29 Junho 2008
“A crescente subjunção da economia sulina ao grande capital global, e a dissolução do tecido socioeconômico tradicional rio-grandense, no contexto de grande fragilidade do movimento social, erodiram objetiva e subjetivamente o que poderíamos chamar de ética republicano-castilhista, equiparando as práticas políticas regionais às do resto do Brasil. Agora, faz-se política para enriquecer, legal ou, mais e mais, ilegalmente.” A opinião é do historiador gaúcho Mário Maestri, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ele ainda afirma que a “identidade inventada” do gaúcho “sufoca as identidades nascidas das experiências sociais profundas, como as do mundo do trabalho urbano, rural, servil etc.”.
Mário Maestri é graduado em Ciências Históricas, pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, onde também realizou mestrado e doutorado na mesma área. Em 1991, fez o pós-doutorado na mesma universidade. Atualmente, é professor da Universidade de Passo Fundo. É autor de Uma história do Rio Grande do Sul: a ocupação do território (Passo Fundo: UPF Editora, 2006), O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência, sociedade (Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006) e Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário (São Paulo: Expressão Popular, 2007), entre outros.
De Mário Maestri, publicamos os Cadernos IHU no. 6 ("Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado. Gênese e Dissolução do Patriarcalismo Escravista no Brasil), no. 13 ("O escravismo colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender. A gênese, o reconhecimento, a deslegitimação"), no. 17 ("As Sete Mulheres e as Negras sem Rosto: Ficção, História e Trivialidade"), e no. 74 ("Raça, nação e classe na historiografia de Moysés Vellinho"). Todas as edições estão disponíveis neste sítio para download.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Podemos perceber elementos da trajetória histórica da política gaúcha na crise do governo do estado rio-grandense?
Mário Maestri - Ao contrário do resto do Brasil, no Rio Grande do Sul, a República promoveu o defenestramento das oligarquias pastoris por um novo bloco pró-capitalista castilhista-borgista que literalmente refundou o Estado regional, em um processo já definido como verdadeira “revolução passiva”, no sentido gramsciano. Ou seja, realizou reforma democrático-burguesa – controlada, conservadora e limitada – da sociedade, à margem da participação popular. Um processo possível devido à diversificação crescente, desde 1824, do perfil socioeconômico latifundiário-pastoril, devido à ação de dinâmica colonização de pequenos camponeses proprietários. Este processo ensejou uma gestão político-administrativa regional diferenciada dos estados dominados pela oligarquia agrária.
IHU On-Line – Qual é o espaço e o papel da ética política no Rio Grande do Sul de hoje?
Mário Maestri - Como assinalado, ao contrário da maior parte do Brasil, o Sul conheceu verdadeira brecha colonial-camponesa na ordem latifundiária. O que ensejou sociedade, ao menos no início, tendencialmente democrática, onde praticamente todos os colonos-camponeses possuíam terra para trabalhar com seus braços. A economia, a disciplina e o respeito ao cidadão eram valores dessa sociedade apoiada na produção familiar, que valorizava o trabalho individual, abominado pelo escravismo oligárquico. A própria industrialização sulina nasceu, sobretudo, de pequenas unidades familiares. Esses valores plebeus determinaram e influenciaram o comportamento político. Grandes políticos republicanos, como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e Leonel Brizola, foram acusados – e não sem razão – de enorme apego ao poder, mas jamais foram taxados de desonestos. A crescente subjunção da economia sulina ao grande capital global, e a dissolução do tecido socioeconômico tradicional rio-grandense, no contexto de grande fragilidade do movimento social, erodiram objetiva e subjetivamente o que poderíamos chamar de ética republicano-castilhista, equiparando as práticas políticas regionais às do resto do Brasil. Agora, faz-se política para enriquecer, legal ou, mais e mais, ilegalmente.
IHU On-Line - Os movimentos sociais estariam fragilizados, hoje, em relação aos anos 1980?
Mário Maestri - Após a grande derrota de 1964 e quinze anos de ditadura militar, o movimento social sulino e brasileiro conheceu, em 1979, verdadeira explosão das lutas sindicais e pela democratização da posse da terra. Apenas muito parcialmente vitorioso nas suas reivindicações materiais, esse movimento ensejou grande vitória política com a fundação do PT (1980), da CUT (1983), então com orientações socialistas e classistas, e do MST (1984). Esses foram também os anos da luta pela anistia e pelas eleições diretas, que não conseguiram, entretanto, impor a punição dos criminosos da ditadura e as eleições diretas. Nos anos seguintes, o mundo do trabalho conheceu duas décadas de depressão econômica tendencial, agravada pela vitória da contra-revolução neoliberal em fins dos anos 1980, desastre de proporções históricas. Esse processo determinou enorme desorganização do movimento popular e cooptação dos partidos e das direções políticas, sindicais e sociais populares para a colaboração com o capital. Como assinalado, a política passou a ser simples meio de progressão social individual, lícita ou ilícita. Destaque-se que essa forma de enriquecimento se espraiou horizontalmente na esfera do executivo e legislativo, municipal, estadual e federal, garantindo ganhos pequenos, médios e literalmente abismais.
IHU On-Line - Como avalia a postura do governo do Rio Grande do Sul em relação aos movimentos sociais? O que essa repressão significa?
Mário Maestri - Yeda Crusius elegeu-se com a conjunção da votação conservadora sulina com parte do eleitorado popular desgostoso com o governo Olívio Dutra, do PT, e Germano Rigotto, do PMDB. Sem projeto autonômico para o estado, propõe-se simplesmente facilitar a transferência para privados de recursos públicos; privatizar empresas estaduais e atrelar mais estreitamente a sociedade regional ao grande capital. Todos esses objetivos (liliputização do Estado; corte de investimentos; alienação acionária do Banrisul; facilitação selvagem do agronegócio etc.) exigem a quebra da resistência do professorado, do funcionalismo público, do movimento dos camponeses sem terra. Com a exposição da corrupção do governo, reconhecida como prática normal por Cézar Busatto, chefe da Casa Civil, e acusações diretas à probidade pessoal da governadora, para o governo Yeda Crusius, destruir o movimento social, de projeto estratégico, tornou-se meio para a rápida reconstrução-consolidação de apoio, sobretudo pelo latifúndio e grandes capitais interessados na celulose e bioenergia. Segmentos que sabem remunerar em forma magnânima seus prepostos.
IHU On-Line - A sociedade gaúcha sempre foi politizada. Como agiram suas chamadas elites?
Mário Maestri - O Rio Grande do Sul já foi região econômica e socialmente poderosa. Suas classes proprietárias desempenharam papel determinante na Independência, participando desde o início do “Conselho de Procuradores Provinciais”; os grandes criadores do meridião sustentaram longa guerra contra a Corte; na República Velha, o Rio Grande do Sul jamais conheceu intervenção federal, liderando a Revolução de 1930. Porém, nos últimos oitenta anos, o Estado conheceu depressão tendencial, relativa ou absoluta, já que à margem de desenvolvimento capitalista, primeiro nacional, a seguir mundial, centrado no RJ-SP. Hoje o Rio Grande do Sul é um arremedo do que foi no passado. Nesse longo período, apenas dois governantes ensaiaram projeto de desenvolvimento autonômico regional: Flores da Cunha, em 1930-37, defenestrado por Vargas, representante do capital nacional hegemônico do RJ-SP; e Leonel Brizola, em 1959-63, rejeitado pelas próprias classes proprietárias sulinas que, após 1937 e 1964, adaptaram-se sem pruridos ao papel de gestores subordinados ao centro hegemônico, registrando assim incapacidade histórica de acaudilhar a região. O grande problema é que as classes trabalhadoras mostraram-se até agora incapazes de levantar projeto alternativo para o Rio Grande do Sul e o Brasil.
IHU On-Line - Como o gaúcho contemporâneo se relaciona com a política?
Mário Maestri - A politização da população sulina insere-se no processo apenas assinalado de crise regional. Na Colônia e no Império, a ação social coletiva das classes subalternizadas foi quase nula, já que se mostraram incapazes de articular-se em forma autônoma. Na República Velha, um importante ativismo operário, capitaneado pela gloriosa FORGS, centrado, sobretudo, em Porto Alegre, não conseguiu espraiar-se para as regiões coloniais e para a Campanha, região que jamais conheceu movimentos coletivos. A população pobre e trabalhadora jamais conseguiu servir-se dos confrontos de 1835-45, 1893-5, 1923, 1930, 1932, para fazer avançar seus interesses. O que não quer dizer que a solução daqueles conflitos não lhes dissesse respeito. Talvez à exceção de 1961, a politização rio-grandense expressou-se, sobretudo, no plano político-eleitoral. A partir de 1969, o Sul conheceu ativismo sindical, sobretudo metalúrgico, bancário, dos trabalhadores rurais sem terra e, com destaque, dos professores públicos estaduais. Atualmente, apenas os dois últimos setores mostram vitalidade.
IHU On-Line - Considerando a identidade gaúcha, como o povo do Rio Grande do Sul se define hoje? Quem é o gaúcho contemporâneo?
Mário Maestri - As identidades nacionais e regionais são geralmente construções das classes dominantes para a gestão política, ideológica, social e econômica dos subalternizados de um território. O gaúcho foi trabalhador pastoril nascido da dispersão das comunidades guaranis, charruas etc., devido à privatização dos territórios comunitários. Em relação à Argentina e ao Uruguai, o gaúcho desempenhou papel menor na economia pastoril sulina, devido ao forte desempenho do cativo campeiro. Porém, foi no Rio Grande do Sul onde se entranhou mais profundamente a identidade gaúcha entre comunidades sem relações com gaúcho histórico e o mundo latifundiário-pastoril, como os operários, classes médias urbanas e, sobretudo, descendentes de camponeses alemães, italianos, poloneses etc. Essa identidade inventada sufoca as identidades nascidas das experiências sociais profundas, como as do mundo do trabalho urbano, rural, servil etc.
IHU On-Line - Que tipo de reflexão a atual crise política gaúcha lhe desperta?
Mário Maestri - O Rio Grande do Sul vive hoje sob o signo da banalização da corrupção pública e da literal criminalização da oposição popular, através de ataque direto ao direito de manifestação dos trabalhadores sem terra, registros indiscutíveis da decomposição estrutural das práticas tradicionais da política republicana sulina. Realidade que não enseja resposta substantiva da chamada sociedade civil ou do mundo político regional, preocupado este último essencialmente com as próximas eleições. Trata-se de processos subjetivos nascidos das transformações substanciais e perversas da organização social rio-grandense, parte do processo de literal barbarização social do Brasil, que tende a pôr em xeque o próprio ordenamento democrático e institucional formal que ainda conhecemos. Processo perverso exemplificado paradigmaticamente no tratamento militar criminoso da população trabalhadora do morro da Providência no Rio de Janeiro.
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A crise gaúcha. A erosão da ética republicano-castilhista. Entrevista especial com Mário Maestri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU