Por: Cesar Sanson | 07 Outubro 2013
“É de notar a novidade de um Papa que fala de ‘opinião’ da Igreja e não, como sempre se lê, do ‘ensinamento’, e que considera ‘impossível’ ingerir-se na vida espiritual das pessoas, pela liberdade que Deus lhes deu”. O comentário é de Ludovica Eugenio em artigo publicado por Adista, 01-10-2013. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Que a entrevista concedida pelo Papa Francisco a Pe. Antonio Spadaro e publicada nas revistas dos jesuítas de todo o mundo tenha causado uma quantidade impressionante de reações e comentários não espanta.
Na entrevista, de fato, - já por si um modo de comunicar decididamente insólito para um Papa – Bergoglio destila, num modo informal, coloquial e direto uma espécie de linha programática do próprio pontificado, que abraça muitas e diversas esferas da vida da Igreja (bem como de sua vida pessoal).
Certamente haverá uma mudança, uma reforma, assegura o Papa, embora insista na necessidade de um tempo de discernimento. “Muitos pensam que mudanças e reformas possam ocorrer em breve tempo. Eu creio que sempre haja necessidade de tempo para colocar as bases de uma mudança verdadeira, eficaz”. O que é certo, é que “sentir com a Igreja” implica que “o conjunto dos fiéis é infalível no crer, e manifesta esta sua ‘infallibilitas in credendo’ mediante o sentido sobrenatural da fé de todo o povo que caminha”. O Papa insiste, portanto, no ‘sensus fidei’, entendido em sentido coletivo, como processo dinâmico.
Na entrevista, Bergoglio especifica, também, o que afirmou em sua viagem de retorno do Brasil sobre os gays: “Em Buenos Aires eu recebia cartas de pessoas homossexuais, que são “feridos sociais”, porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os tem condenado. Mas, a Igreja não quer fazer isto. Durante o voo de retorno do Rio de Janeiro eu disse que, se uma pessoa homossexual é de boa vontade e está em busca de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la. Dizendo isto, eu disse aquilo que diz o Catecismo”, explica Francisco, sublinhando que “a religião tem o direito de exprimir a própria opinião a serviço do povo”, mas também, que a liberdade dada por Deus ao ser humano torna impossível “a ingerência espiritual na vida pessoal”.
É de notar a novidade de um Papa que fala de “opinião” da Igreja e não, como sempre se lê, do “ensinamento”, e que considera “impossível” ingerir-se na vida espiritual das pessoas, pela liberdade que Deus lhes deu. Considerando que, segundo Francisco, a consciência é o metro mais profundo de medida dos próprios pecados, talvez seja conveniente rever a impostação dos preceitos da moral católica? Quanto aos temas costumeiros da bioética, “não podemos insistir somente nas questões ligadas ao aborto, ao matrimônio homossexual e o uso dos métodos contraceptivos”, afirma o Papa. “Isto não é possível. Eu não tenho falado muito destas coisas, e isto me tem sido censurado. Mas, quando se fala disso, é preciso falar disso num contexto. O parecer da Igreja, de resto, é conhecido, e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuadamente”.
Bergoglio é desarvorante também em relação ao dissídio entre conservação e revelação. “As lamúrias de hoje sobre como vai o mundo “bárbaro” – se lê na entrevista – acabam às vezes por fazer nascer dentro da Igreja desejos de ordem entendidos como pura conservação ou defesa. Não. Deus é encontrado no hoje”. Deus, de fato, se manifesta “numa revelação histórica, no tempo”; “não é preciso privilegiar os espaços de poder com respeito aos tempos, também longos, dos processos. Nós devemos conduzir processos, mais do que ocupar espaços”. Eis porque, observa Bergoglio, é importante “privilegiar as ações que geram dinâmicas novas”. E, em tal processo, dúvida, incerteza, humildade são as coordenadas da “viagem”.
“O comportamento correto é aquele agostiniano”, afirma o Papa, “procurar Deus para encontra-lo, e encontra-lo para procurá-lo sempre. E, frequentemente se procura às apalpadelas, como se lê na Bíblia”. Segue disso que, “se o cristão é restauracionista, legalista, se quer tudo claro e seguro, então não encontra nada. A tradição e a memória do passado devem ajudar-nos a ter a coragem de abrir novos espaços a Deus. Quem hoje sempre procura soluções disciplinares, quem tende de maneira exagerada à “segurança” doutrinal, quem procura obstinadamente recuperar o passado perdido, tem uma visão estática e involutiva. E, deste modo, a fé se torna uma ideologia entre tantas outras”.
A certeza dogmática de Bergoglio é que “Deus está na vida de cada pessoa, Deus está na vida de cada um. Também se a vida de uma pessoa tem sido um desastre, se está destruída pelos vícios, pela droga ou qualquer outra coisa, Deus está em sua vida. Se pode e se deve procura-lo em cada vida humana. Também se a vida de uma pessoa é um terreno repleto de espinhos e ervas daninhas, há sempre um espaço no qual a boa semente pode crescer. É preciso confiar em Deus”.
Bergoglio também se expressou sobre o papel da mulher. “É necessário ampliar os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja”, disse ele. “Temo a solução do “machismo de saia”, porque na realidade a mulher tem uma estrutura diferente do homem. E, no entanto, os discursos que ouço sobre o papel da mulher são com frequência inspirados precisamente por uma ideologia machista. As mulheres estão levantando perguntas profundas que são enfrentadas. A mulher não pode ser ela mesma sem a mulher e sua função. A mulher, para a Igreja, é imprescindível”. “O gênio feminino – concluiu – é necessário nos lugares nos quais se tomam as decisões importantes. O desafio é hoje precisamente este: refletir sobre o lugar específico da mulher, também precisamente ali onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja”.
A seguir, publicamos uma seleção de comentários de teólogos, teólogas, associações e da imprensa internacional.
Leonardo Boff, teólogo brasileiro: “Vale a pena recordar novamente que o atual Papa vem de fora, da periferia da Igreja central europeia. Traz consigo outra experiência eclesial, com novos costumes e um modo diverso de sentir o mundo com as suas contradições. (...). Há a consciência de vir de outro modo de ser Igreja, amadurecido no Terceiro Mundo. (...). A opção pelos pobres, reafirmada pelos últimos papas, era somente retórica e conceitual. Não existia o encontro com o pobre real e sofredor. Com Francisco ocorre exatamente o contrário: o anúncio é prática afetiva e efetiva”.
Juan José Tamayo, secretário da Associação Teólogos e Teólogas João XXIII: “Minha primeira impressão lendo a entrevista do Papa Francisco é que talvez estejamos diante de uma mudança significativa das prioridades do atual pontificado e na recuperação da orientação reformadora do Concílio Vaticano II”. “O seu propósito é voltar ao Vaticano II, recuperando o seu espírito solidário com as pessoas excluídas”. “Isso implica uma mudança histórica? Talvez, caso se proceda com a reforma da Igreja em profundidade, a partir da opção pela maioria marginalizada e se restitua às mulheres o protagonismo que lhes foi negado há séculos. Somente então retornará a primavera na Igreja, após 40 anos de inverno”.
José María Castillo, teólogo espanhol: “Este Papa faz notícia a nível mundial porque levou a sério o Evangelho. E, ainda mais seriamente a centralidade de Jesus na vida. O fulcro não é a religião e os seus ritos, nem os dogmas e as ortodoxias. De nada de tudo isto fala Francisco. Aqui não se escuta a cantilena da pregação eclesial, moralizante, ameaçadora e com frequência excludente. O futuro da Igreja está na recuperação do seu passado. O passado que nos leva diretamente a Jesus de Nazaré. Se não nos encaminharmos por esta estrada, a Igreja não irá a nenhum lugar. Se o Evangelho é o centro, não será a religião a ser decisiva. O centro será a humanidade, tudo aquilo que nos torna humanos”.
Juan Masiá Clavel, teólogo jesuíta: “Contra o vício do fanatismo, a virtude da incerteza. Abundam hoje os fanatismos religiosos, políticos e ideológicos”. “E a justificação de todos estes fanatismos apela para a retórica das certezas absolutas, sustentadas pelas intolerâncias, às vezes teístas, às vezes atéias, mas sempre excludentes e discriminantes: os males estão do outro lado que se distingue claramente da nossa e que se supõe méritos de ser aniquilada pelo simples fato de ser diferente. Por isso, aquilo que me agradou mais na tão comentada entrevista do Papa Francisco é sua capacidade de pensar duvidando, de crer tendo confiança”. “É uma dose curativa de sã incerteza, terapia contra os fanatismos”.
William Saletan (Slate): “O significado é claro: a Igreja, como outras instituições, erra. Há quatro séculos, errou sobre o cosmo. Há um século e meio, errou sobre a escravidão. Passo a passo que a ciência evolui, por exemplo sobre a orientação sexual, a Igreja “crescerá na sua compreensão” e “amadurecerá no seu juízo”? Posso dizer-vos como responderia Francisco a esta pergunta: sabe-o Deus”.
Jean Mercier (La Vie): “Com a espontaneidade que lhe é própria, o Papa se entregou a uma crítica virulenta de sua Igreja”. “Para Francisco, é urgente que o catolicismo se retome: “A Igreja viveu tempos de genialidade, como, por exemplo, aquele do tomismo. Mas, vive também tempos de decadência do pensamento. (...) Ao pensar o homem, portanto, a Igreja deveria tender à genialidade, não à decadência”. Aqui se sente o apelo de João XXIII ao ‘aggiornamento’, que inspirou o Vaticano II”.
Thomas Reese, teólogo jesuíta estadunidense: “Diversamente de muitos, Jorge Maria Bergoglio aprendeu de seus erros e seguiu um estilo completamente diverso com respeito a quando era arcebispo de Buenos Aires (...). O método de aprender dos próprios erros é muito inaciano e reflete o quanto Francisco esteja embebido da espiritualidade de Santo Inácio de Loyola e o quanto seja perito nos seus exercícios espirituais. O Papa Francisco talvez possa parecer um franciscano, mas pensa sempre como jesuíta. Os temas dos exercícios espirituais retornam repetidamente na entrevista (...). O discernimento será importante para ele enquanto Papa. As decisões não serão deduzidas de paixões teológicas; antes, “os grandes princípios devem ser encarnados nas circunstâncias de lugar, de tempo e de pessoas”.”
Mary E. Hunt, co-fundadora da Women’s Alliance for Theology: “Se é verdade que o Papa minimizou alguns dos temas “quentes” – o aborto, os matrimônios gay e o uso de métodos contraceptivos – dizendo que não é necessário falar destes problemas a toda hora, é também verdade que de nenhum modo os minimiza: “O ensinamento da Igreja, de resto, é claro e eu sou um filho da Igreja...”, disse. (...) Observo tudo isso simplesmente para não ver o dito ao lugar da lua”.
Suor Jeannine Gramick, cofundadora do New Ways Ministry: “Sua visão do mundo é muito diversa daquela dos últimos 35 anos... [aquela qu] nós temos a verdade e a proclamamos e não podemos desviar dela. Na entrevista, [o Papa] fala com frequência de incerteza... Vem de uma visão do mundo que diz que a verdade existe, mas que estamos à procura daquela verdade. Esperamos que a Igreja se abra a coisas novas”.
Hans Küng, teólogo suíço: “O Papa Francisco reconhece a importância de questões como a contracepção, a homossexualidade e o aborto. Mas, se recusa pôr estas questões demasiadamente no centro da missão da Igreja. Ele invoca justamente um “novo equilíbrio” entre estes aspectos morais e os impulsos essenciais do próprio Evangelho. Mas, este equilíbrio pode ser alcançado somente quando se realizam as reformas que tem sido postergadas mais e mais vezes, de modo que estas questões morais fundamentalmente secundárias não privem a proclamação do Evangelho de seu “frescor e atratividade’. Este será o grande desafio para Francisco”.
Commonweal, revista católica estadunidense: “Para aqueles que querem que o Papa seja mais um pastor que um oráculo, Francisco é, sem dúvida, a resposta a muitas preces. Mas, ainda mais desarmante de sua humildade é a abertura de Francisco, e sua confiança no futuro. (...) Trata-se de uma fé acompanhada pela certeza que, o que é novo na Igreja, pode ser uma revelação antes do que uma corrupção”.
Richard Rohr, teólogo estadunidense: “O Papa Francisco tornou-se um convite vital e feliz a toda a humanidade, também além dos limites demasiado estritos do cristianismo, ao invés de um joga fora de pé diante das portas sempre abertas do céu. Somente por isto já mudou o papado, talvez para sempre. Será muito difícil voltar atrás do todo”.
Confèrence Catholique des Baptisé(e)s Francophones (CCBF): “O Papa retorna ao essencial. Põe de lado uma Igreja legalista e moralizadora para colocar no centro uma Igreja da misericórdia, que define como “hospital de campo”, porque cura os corações feridos. Sua “primeira reforma” é aquela de uma profunda mudança de perspectiva. O Papa faz da Igreja uma anunciadora do amor de Deus e não uma guardiã de pequenas doutrinas. A Conferência acolhe com entusiasmo esta reforma que está na base de todas as outras”.
John O’Malley, jesuíta, professor de teologia na Georgetown University: “Nos poucos meses como Papa, Jorge Maria Bergoglio tem dado prova de sua intenção de promover a colegialidade. Forneceu, além disso, um maravilhoso exemplo do servo-líder, que é outro tema do Concílio e um corolário à doutrina da colegialidade. O desafio, agora, é de traduzir este exemplo em mudanças espirituais e, por conseguinte, em algum modo de garantir que o pessoal responsável pelo eficaz funcionamento da ‘prima sedes’ o apoie de todo o coração e exerça as suas funções de acordo com isso”.
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Confusa e quase feliz, a comunidade católica internacional após a entrevista de Bergoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU