19 Abril 2008
Por Graziela Wolfart
“Mesmo que nas últimas décadas tenha ocorrido um aumento na consciência social sobre a problemática e em quase todos os países da América Latina se tenham implementado programas, leis e políticas, a forma mais comum de uma mulher lidar com a violência é mantê-la na intimidade ou recorrer a pessoas próximas ou familiares.” A lamentável constatação é da socióloga costarriquenha Montserrat Sagot, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Ela explica também o conceito de “rota crítica”, que é “um processo que se constrói a partir da seqüência das decisões e ações executadas pelas mulheres afetadas pela violência e as respostas encontradas em sua busca de soluções”.
Doutora em Sociologia, e especializada em Sociologia de Gênero pela American University, de Washington/Estados Unidos, Montserrat Sagot é professora na Universidad de Costa Rica. É autora de uma grande variedade de publicações e pesquisas relacionadas ao gênero, à violência contra as mulheres, aos direitos das adolescentes, entre outros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais tipos de violência sofrida pela mulher contemporânea e como ela lida com essas diferentes formas de agressão?
Montserrat Sagot - A violência contra as mulheres possui uma grande diversidade de formas na sociedade contemporânea. Algumas delas são a violência física, a sexual e a psicológica. Mas a forma mais extrema de violência contra as mulheres é o femicídio ou o assassinato misógino. Geralmente, estas formas de violência adquirem o formato de uma espiral. Ou seja, uma mulher que sofre violência cotidianamente em geral experimenta todas as formas de violência e corre o risco de que ela aumente. Há uma relação, também, entre ter sofrido violência na infância e sofrer violência na vida adulta. Uma mulher que foi maltratada quando menina tem três vezes mais probabilidade de sofrer violência na vida adulta do que uma que não sofreu. Mesmo que nas últimas décadas tenha ocorrido um aumento na consciência social sobre a problemática e em quase todos os países da América Latina tenham sido implementados programas, leis e políticas, a forma mais comum de uma mulher lidar com a violência é mantê-la na intimidade ou recorrer a pessoas próximas ou familiares. Ou seja, ainda é uma minoria de mulheres que recorre a algum dos serviços existentes ou denuncia a violência sofrida. As mulheres que mais tendem a denunciar publicamente são aquelas que sofreram violência por parte de um homem com o qual não mantinham uma relação próxima.
IHU On-Line - A senhora conhece bem a realidade da violência contra as mulheres na América Central e na América do Sul. Qual é a especificidade da região nesse tema? A violência sofre diferença de um continente para outro?
Montserrat Sagot - Dadas as condições de grande desigualdade na América Central, a violência contra as mulheres começa a adquirir dimensões realmente alarmantes. Em todos os países, mas principalmente na Guatemala, Honduras e El Salvador, os índices de violência contra as mulheres são dos mais altos do mundo. Só na Guatemala se cometem mais de 700 femicídios por ano e a forma como as mulheres são assassinadas denota altos níveis de ódio e de sadismo. Nas sociedades com uma história de violência social e política e onde existem grandes desigualdades, como é o caso de muitos dos países da América Central, a violência contra as mulheres também adquire maiores níveis e características mais dramáticas do que em outros países.
IHU On-Line - O que podemos considerar como “rotas críticas” no caso das mulheres enfrentando as violências?
Montserrat Sagot - A rota crítica é um processo que se constrói a partir da seqüência das decisões e ações executadas pelas mulheres afetadas pela violência e as respostas encontradas em sua busca de soluções. Este é um processo interativo constituído tanto pelos elementos relacionados com as mulheres afetadas e as ações empreendidas por estas quanto pela resposta social encontrada, o que, por sua vez, se converte em um elemento determinante da rota crítica. O início da rota crítica pode ser considerado como o “romper o silêncio”. Ou seja, as mulheres iniciam sua rota crítica quando decidem revelar sua situação de violência a uma pessoa fora de seu âmbito doméstico ou familiar imediato, como uma tentativa de buscar soluções. Com este conceito se parte do suposto de que existe uma série de fatores que impulsionam ou inibem uma mulher a buscar ajuda, entre eles a informação e o conhecimento que possui, suas percepções e atitudes, os recursos disponíveis, sua experiência prévia, a valorização da situação, e os apoios e obstáculos encontrados. Nesse sentido, a rota crítica envolve as decisões e ações empreendidas pelas mulheres e as respostas encontradas tanto em seu âmbito familiar quanto institucional. No âmbito institucional, os fatores de resposta estão associados ao acesso, disponibilidade e qualidade dos serviços, os quais estão determinados tanto por fatores estruturais e normativos, como pelas representações sociais, atitudes da comunidade em geral e dos prestadores de serviços.
IHU On-Line - Educação e condição econômica favorável são fatores que inibem ou impedem a violência contra a mulher?
Montserrat Sagot - Não se tem conseguido estabelecer uma relação causa-efeito entre esses fatores e a violência contra as mulheres. Os resultados das pesquisas a nível mundial não permitem chegar a conclusões definitivas sobre os efeitos da educação e as condições econômicas. Em alguns países, uma melhor condição econômica e educativa parece pôr ainda mais as mulheres em risco frente à violência. Em outros, esses fatores ajudam a sair da violência. Dadas essas situações, a conclusão a que se chega é a de que a violência ocorre independentemente das condições econômicas e educativas, e que ainda que essa violência possa adquirir características diferentes segundo o nível educativo, a etnia, a região geográfica, a classe social etc., nenhuma mulher está a salvo em uma sociedade patriarcal e misógina.
IHU On-Line - Quais são os principais danos psicológicos de uma mulher que sofre violência?
Montserrat Sagot - Como resultado da violência, freqüentemente, as mulheres maltratadas sofrem dores de cabeça de forma crônica, transtornos sexuais, depressões, fobias e medos. A principal conseqüência é uma baixa auto-estima que não lhes permite buscar ajuda para sair da situação.
IHU On-Line - Nos países que a senhora pesquisou, o Estado apóia as mulheres vítimas de violência? Percebe-se alguma evolução, nesse sentido, na última década, na América Latina?
Montserrat Sagot - Em todos os países da América Latina, se aprecia um avanço considerável na atenção da violência contra as mulheres em relação com o realizado há 15 ou 20 anos. A violência contra as mulheres deixou de ser considerada um assunto privado para passar a ser entendida como um problema público, sobre o qual os estados devem assumir responsabilidade. Por isso, se tem desenvolvido uma grande quantidade de programas e políticas, tanto setoriais quanti gerais, para enfrentar a violência. Isso representa uma conquista do movimento de mulheres que conseguiu colocar a problemática no debate público e tirá-lo do âmbito do secreto. No entanto, apesar dos avanços, em nenhum país, os estados são capazes de garantir às mulheres uma vida livre de violência e de prevenir a impunidade.
IHU On-Line - Como entender o comportamento violento? Ainda vivemos em uma cultura da violência, difundida até dentro das famílias?
Montserrat Sagot - O comportamento violento é resultado de uma sociedade construída sobre hierarquias sociais, onde se ensina às pessoas que se encontram nos lugares mais altos da hierarquia a controlar e a dominar os que são considerados mais fracos ou até inferiores. A violência é uma das formas mais estendidas para o exercício desse controle e domínio. Na medida em que continuarem existindo as hierarquias sociais, baseadas no gênero, na etnia, na idade, na classe social etc., será muito difícil construir uma sociedade na qual se estabeleçam relações igualitárias e não violentas.
IHU On-Line - A senhora já trabalhou em uma ONG que atendia mulheres maltratadas. O que aprendeu de mais marcante com essa experiência?
Montserrat Sagot - Essa foi uma das experiências mais enriquecedoras de minha vida. Nos grupos de apoio para mulheres maltratadas, aprendi sobre solidariedade entre mulheres, sobre fortalezas e sobre a capacidade do ser humano, neste caso das mulheres, para resistir à violência e à opressão, inclusive sob as piores circunstâncias. Também aprendi como muitas mulheres são capazes de manter a esperança de uma vida melhor, ainda que tudo a seu redor lhes diz que devem conformar-se e aceitar a violência como um destino inevitável.
IHU On-Line – Quais são os passos mais importantes para evitar o femicídio em nossas sociedades? Por que a mulher corre mais perigo de morte ao lado de homens próximos a ela do que de estranhos?
Montserrat Sagot - A melhor forma de prevenir o femicídio é aceitar a idéia de que para as mulheres o lar é o lugar mais perigoso e a família, o grupo social mais violento. É preciso ajudar as mulheres a romper com os mitos de que correm maior perigo diante de estranhos e de que os lugares mais perigosos são as ruas ou os espaços fora de suas casas. A maioria dos atos de violência contra as mulheres, assim como os femicídios, são cometidos dentro das quatro paredes do lar e os principais perpetradores são homens próximos. Por isso, tanto as políticas públicas quanto os programas para prevenir e enfrentar a violência devem partir da premissa de que, para as mulheres, quanto mais próximo, mais perigoso. Isso ajudará as mulheres e suas famílias a estarem preparadas e servirá como um instrumento à polícia e aos operadores de justiça para que compreendam o perigo de morte real que enfrentam as mulheres quando convivem ou têm relações próximas com um agressor.
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"Nenhuma mulher está a salvo em uma sociedade patriarcal e misógina". Entrevista especial com Montserrat Sagot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU