Por: André | 13 Julho 2016
A herança de Stroessner é “a matriz incrustada na sociedade paraguaia”, disse Delia Ramírez, membro do Movimento 138, comunicóloga e uma das dirigentes da campanha pela absolvição dos camponeses de Curuguaty.
A entrevista é de Adrián Pérez e publicada por Página/12, 11-07-2016. A tradução é de André Langer.
Na manhã de 15 de junho de 2012, uma chuva de balas caiu sobre um grupo de paraguaios em uma fazenda situada em Campos Morombi, no Departamento de Canindeyú. Onze camponeses que reclamavam um pedaço de terra para viver foram assassinados. Seis policiais que tinham sido deslocados para desocupar a fazenda perderam a vida. O julgamento pelo massacre de Curuguaty, que desembocou em um golpe parlamentar contra o presidente Fernando Lugo, chega à sua parte final. Para esta segunda-feira estava previsto o anúncio da sentença contra os únicos acusados: 12 trabalhadores rurais. Os promotores Liliana Alcaraz, Nelson Ruiz e Leonardi Guerrero pediram penas de entre cinco e 40 anos de prisão.
A pedido da empresa Campos Morombi, o juiz penal de garantias da cidade de Curuguaty, José Benítez, ordenou, em 14 de junho de 2012, a desocupação de uma fazenda de dois mil hectares, conhecida como Fazenda Marina Kue. A empresa, no entanto, nunca conseguiu demonstrar titularidade sobre essas terras, que eram propriedade da Industrial Paraguaya Sociedad Anónima, uma empresa latifundiária do começo do século passado, e parte de cujas terras foram doadas, em meados dos anos 1960, à ditadura de Alfredo Stroessner. O ditador colocou a fazenda no nome da Marinha paraguaia, porque tinha um projeto próprio de reforma agrária. Camponeses organizados começaram, em 2004, a fazer gestões para ocupar a fazenda. Em 2005, o presidente Nicanor Duarte Frutos assinou um decreto para que os dois mil hectares fossem utilizados para a reforma agrária.
Delia Ramírez, formada em Ciências Sociais pela Universidad de General Sarmiento e integrante do Movimento 138, organização de resistência cultural Paraguai-Argentina, fala do massacre de Curuguaty. A organização tomou o nome do artigo da Constituição guarani que autoriza os paraguaios “a resistir aos usurpadores” do poder público, “por todos os meios disponíveis”.
“Quando ocorreu o julgamento de (Fernando) Lugo, nós estávamos absolutamente desorganizados; alguns nem se conheciam. E agora temos uma organização que está fazendo uma convocação para acompanhar a sentença desta segunda-feira [11 de julho] pela FM La Tribu”, afirma Ramírez, filha de migrantes paraguaios que chegaram na década de 1970 a Buenos Aires para radicar-se finalmente em Misiones.
Ela assinala que a motivação para encontrar-se com seus companheiros no espaço público para começar a se organizar foi o golpe parlamentar de 22 de junho de 2012 contra o presidente Lugo. O movimento girou, em um princípio, em torno de uma organização antigolpista parecida com algumas organizações que surgiram no Brasil a partir do impeachment impulsionado contra a presidenta Dilma Rousseff. Com estratégias criativas e a partir da migração, a comunicóloga e seus companheiros buscaram mostrar que estavam observando, participando e que eram sensíveis à problemática dos camponeses de Curuguaty.
Embora o processo de Curuguaty nunca tenha sido considerado legal e legítimo para os denunciantes, na última parte do debate começou a se entender – desde a estratégia da defesa – que não era possível anular o julgamento: então, pediu-se a absolvição dos 12 acusados. Com esse objetivo, e para tornar o caso visível à sociedade, lançou-se a campanha “É tempo de liberdade! Curuguaty #Absolvição Já”, empreendida este ano, no quarto aniversário do massacre. Começaram a circular imagens pelas redes sociais, a criar spots de rádios e uma produção audiovisual da qual participaram, pela representação argentina, o prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel; Nora Cortiñas, Mãe da Praça de Maio Linha Fundadora; o juiz da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos Raúl Zaffaroni; o jornalista Atilio Borón e o músico Juan Falú.
Pelo Paraguai, foram convocados os jornalistas Leo Rubín e Mercedes “Menchi” Barriocanal, uma mulher muito conhecida no país vizinho [Paraguai]. Seu apoio à campanha foi crucial. “Embora seja uma pessoa que tem muita sensibilidade, nunca se comprometeu com algo deste porte. Muita gente tem medo de se comprometer com esta causa no Paraguai”, disse Ramírez.
A que se deve este medo? – pergunta Página/12.
À cultura stronista que está muito forte; a cultura da perseguição de quem é diferente, do anticomunismo acérrimo; de etiquetar como terrorista todo aquele que não é funcional ao jogo da direita ou de um governo. Essa lógica evidenciou-se depois do golpe com toda a fúria, com toda expressão. Por isso, dizemos que somos um movimento de resistência cultural, porque defendemos que não serve para nada ter o melhor presidente do mundo se a sociedade segue pronunciando-se e tratando os outros desta maneira.
Que elementos ajudaram a moldar essa continuidade na cultura paraguaia?
Depois da queda de (Alfredo) Stroessner, com os governos colorados houve uma impunidade: não houve julgamento e castigo; não houve um processo de reparação, de verdade e justiça; de revisão; de construção da memória e das memórias populares. Por isso, dizemos que para nós, no Paraguai, a democracia começa em 2008.
O que muda a partir deste momento?
Apenas a partir de então é possível rever questões que têm a ver, em primeiro lugar, com a institucionalidade, com a possibilidade de conquista de direitos de determinados setores sociais que toda a vida estiveram vedados. Não vou dizer que esse sistema de privilégios se quebrou, que continuou depois da queda da ditadura, mas estava sendo observado, questionado. Na realidade, o Partido Colorado perde devido a uma crise de legitimidade e uma crise interna ao partido. Conflitos que acabaram favorecendo a ascensão de Fernando Lugo em 2008, e que não conseguiu se manter. No caso Curuguaty, assim como no governo de Nicanor (Duarte Frutos) e de (Horacio) Cartes, é fundamental entender que as classes dominantes são compostas por uma oligarquia pecuário-exportadora, e que são elas que decidem os destinos do país. No Paraguai, nem sequer é possível fazer um censo para saber quem tem o quê.
Essa oligarquia aninha-se em setores que tiveram um papel fundamental na queda do presidente Lugo e que se deram bem com a ditadura stronista.
Há uma quantidade de títulos fraudulentos que têm os mesmos empresários que se favoreceram com as doações de Stroessner. Se somarmos os títulos daqueles que dizem ser proprietários da terra, o Paraguai teria cerca de 30% a mais de superfície. Aconteceu aquilo que chamamos de acumulação escandalosa: não houve um processo de reparação, nem de distribuição nem de revisão da condição dessas terras. Os empresários não querem a regularização desses títulos. No momento em que se quis tocar nesses interesses, o resultado foi o golpe parlamentar.
Alguns números sobre uso e acesso à terra. Ramírez afirma que se durante o governo de Fernando Lugo havia um evento sobre os trangênicos, com o governo de Horacio Cartes são mais de dez. Segundo estatísticas da Federação Nacional Camponesa guarani, 300 mil camponeses não contam com terra para cultivar no Paraguai. Menos de 3% dos paraguaios são donos de 85% das terras. Curuguaty colocou também outro tema na agenda: o conflito social derivado da luta pela terra. Para a Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy), desde a queda de Stroessner até hoje, ao menos 117 líderes camponeses foram assassinados ou desapareceram. Nenhum desses crimes foi esclarecido pela Justiça.
Jalil Rachid, funcionário que foi promotor da causa Curuguaty desde o seu começo até quando foi nomeado vice-ministro de Segurança no governo de Horacio Cartes, é filho de Bader Rachid Lichi, advogado, empresário e ex-senador colorado, amigo pessoal de Blas Riquelme, suposto proprietário que pediu a desocupação das terras, operação policial que desembocou nas 17 mortes.
Em um texto divulgado na época em que o ex-promotor chegou ao gabinete de Cartes, a Frente Guasú, partido que levou Lugo à presidência, afirmou: “Hoje, este mesmo personagem é nomeado como vice-ministro de Segurança, e os policiais que têm que dar seu testemunho na causa, como provas do Ministério Público, serão subordinados diretos do Senhor Jalil Rachid, em seu novo cargo como autoridade de segurança do Poder Executivo”.
Ramírez garante que há relações muito estreitas entre o atual governo e os responsáveis pela investigação do massacre de Curuguaty. “Rachid esteve quatro anos a cargo da causa e depois Cartes o leva como funcionário. É um sinal claro de reconhecimento. ‘Obrigado, você cumpriu sua missão. Agora vai a outro lugar onde estará mais tranquilo’”, garante a militante do Movimento 138.
Com a saída de Rachid do Ministério Público, Liliana Alcaraz ficou encarregada da Promotoria e pediu penas de até 40 anos para Rubén Villalba, dirigente territorial do Partido Comunista. É acusado de usar sua ideologia para manipular os camponeses, de instigá-los, de praticar o comunismo, algo que está em sua mente, em seu DNA. Para as mulheres, pediu oito anos de prisão. Por estarem com seus bebês nos braços, foram acusadas de encobrimento. “O simples fato de ser mulher e ter um filho converte você em uma acobertadora, uma criminosa. É uma lógica machista própria de uma promotora mulher. Isso também é stronismo”, dispara Ramírez.
Por quê?
A figura do governo de Stroessner é sumamente patriarcal, onde o grande homem assegurava todos os benefícios à população. Além de ir a todas as recepções do quinto ano do país, Stroessner pedia listas de perseguição a homossexuais. Eram operações muito macabras. São uma série de lógicas perversas, de perseguição e de não consideração e reconhecimento do outro, que é diferente. Isso é o estronismo. É a matriz que ficou incrustada na sociedade paraguaia, que é profundamente homofóbica. As mulheres da Conamuri (Coordenação Nacional de Organizações de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Indígenas), os estudantes, os camponeses organizados, os movimentos homossexuais de gays, lésbicas e travestis, muitas organizações tratam de desconstruir esta lógica produtora de sofrimento.
Quais são as expectativas de sua organização sobre o desfecho do julgamento?
Nós, como militantes, sempre seremos otimistas. Sempre vamos esperar, desejar e sonhar a liberdade de nossos companheiros e nossas companheiras. E mesmo que assim não se produza, vamos continuar comprometidos até que o último esteja em liberdade. A realidade é que no julgamento de Fernando Lugo não se respeitou nenhuma garantia do direito. O que os camponeses – ou qualquer um de nós – podem esperar se essa é a forma como se faz justiça no Paraguai? É a justiça do mbareté (“homem forte”, em guarani), do mais forte, daquele que se impõe pela força, pela violência. É uma avaliação positiva, do senso comum, vinculada aos homens. Mas, às vezes, é uma figura que estigmatiza, porque quem não tem força, não tem lugar, não tem espaço, nem direitos.
A partir desta terça-feira, nosso discurso vai mudar. Há quatro anos lutamos pela mesma causa. Estamos diante de um cenário que nos enche de incertezas, mas ao mesmo tempo entusiasma muito.
Além de divulgar o caso Curuguaty, que outros objetivos o Movimento 138 persegue?
A nossa luta é contra o stronismo, que está dentro e fora do Paraguai. Um operário da construção civil que vem a Buenos Aires, trabalha, chega em sua casa e bate na mulher, mantém essa matriz autoritária, de opressão, que aprendeu em sua casa. O objetivo da organização é trabalhar pela erradicação do stronismo nos diferentes níveis.
O stronismo está vigente no espaço judicial quando um juiz dá uma sentença de desocupação absolutamente irregular a favor de um produtor de soja stronista.
No âmbito político, quando o neto de Stroessner se reivindica no Parlamento como herdeiro dos ideais de seu avô. No começo do seu governo, Cartes propunha-o como representante do Paraguai na ONU.
No campo econômico, desde Stroessner até hoje, a única coisa que se fez foi concentrar. Stroessner doou um monte de terra aos seus amigos e essa matriz de desigualdade, que tem como elemento fundamental a terra, foi aprofundada. A violação dos direitos humanos do stronismo e pós-stronismo tem relação direta com os conflitos vinculados à terra.
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Curuguaty foi a desculpa para o golpe contra Lugo, em 2012. Entrevista com Delia Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU