01 Dezembro 2009
“O principal legado que a Dorothy deixou foi a forma como ela viveu, ou seja, tratando a terra como se fosse sua mãe”, revela a irmã Kátia Webster na entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone. Ela relembra momentos da vida de irmã Dorothy Stang com quem trabalhou durante 11 anos, no Pará, lutando pelos pobres que não têm terra e são oprimidos pelos madeireiros e fazendeiros da região.
No próximo dia 10, o assassino da irmã Dorothy será julgado, quase cinco anos depois de matar a irmã estadunidense. “Os mandantes continuam respondendo em liberdade. Continuam impunes no sentido que os processos de investigação e julgamento não têm chegado ao júri. A esperança é que, no próximo ano, eles sejam finalmente julgados”, explicou a irmã Kátia, que faz parte da Congregação das Irmãs de Notre Dame.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quando a senhora conheceu a Ir. Dorothy?
Kátia Webster – Ela estava aqui desde 1982, e eu cheguei em 1993. Então, ela já tinha 11 anos de moradia e trabalho aqui no Xingu antes de eu vir para cá. Na verdade, acho que ela chegou ao Brasil em 1966. Eu vim para o Brasil porque sempre quis morar aqui e somar forças com o povo que estava lutando pela libertação através da palavra de Deus.
IHU On-Line – Passados quase cinco anos do assassinato de Ir. Dorothy, as coisas mudaram na região de Anapu ou continuam como antes?
Kátia Webster – Mudaram, de certa forma. O povo mudou porque se firmou na luta, e a sua organização é sempre mais firme, pois tem assumido a luta pela segurança na terra. O povo luta, portanto, no sentido de saber que a terra é dele, que lá ele pode ficar e não tem quem tire, e ele tem segurança para comercializar o seu produto. Dessa forma, ele procura aprender novas técnicas para que essa terra não “canse”, ou seja, para que não fique improdutiva.
IHU On-Line – Os mandantes do assassinato de Ir. Dorothy continuam impunes?
Kátia Webster – Os mandantes continuam respondendo em liberdade. Continuam impunes no sentido que os processos de investigação e julgamento não têm chegado ao júri. A esperança é que, no próximo ano, eles sejam finalmente julgados. Os mandantes estão em liberdade sim, não estão pagando por aquilo que fizeram. Mas o caso não foi encerrado.
IHU On-Line – O medo é o principal inimigo na luta contra a impunidade?
Kátia Webster – Talvez seja medo, mas talvez seja também a questão do dinheiro, ou seja, o que o dinheiro pode comprar para poder segurar, para poder fazer com que seus crimes não cheguem à justiça. Os advogados sempre encontram mais um recurso, mas o pobre não tem acesso a isso. O pobre, quando é acusado, vai logo a julgamento e ponto final. Mas quando há muito recurso envolvido, sempre há mais uma brecha para poder prolongar o processo.
IHU On-Line – Houve avanços com o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), origem do conflito que levou Dorothy à morte?
Kátia Webster – Houve. Quando Dorothy morreu, não tinha muita gente morando dentro do Projeto de Desenvolvimento Sustentável onde ela foi morta. Depois do seu assassinato, entrou muito mais gente no projeto. Nós estamos ainda vivendo um processo de liberar lotes que são do PDS na justiça. O contrato original das terras é dos primeiros donos, que nunca vieram, mas receberam por leilão. Esses donos viviam no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, São Paulo e, como nunca vieram, os contratos foram cancelados. No entanto, alguns espertos venderam esses lotes para o qual foram criados documentos de compra e venda que têm que ser anulados. Este processo de declaração de que as terras são da União é longo. A terra onde Dorothy foi assassinada era assim. Desde que ela morreu, este lote foi declarado para o PDS e para o povo. As estradas já são melhores, ainda não estão perfeitas, as escolas ainda são frágeis, mas a luta continua para que seja uma escola boa. Avanços há, porque o povo está lá dentro e produzindo, mas é preciso ainda mais. Falta assistência técnica aprimorada, precisa terminar as estradas, construir as escolas de alvenaria, terminar as casas, puxar a energia que ainda não chegou e tirar o resto dos lotes que ainda estão com a justiça.
IHU On-Line – Qual a sua avaliação da ação do governo na região?
Kátia Webster – Estamos com o INCRA e o IBAMA aqui, mas eles ainda são fragilizados, não estão recebendo os recursos necessários para cumprir sua agenda na região. O governo do estado é ainda mais frágil, ele não tem dado o apoio ao povo, assim como o governo do município, que está muito aliado aos fazendeiros e madeireiros.
IHU On-Line – Com quem vocês contam na região?
Kátia Webster – Em primeiro lugar, é o povo mesmo, o desejo de se organizar e ver os filhos seguros. A gente conta com essa organização e com órgãos como o INCRA e o IBAMA – embora sejam extremamente frágeis. Além disso, contamos com as igrejas do município, não apenas a igreja católica.
IHU On-Line – O filme “Mataram Irmã Dorothy” tem auxiliado na luta que se trava na região?
Kátia Webster – Eu acho que sim, porque, de certa forma, abriu os olhos para a luta. Hoje vemos até que ponto tem gente que é capaz de se vender por dinheiro. Além disso, ajudou, valorizando o povo e sua luta, com isso, ele se sentiu fortificado. Essas forças são muito importantes, pois determinou o povo a viver dentro desse processo de sustentabilidade. O filme mostrou isso.
IHU On-Line – É correto afirmar que o caso ganhou repercussão mais forte no exterior do que no Brasil?
Kátia Webster – Acho que não. Sinto que a questão é muito forte no Brasil. Sei que tem certos pontos lá fora onde divulgam. Mas onde teve repercussão foi aqui. Seja onde for, no Brasil, nos lugares onde andamos, há pessoas que nos procuram e perguntam: “você é irmã da Dorothy?”, “como está Anapu hoje?”. Sinto muito respaldo aqui no Brasil.
IHU On-Line – Na opinião da senhora, qual foi o principal legado que a Ir. Dorothy deixou?
Kátia Webster – O principal legado que a Dorothy deixou foi a forma como ela viveu, ou seja, tratando a terra como se fosse sua mãe. Estamos aqui para conviver com essa terra, e não para explorá-la. Estamos aqui para viver de tal modo que não podemos tirar a vida da terra até acabar com ela. A luta tem que ser feita em união, e não apenas por uma pessoa. Precisamos acreditar uns nos outros, a vida se sustenta na união e na convivência com a natureza. Além disso, a persistência da Dorothy é um legado. Ela não desistia. A vida é para todos mesmo, e o sistema econômico vigente oferece lucro apenas para poucos. Vai ocorrer, em Copenhague, um encontro sobre o clima e o meio ambiente. Sobre isso, nós perguntamos: os países maiores, como Estados Unidos e China, estão realmente dispostos a concordar com o uso dos seus recursos? Se isso não acontecer, a coisa não vai andar, pois eles querem os benefícios apenas para eles.
IHU On-Line – A senhora também já recebeu ameaças de morte?
Kátia Webster – Nunca. A gente trabalha muito de forma anônima.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Dorothy Stang. Um crime ainda impune. Entrevista especial com Kátia Webster - Instituto Humanitas Unisinos - IHU