fica com medo. Se alguém quer abrir um novo Orkut ou Twitter e quer saber quais são os riscos que corre no Brasil, e se for dito a essa pessoa que o risco é alguém usar mal essa ferramenta e dela “pagar a conta”, esse alguém pensa três vezes antes de abrir um serviço como esse. Toda essa parte, tanto de direito dos usuários como poder saber de que forma usamos a web para se expressar são importantes, mas creio que seja mais importante essa parte de discussão da responsabilidade de quem produz as ferramentas.
Eu sinto que eles têm sido deixados um pouco de lado, até quem participa mais ativamente do Marco Civil hoje que são os ativistas digitais, pessoal bem engajado na defesa dos direitos dos usuários, está esquecendo um pouco esse lado. Não é defender grandes empresas apenas, não é que Google e Yahoo, e empresas desse porte se beneficiem com o sistema de menos responsabilidade, o fato é que, sem um sistema equilibrado, não se terá os novos Googles e Yahoos brasileiros.
IHU On-Line – Qual a contribuição da Confecon para o Marco Civil?
Marcel Leonardi – Acredito que sim. Apesar de a discussão estar focada na Conferência Nacional de Comunicação - Confecon, especificamente, em relação à liberdade de expressão e aos limites da privacidade, acho que isso vai influenciar principalmente o primeiro eixo. Hoje, como a web dá todas as ferramentas que dão voz a qualquer cidadão, fica muito fácil de publicar o que se quer, mas não são necessariamente todos que querem ouvir. Acho que a Confecon pode entrar perfeitamente nessa discussão relativa à qual é a extensão da liberdade de expressão e o que desejamos para o Brasil, principalmente agora que estamos às vistas com a queda da lei de imprensa e temos uma possibilidade de tentar regulamentar de uma maneira mais democrática do que foi no passado.
IHU On-Line – Como você analisa a possibilidade de um plano nacional de expansão da banda larga?
Marcel Leonardi – É uma iniciativa interessante, mas depende muito do que o governo pretende traçar como parâmetro. Sei que há discussões a respeito de uma eventual liberação, a partir de agora, dos fundos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), uma verba extra que é recolhida das grandes empresas de telecomunicações, mas sei que existem muitos interesses em jogo e é difícil de definir como isso será implementado. Não sei se o governo investir diretamente nisso é uma boa ideia, talvez seja mais interessante tentar fazer com que as empresas invistam nessa infraestrutura para atender principalmente as regiões em que normalmente isso nunca chegaria.
Digo isso porque o grande mercado de banda larga obviamente se concentra nas metrópoles e faz com que haja até um desinteresse por parte das grandes empresas em oferecer isso nos rincões do país, pois, o retorno sobre o investimento é muito baixo. Acho que o governo tem um papel fundamental de tentar incentivar isso seja de qual maneira for, de subsídios, uso dessas verbas etc., porque, se não for assim, de nada adianta, teremos a concentração de banda nas grandes cidades, e o pessoal que justamente mais precisa dela para se integrar digitalmente não terá acesso a isso.
IHU On-Line – Quais os principais Cybercrimes que se tem notícia no Brasil?
Marcel Leonardi – Existem vários tipos. As pessoas fazem muito alarde sobre a pornografia infantil, mas, na minha experiência profissional, o que mais tenho visto são fraudes. Tentativas tanto de obter senhas de terceiros para todo o tipo de finalidade, principalmente bancária, como outros tipos de situações em que há muita calúnia e difamação. Isso o pessoal, às vezes, não leva para frente no âmbito criminal, por exemplo, porque é muito comum um “perder a cabeça” e xingar o outro pela Internet, e levar isso para a esfera criminal é um pouco exagerado. Porém, no dia-a-dia prático do profissional, são as questões das fraudes, e, em menor escala, tem a questão da pornografia infantil. Mas, apesar de o crime ser tão hediondo, e o pessoal ficar tão assustado e enojado com isso, esta questão ganhou muito espaço na imprensa. Porém o “grosso” não é isso, são as fraudes e tentativas de acesso indevido.
Muita gente tem questionado se seria necessário mesmo o Marco Civil e acham que hoje as leis atuais já não bastam. A principal vantagem do Marco Civil é afastar um pouco essa insegurança jurídica que temos hoje. Nesta questão específica da responsabilidade dos intermediários, tenho visto muitas decisões de certos tribunais que entendem que o mero fato de se oferecer um espaço para os internautas, uma ferramenta como blogs, por exemplo, já gera responsabilidade, então pouco importa que o usuário seja o verdadeiro culpado pelo ato ilícito, os juízes atribuem responsabilidade e fazem com que o intermediário “pague a conta”. Em contrapartida, há outras decisões que entendem que essa responsabilidade só existe quando o provedor é omisso, ou seja, quando ele é avisado que existe algo, recebe uma ordem judicial avisando que existe um conteúdo ilegal e não faz nada, aí sim é que surgiria a responsabilidade.
Como existe essa incerteza, às vezes, o provedor não sabe se ele faz algo e será responsabilizado, ou não faz e será responsabilizado mesmo assim, o Marco Civil teria esta vantagem de eliminar algumas dúvidas e incertezas que existem hoje nos tribunais. Alerto para isso, pois sei que há alguns setores que divergem, algumas pessoas acham que o Marco Civil é uma bobagem, que seria desnecessário etc., mas acho que a ideia não é regulamentar a Internet para travar, pelo contrário. É regulamentar certos aspectos das pessoas e do uso que é feito na Internet, justamente que para que ela possa continuar crescendo, e que tenhamos inovação dentro do Brasil.
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Por um Marco Civil da Internet. Entrevista especial com Marcel Leonardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU