13 Outubro 2007
No momento em que na Argentina o padre Von Wernich (1) é condenado à prisão perpétua por participar dos desmandos da ditadura militar argentina, voltamos a lembrar de Carlos Mugica, também padre, mas que atuou em outra frente e foi assassinado. “Em 11 de maio, sábado, de 1974, às vinte horas e quinze minutos, enquanto Mugica se dispunha a subir no seu carro Renault 4-L azul, matrícula C-542119, estacionado junto da Igreja de San Francisco Solano, onde havia celebrado a missa, foi vítima de tiroteio por um indivíduo de bigodes que desceu de um carro estacionado muito perto da Igreja”, escreve o teólogo Eduardo de La Serna (2), num site dedicado a Carlos Mugica. E continua: “Essa pessoa era Rodolfo Eduardo Almirón (3), chefe da organização lopezreguista ‘Tríplice A’. Cinco disparos, de metralhadora `Ingram M-10`, afetaram o abdome e o pulmão. O tiro fatal foi nas costas. O padre Vernazza, que saiu da igreja ao ouvir os disparos, correu a dar-lhe a unção e o levaram em um velho Citroën; Mugica chegou a sorrir e piscar o olho para Vernazza. O corpo agonizante de Mugica chegou no Hospital Salaberry, onde morreu. Moribundo, chegou a exclamar: ‘Agora mais do que nunca temos que estar junto do povo!’ Eram nove horas da noite”. Carlos Mugica (1930-1974), que nascera no seio de uma família de classe alta, viveu intensamente os desafios de seu tempo como tantos outros companheiros do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo (MSTMU). Seu compromisso custou-lhe a vida.
A história de Mugica fala de uma maneira bastante eloqüente às gerações que estavam nascendo nos anos em que ele vivia seu compromisso com a justiça, buscando caminhos alternativos para seu país até as últimas conseqüências. Casos como os de Daniel García, produtor musical e responsável pela divulgação do disco “Missa para o Terceiro Mundo”, proibido pelo governo de Isabel Perón (4), mas recentemente relançado; de Gastón Pauls, ator e diretor de TV, teatro e cinema, dono da produtora audiovisual Rosstoc, que está dirigindo um documentário sobre a vida do Pe. Mugica, intitulada Humanos en el camino; e o sociólogo e ex-padre Alberto Sily, membro do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo, professor universitário na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires e membro da Equipe de Direitos Humanos da Paróquia Santa Cruz.
A IHU On-Line conversou com Daniel García, por e-mail, Gastón Pauls, por telefone, e Alberto Sily, também por e-mail.
Confira as entrevistas.
IHU On-Line - Seu pai lhe tinha falado sobre o Padre Mugica?
Daniel García - Meu pai nunca me falou sobre o padre Mugica, mas dizia que devíamos respeitar as pessoas que lutam pela dignidade e não se vendem. Talvez ele preferisse assim por causa dos tempos que precisávamos viver, de maior silêncio. Em sua balança sempre pesou, antes de tudo, sua família.
IHU On-Line - Qual é a importância da Missa para o Terceiro Mundo?
Daniel García - A recuperação do material histórico é um primeiro aporte à cultura de meu país. O disco abre a possibilidade, a muitas gerações, de avaliar sua importância depois de 33 anos, e formar uma opinião. O relançamento da Missa se encontra programado em três etapas: na Argentina e países limítrofes; nos outros países da América Latina; na Espanha e na área latina dos Estados Unidos. Esse passo é fundamental para continuar com o projeto de mais seis lançamentos discográficos com material "esquecido".
IHU On-Line - Qual seria esse material "esquecido"?
Daniel García - São edições programadas para os próximos meses. Neste ano, haverá o relançamento de um disco sobre Hipólito Yrigoyen (5), um caudilho político reconhecido por sua trajetória radical. Outro disco programado para este ano é o dos Andariegos (6), primeiro grupo folclórico questionado e censurado na Argentina, cujos integrantes tiveram que partir para o exílio. Os quatro restantes serão editados a partir de março de 2008 e estão sendo remasterizados, para que fiquem com um som digital como se tivessem sido gravados hoje.
IHU On-Line - Como chegou a suas mãos esse material?
Daniel García - Chegou a minhas mãos por meio de meu pai, que sempre guardou quase todos os velhos LPs de vinil que se editavam na Argentina. Ele considerava que esse tipo de arquivo sempre teria valor. As políticas utilizadas hoje por parte das produtoras definem como "produtos prioritários" os discos comerciais, e o material de catálogo é deixado de lado pelos custos de promoção. Elas pensam que eles não cobre os gastos. Equivocam-se, pois a venda desse tipo de material cobriu sempre 60% da infra-estrutura de uma empresa. Os resultados me confirmam que não estou errado na minha eleição, à medida que nos dias de hoje as lojas de discos eliminam áreas dentro de suas empresas e se reduzem cada vez mais, por não saberem trabalhar esse tipo de material.
IHU On-Line – O que simboliza, para você, a figura de Mugica?
Daniel García - Independente de todo posicionamento ou pensamento político, que em seu momento foi questionado, vejo que as pessoas das favelas continuam lembrando de Mugica por tudo o que ele fez. Gostaria de ver se algum político ou empresário atual será lembrado da mesma forma. Mugica ganhou o respeito e perdura no tempo. Diante disso eu tiro o chapéu.
Entrevista com Gastón Pauls
IHU On-Line - Como chegaste até Carlos Mugica?
Gastón Pauls - Meu pai conheceu Carlos Mugica quando jogaram juntos no mesmo clube de futebol. Anos depois de sua morte, eu era ainda criança quando meu pai falou sobre ele. São coisas que por alguma razão ficam sendo sempre relembradas. Meu pai deve ter falado comigo sobre muitas outras pessoas, muitas das quais não lembro, mas a figura de Carlos permaneceu. Fazendo os documentários de TV, precisei entrar em bairros muito pobres para contar como as pessoas vivem. Em alguns desses bairros me falaram em Carlos e três anos atrás alguém, que na época era menino de rua e hoje é ator, me disse: “Tu devias fazer um filme sobre a vida de Carlos Mugica”. Então, comecei a ler mais sobre ele. Conhecendo-o mais, descobri que Mugica foi cristão e sua vida muito semelhante com a de Jesus Cristo. Quando a gente descobre isso, contar a sua história transforma-se numa obrigação.
IHU On-Line - Como você entende o cristianismo?
Gastón Pauls - Me considero cristão. Não sou batizado e durante muitos anos me senti muito longe disso tudo. No entanto, há treze anos, um amigo me deu uma Bíblia e a partir daí me senti ligado à pessoa de Jesus. Continuo distante da estrutura clássica da Igreja e não acredito nela. Ainda assim, a figura de Jesus me diz muita coisa.
IHU On-Line - Como será o documentário?
Gastón Pauls - Quando comecei, há um ano e quatro meses, não era claro qual caminho eu seguiria. Ainda não há roteiro, mas sinto que vou sendo guiado. Às vezes, pessoas importantes parecem sair do nada, como o caso do rapaz que era coroinha na Missa de 11 de maio de 1974, celebrada por Carlos, antes de seu assassinato. Muitas pessoas não pautadas nem planejadas para entrevistas vão aparecendo. Eu tinha algumas idéias, mas quando você entra em uma vida como a de Carlos todas essas idéias começam a ser transformadas. Reitero que não sei muito bem para onde vou, mas quero deixar clara a paixão de Carlos que, independente das diferenças de contexto, foi a mesma de Jesus. Ambos entregaram suas vidas com paixão pelo que acreditavam e os vejo muito irmanados. Há coisas, inclusive, que estou começando a entender só agora.
IHU On-Line - Que coisas são essas?
Gastón Pauls - Carlos apareceu em um momento de imensa convulsão na história argentina e de lamentáveis choques entre forças. Sabendo o que possivelmente iria acontecer, ele avançou. Tudo isso vou entendendo à medida que avanço com cada conversa, cada entrevista.
IHU On-Line - Quem já foi entrevistado?
Gastón Pauls - Seus irmãos, Marta e Alejandro, muitas pessoas da favela e algumas pessoas da Igreja muito próximas de Carlos.
IHU On-Line - O que você vai descobrindo sobre as relações de Mugica: com Perón, com a Igreja, com os pobres?
Gastón Pauls - Carlos era um apaixonado e ia fundo em tudo o que fazia. Basta ver a convicção com a qual falava para notar sua paixão pelo que acreditava. Carlos tinha um posicionamento que lhe fazia encontrar muitos amigos e inimigos em lugares diversos. Ele confiava em Perón (7). Tinha esperanças de que com sua volta iam acontecer muitas mudanças. Mas, na verdade, o que eu mais destacaria seria o espírito de tudo isso. O filme não terá uma abordagem política da época. Será política no sentido de uma postura ideológica frente à vida. Somente narrar o que ocorreu seria amputar alguma coisa mais profunda que está relacionada à imensa consciência de fé e de relação com os pobres. A relação de Carlos com o peronismo e com a Igreja está muito ligada à relação de Carlos com os pobres. Mugica tornou-se peronista quando começou a notar que ele festejava a queda de Perón e os pobres não. Evidentemente, existe aí algo que deve ser escutado. Se os pobres estão tristes pela queda de Perón, há uma relação direta entre Perón e os pobres. Essa era a leitura que ele fazia de tudo.
IHU On-Line - Qual é a mensagem de Mugica para a Argentina de hoje?
Gastón Pauls - Quando vemos que ainda há planos para erradicar a “Villa 31”, favela onde Carlos morou; quando lembramos que poucos anos atrás entraram topadoras Upara arrancar as pessoas daquela favela, vemos que a mensagem da vida de Carlos está plenamente vigente, às vezes tristemente vigente. Basta ver as condições em que tantas pessoas vivem hoje.
IHU On-Line - Há previsão para a finalização do filme?
Gastón Pauls - Não. A atual etapa de rastreio de informações foi muito intensa e trouxe questões novas. Outros documentaristas me contam que trabalham oito anos em projetos. Tomara que não demore tanto porque gostaria muito de ver este trabalho pronto. Mas se levar oito anos, que seja. Não é fácil contar a paixão de um homem como Carlos Mugica. Se não respeitasse o tempo que o projeto está me exigindo, seria um desrespeito com ele, com os Sacerdotes para o Terceiro Mundo e com tantas pessoas que estão confiando nesse trabalho.
IHU On-Line - O nome do documentário será “Maio”?
Gastón Pauls - Não sei. É uma das idéias, em razão do maio francês e pelo mês em que mataram a Carlos.
Entrevista com Alberto Sily
IHU On-Line - Como conheceu Carlos Mugica?
Alberto Sily - Meu primeiro encontro pessoal com Carlos foi em 1963, na Universidade el Salvador, em Buenos Aires. Nós éramos professores dessa universidade. A relação se intensificou nos diversos encontros de sacerdotes em que trabalhávamos na pastoral social; em reuniões específicas dos padres das favelas às quais me convidavam para refletir sobre a situação do país; em reuniões da equipe de peritos da Comissão Episcopal de Pastoral (COEPAL), encarregado de elaborar o Plano Nacional de Pastoral de Conjunto, às quais convidávamos Carlos a fim de consultá-lo sobre sua experiência pastoral com os pobres, sobre características da religiosidade popular, como se relacionavam nas favelas a fé e o compromisso político; e nas reuniões de Sacerdotes para o Terceiro Mundo.
IHU On-Line - Qual era o perfil teológico e político de Carlos?
Alberto Sily – Na verdade, poderia dizer que em Carlos havia um único perfil. Isso não significa que confundisse o teológico e o político, mas que o político era assumido por Carlos, coerentemente, como uma das “exigências sociais da fé cristã”, exigência muito mais evidente a partir da Teologia da Libertação. Por outra parte, também foi muito claro seu perfil teológico nascido de uma séria profundização do Concílio Vaticano II e de Medellín, assim como sua fidelidade em dar a conhecer seus conteúdos e adaptá-los em seu trabalho pastoral.
IHU On-Line - Por que Mugica era peronista? O que significava para ele o peronismo?
Alberto Sily - Trata-se de um aspecto central da vida de Carlos, e tornam-se difíceis de responder ambas as perguntas, ainda mais sem a possibilidade de dialogar com ele essa resposta. Ensaio uma resposta a partir do conhecimento de sua pessoa, das motivações profundas, generosas, que marcavam cada dia seu trabalho sacerdotal. Viu, não sem dor, aparecer uma incompreensão que se tornou conflitiva, nos setores de poder religioso, econômico e político. Carlos era consciente que trabalhava com uma porção muito representativa de seu povo, trabalhador e pobre. Esse povo era, em sua grande maioria peronista. O peronismo nasce como movimento e não como partido político. O peronismo-movimento é algo assim como a “identidade” desse povo trabalhador e pobre. Carlos elegeu estar com eles, amar seu povo, confiou em sua capacidade de criação e transformação, os acompanha em suas expressões e em sua organização, conhece suas esperanças e suas angústias, suas necessidades e seus valores, percebe claramente o que mais querem e desejam legitimamente da Igreja. Por isso, não se separa de seu povo nem se adianta a suas decisões. Nesse acompanhamento a seu povo, discerne suas limitações, tem prudência e respeito para corrigir e propor. Alguns anos depois, comprovou que já não estava sozinho em sua opção: o Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo (MSTMU) publicou em 1972 o documento “Nuestra Opción por el Peronismo”, apresentado pelo P. Rolando Concatti, membro da regional Mendoza, do MSTMU.
IHU On-Line - Como era a relação de Carlos com a pessoa de Juan Domingo Perón?
Alberto Sily - Carlos encontrou-se com Perón nas seguintes ocasiões: em 1968, viajou à Europa. Programou fazer cursos em Paris; em março teve a primeira entrevista com Perón, em Madri. Em novembro de 1972, viajou a Roma e retornou no dia 17 do mesmo mês, de Madri, no charter que trouxe Perón a Buenos Aires. Em dezembro, Perón visitou a capela da favela onde morava e trabalhava Carlos. Não o encontrou, porque ele estava participando de um encontro em Mar del Plata. Nesse mesmo mês, participou da reunião que 60 sacerdotes do MSTMU tiveram com Perón em sua residência. Em 1973, no dia 20 de junho, foi a Madri no segundo charter, que traria Perón pela segunda vez à Argentina. Esses são os quatro encontros que conheço. Não acredito que houve outros.
IHU On-Line - O que poderia dizer sobre esses encontros?
Alberto Sily - Nunca falei com Carlos sobre esses encontros, sobre motivação, resultados, avaliação etc. Acho que Carlos tinha certeza de que sua presença e o diálogo com Perón não era a título pessoal. Ele era atraído pela presença dos trabalhadores e suas famílias faveladas, em circunstâncias especiais, como a de quando os peronistas o esperaram duas vezes no aeroporto de Ezeiza, e se reuniram massivamente na residência de Gaspar Campos. Eles, no dia 1º de maio, Dia dos Trabalhadores, na reconquistada Praça de Maio, depois de 20 anos de proscrições e de resistência, gritaram: “luta e volta” (Perón volta). Nesses movimentos, Carlos também foi fiel ao seu povo.
IHU On-Line – Esses encontros com Perón, de alguma maneira, contribuíram para a morte de Mugica?
Alberto Sily - Nesses encontros, houve sinais para Carlos, entre outros, sobre a pressão que o entorno funesto (leia-se López Rega [8], criador da “Tríplice A”: Alianza Anticomunista Argentina) exercia sobre Perón. A “Tríplice A” assassinaria esse mesmo ano Carlos e centenas de dirigentes de todos os setores sociais e profissionais. Perón foi permeável à opinião e aos conselhos que recebeu para desconfiar dos “padres de esquerda” e, nominalmente, de Carlos, dos outros “curas villeros” (padres das favelas) e do Movimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo (MSTMU). Talvez as duas provas mais significativas para mim tenham sido a desaprovação que Perón manifestou na mencionada reunião com os 60 sacerdotes do MSTMU, em sua residência de Gaspar Campos (Mendoza, Argentina) - na prática, uma condenação ao compromisso do MSTMU, em nome da “missão religiosa” do sacerdote - e os atentados e o assassinato de Carlos realizados pela “Tríplice A”.
IHU On-Line - Quem e como se sentia mais incomodado pela vida de Mugica?
Alberto Sily - Essa pergunta exigiria uma análise da sociedade e da Igreja argentina. Uma palavra talvez pudesse sintetizar tudo: Carlos era um transgressor. Sua opção “agrediu” os poderes estabelecidos, político, econômico, eclesiástico. Nos anos de 1960-70, ele fez “visível” em nível pessoal, em um espaço e tempo concretos, a transgressão que significou a mudança provocada pelo Concílio, acontecida também na América Latina (em Medellín e Puebla), e as tentativas de sua aplicação, ainda por parte de vários episcopados de nossos países. Tentativas que foram morrendo muito rapidamente, como morreu Carlos. Na nossa sociedade, dentro do sistema que a aprisiona e dentro de uma Igreja institucionalmente cúmplice, não se tolera a renúncia pública a uma classe social, nem a eleição da pobreza de vida e a convivência com os pobres, além de pobres, peronistas. Não se tolera que no lugar de odiar se ame a esse povo. Carlos também leu, como muitos, nas paredes do bairro Norte (habitat da oligarquia e sede de seu poder), nos dias que ia morrendo Evita, o grafite “viva o câncer”. Expressão de ódio mais cruel e inumano à mulher que os pobres mais amaram. Tampouco se tolerou que Carlos discutisse publicamente, na Universidade El Salvador, com um dos representantes mais genuínos não só dessa oligarquia mas, principalmente do poder econômico, José A. Martínez de Hoz, ministro da Economia da última Ditadura Militar. A discussão se originou pela defesa de Carlos da Encíclica Populorum Progressio. A presença no grupo de professores da Universidade El Salvador, pertencente aos jesuítas, do nefasto ministro que destruiu a economia do país era tão incompreensível e inaceitável, como, algum tempo depois, a demissão de Carlos em sua cátedra de Teologia da mesma universidade. Vale lembrar, como último exemplo de transgressão e sua contrapartida de abuso de poder político e eclesiástico, a detenção e demora de Carlos no Departamento Central de Polícia e simultaneamente os 30 dias de suspensão canônica aplicada pelo Cardeal Aramburu, arcebispo de Buenos Aires.
IHU On-Line - Qual foi o motivo dessa suspensão?
Alberto Sily - O motivo foi que nos primeiros dias de setembro de 1970, junto com o Padre Hernán Benitez, confessor de Evita e os padres Vernazza (9) e Richiardelli, Carlos assistiu, na Paróquia São Francisco Solano, à missa de corpo presente de Fernando Abal Medina e Carlos Ramus (10). Eles tinham sido assassinados pela Policia, como suspeitos de seqüestro e morte do General Aramburu, um dos principais símbolos do antiperonismo e autor de dois célebres e sangrentos fuzilamentos, sem julgamento prévio nem lei de pena de morte no país. Carlos, como os outros sacerdotes presentes, falou brevemente no discurso de despedida dos jovens assassinados. Vale também lembrar que, três anos e oito meses depois, Carlos foi assassinado na saída dessa mesma paróquia, depois de celebrar a missa vespertina.
IHU On-Line - Como a Igreja argentina guarda na sua história a figura de Mugica?
Alberto Sily - A Igreja oficial representada pela hierarquia, com exceção de alguns poucos bispos, depois da morte de Carlos tem guardado silêncio, extraviou sua memória e certamente diria que ele errou. No interior desse silêncio, parece não existir nenhum reconhecimento a seus 15 anos de um sacerdócio vivido como serviço aos mais pobres e com una fidelidade nada fácil ao Evangelho. O resgate da memória de Carlos se faz lembrança, ou seja, sua presença volta sempre a estar no coração de muitos, de formas diversas: através da “Villa 31”, que, no meio de sua pobreza e exclusão, não esquece e celebra o Padre Carlos que quis ser um deles, vivendo e dando sua vida por eles, guardando seus restos na capela Cristo Operário que construíram juntos; dos grupos de jovens que, em distintos lugares do país, refletem sobre a vida de Carlos, o momento histórico em que ele viveu e dão testemunho de quanto o valorizaram; dos “Sacerdotes na opção pelos pobres” e da “Equipo de Sacerdotes Villeiros da cidade de Buenos Aires”, que herdaram a riqueza humana e pastoral deixada pelo “irmão maior dos pobres”; de comunidades de religiosas, como o Instituto de Cultura Religiosa Superior, onde encontramos várias irmãs que são testemunhas da espiritualidade, da ação pastoral e também dos sofrimentos e perseguições que Carlos padeceu; da Paróquia da Santa Cruz, baluarte de defesa as Mães de Praça de Maio, inspiradora permanente da defesa dos Direitos Humanos, recordando cada ano como Carlos lutou pelos direitos dos pobres, seus irmãos; de documentários sobre a vida de Carlos, que ganharam as telas de TV e são assistidos em tantos encontros e oficinas. Carlos e Dom Angelelli (11), vítimas da ditadura militar e do desconhecimento da hierarquia eclesiástica, se prolongam no tempo e nos corações livres e generosos da mesma forma e através dos mesmos meios. Acho que a Igreja oficial não guarda nada deles na sua história, e talvez seja melhor assim, porque essa história tem muitas páginas escuras, que não são merecedoras de que a luminosidade das vidas de Mugica e Angelelli as atravesse para redimi-las.
IHU On- Line - Qual foi a vinculação de Mugica com os movimentos contestatórios da época?
Alberto Sily - Em primeiro lugar, mencionarei o MSTMU. Considero-o como um movimento legitimamente contestatório, se o relacionamos com outros setores católicos, incluída a hierarquia. Não o seria se a relação estabelecida fosse com o pensamento teológico e a ação pastoral de Carlos Mugica e a eclesiologia, do Concilio Vaticano II, ou as Encíclicas Populorum Progressio, Gaudium et Spes, Ecclesiam Suam, entre outros documentos do Magistério da Igreja. Portanto, o pensamento e a ação pastoral de Carlos Mugica, como membro do MSTMU, foi ou não contestatório segundo uma ou outra das relações mencionadas. Com relação à vinculação de Mugica com outros movimentos, é necessário mencionar os Montoneros (12). É a relação que geralmente lhe é atribuída a Carlos. Eu acho que não se trata de negar ou afirmar superficial ou interessadamente essa relação. É importante saber que vários anos antes da criação dos Montoneros, da entrada deles na clandestinidade e de sua opção pela luta armada, Carlos se encontrava com três jovens que quatro anos depois militariam nessa organização, ocupando os cargos de maior responsabilidade. Eram Carlos Ramus, Marcelo Perdía e Mario Firmenich.
IHU On-Line - Qual era o objetivo desses encontros?
Alberto Sily - O encontro foi por causa da realização de dois Acampamentos Universitários de Trabalho (CUT), em 1966. Esses acampamentos tinham a finalidade de despertar e formar a consciência social dos/as jovens universitários e conhecer diretamente a injusta vida dos pobres, convivendo e trabalhando com eles, durante um mês. Centenas de universitários/as, estudantes das principais universidades do país, aceitaram realizar esta experiência. Alguns outros jovens, que também anos depois militariam em Montoneros, se encontraram com Mugica nas reuniões de reflexão organizadas pela revista Cristianismo e Revolução, entre os anos 1966-1969. Carlos tinha um modo coloquial muito pessoal para comunicar com toda transparência, o que pensava, o que propunha como compromisso cristão. Não desejava que seus interlocutores se organizassem ou militassem em alguma organização. Queria chegar a seu interlocutor vendo-o como pessoa. A partir daí, respeitava as opções de cada um. Penso que este modo profundo de ser e fazer foi a fonte de onde nascia sua grande liberdade em tomar decisões e eleger os caminhos a transitar com suas opções e seus sonhos. Optou não facilmente, mas teve consciência quando se pronunciou contra toda violência armada, opondo-se a ela e sendo coerente até o final de sua vida. Fez pública essa opção 13 dias antes que a violência armada da “Tríplice A” o assassinasse. Na Villa de Retiro, sua Villa, elaborou e assinou, com todos os sacerdotes da regional Buenos Aires do MSTMU, a Declaração contra a violência armada.
Notas:
(1) Christian Von Wernich foi um padre argentino, capelão da Polícia da Província de Buenos Aires durante o Processo de Reorganização Nacional. Em 2003, foi preso sob a acusação de lesão a humanidade nos centros clandestinos de detenção Puesto Vasco, Coti Martínez e Pozo de Quilmas. Em 9 de outubro de 2007, foi condenado à prisão perpétua por 34 casos de privação ilegal da liberdade, 31 casos de tortura e sete homicidios qualificados.
(2) O Padre Eduardo de la Serna é primo distante de Ernesto Che Guevara. Faz parte de um dos setores mais críticos da Igreja. Coordena o grupo de sacerdotes Carlos Mugica, um dos grupos eclesiais comprometidos com os pobres.
(3) Rodolfo Eduardo Almirón foi um ativista de direita argentino e um dos chefes da organização terrorista Aliança Anticomunista Argentina, conhecida, na década de 1970, como "Tríplice A". Seu nome é vinculado a inúmeros atentados violentos e assassinatos de líderes políticos e sociais de esquerda.
(4) María Estela Martínez Cartas de Perón, conhecida como “La Isabelita”, foi presidente da argentina de 1976 a 1979, sucedendo seu marido Juan Perón. Foi deposta pela junta militar encabeçada por Jorge Rafael Videla e que deu origem ao Processo de Reorganização Nacional.
(5) Hipólito Irigoyen foi duas vezes presidente da argentina. Participou ativamente da Revolução de 1890 e na de 1893.Foi um dos fundadores da União Cívica Nacional. Morreu em 1933, em Buenos Aires.
(6) Los Andariegos foi um grupo de cantores e violonistas criado em 1954, em Mendoza, na Argentina. É considerado um mítico conjunto musical vocal instrumental que deixou uma grande força renovadora nas novas gerações da música popular por sua qualidade interpretativa e sua mensagem revolucionária em epocas de difícil convivência ideológica.
(7) Juan Domingo Perón foi um militar e político argentino. Foi presidente de seu país de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. Perón casou-se com Aurelia Tizón (falecida de câncer, em 1938) e em segundas núpcias com Eva Perón, mais conhecida como Evita, que também faleceu de câncer no útero. Nos anos 1960, casou-se pela terceira vez, agora com Maria Estela Martínez, mais conhecida como Isabel Perón, que o sucedeu na presidência da Argentina em 1974. Seu governo populista era apoiado pela Igreja, pelo Exército e pelo Movimento sindical, e baseava-se num forte nacionalismo, centralizado no poder do Estado.
(8) José Lopez Rega é conhecido como “El Brujo”. Foi um político argentino e ficou célebre como secretário privado de Juan Domingo Perón. Como ministro do Bem-Estar Social, durante o governo Héctor J. Cámpora, Raúl Alberto Lastiri e do próprio Perón. Promoveu uma política fortemente conservadora e organizou a "Tríplice A". Foi obrigado a renunciar seu cargo em 1975, trazendo violentas reações ao plano econômico promovido por seu protegido Celestino Rodrigo para desmoralizar o sindicato argentino.
(9) O Padre Jorge Vernazza integrou o Movimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo. Hoje, é pároco em Parque Patrícios. Junto com Carlos Mugica foi uma das personalidades que trouxe de volta a Argentina Juan Perón.
(10) Carlos Ramus foi assassinado em 1970 em William Morris. Foi um dos fundadores do grupo Montoneros.
(11) Enrique Ángel Angelelli foi um bispo da Igreja Católica, assassinado durante o Processo de Reorganização Nacional. Focou seus trabalhos em pastorais que lutavam contras as condições desumanas dos pobres.
(12) Montoneros foi uma organização guerrilheira argentina que desenvolveu suas ações com maior intensidade entre os anos de 1970 e 1977. Seu objetivo era desestabilizar e derrotar a ditadura militar instalada na Argentina desde 1966.
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Carlos Mugica e o sonho da revolução argentina. Entrevista especial com Daniel García, Gastón Pauls e Alberto Sily - Instituto Humanitas Unisinos - IHU