04 Julho 2016
Professor Castor Bartolomé Ruiz Foto: Leslie Chaves/IHU |
“Não podemos entender a política, a economia, o mercado e até mesmo os movimentos sociais, sem voltarmos às raízes do Cristianismo. Os conceitos e práticas não nascem do nada, existe uma genealogia, um referencial que foi sendo desenvolvido ao longo da história e que nos explica muito de nosso presente”, aponta Castor Bartolomé Ruiz durante o debate “Foucault e Agamben. Implicações Ético-Políticas do Cristianismo”, no final da tarde da última quinta-feira, 30-06-2016, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. O evento fechou a programação promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos no primeiro semestre. As atividades serão retomadas no mês de agosto.
Cristianismo e filosofia
O Cristianismo enquanto pensamento religioso e narrativa do mundo se expandiu com mais força no ocidente, onde recebeu influência da filosofia grega, que se constituiu como uma chave de interpretação da teologia cristã. Ruiz destaca três aspectos da relação entre essas duas referências. “A filosofia foi utilizada como ferramenta de interpretação das questões teológicas cristãs. Em um primeiro momento, há uma perspectiva assimiladora, que busca fazer do Cristianismo uma filosofia, como podemos ver, por exemplo, no neoplatonismo agostiniano e na escolástica. Outra perspectiva é a apologética, na qual a filosofia foi utilizada como apoio para a defesa do Cristianismo. Por outro lado, também temos a perspectiva aniquiladora, que se baseia na filosofia para desconstruir o Cristianismo e afirmar a vivência plena da humanidade. A partir da abordagem filosófica da teologia cristã, Foucault e Agamben se interessam pelo Cristianismo como genealogia da política contemporânea”, explica.
Poder pastoral
Em seus estudos acerca dos dispositivos de poder e controle social na contemporaneidade, Michel Foucault identifica a figura do pastor como traço forte das formas de governamento dos Estados. De acordo com Ruiz, o que Foucault denomina como poder pastoral é uma ideia que perpassou muitas sociedades antigas, como a Babilônica, Assíria, Suméria, Egípcia, Persa e Hebraica. “A imagem do rei pastor era muito mais que uma metáfora, representava uma forma de exercício do poder. O rei pastor simbolizava um tipo de poder específico perpassado pela relação de cuidado com o rebanho. O modelo do rei pastor era comum à maioria das culturas orientais”, aponta.
Entretanto, conforme explica o professor, é com o Cristianismo, mais tarde, que o pastorado se tece como arte de governo. “Aos poucos a arte pastoral ganha espaço e é ressignificada pelo Cristianismo e pela filosofia. Elementos como a relação entre discípulo e mestre, que vem da filosofia, é ressemantizada pelo Cristianismo e hoje aparece nas formas de governo. As questões da obediência e consciência, que na filosofia são premissas que buscam independizar os sujeitos, também sofrem algumas transformações no Cristianismo e pelo contato com as culturas Saxãs, em que a obediência ligava-se mais à noção de submissão aos governantes. Nesse contexto, o cuidado com o outro, um dos princípios do poder pastoral, torna-se um meio de manutenção da obediência eterna”, analisa.
Glorificação do soberano e opinião pública
Também interessado na genealogia do poder, Giorgio Agamben se preocupa com a origem da economia política e como ela aparece enquanto ciência de governo no ocidente. O autor percebe influências da teologia cristã do século III na política contemporânea, especialmente no que diz respeito às formas litúrgicas de glorificação de Deus. “Agamben examina os nexos existentes entre a glória do poder e as democracias de massa. A aclamação está na ordem da opinião pública, que é a atualização dessa ideia de glorificação, onde hoje os meios de comunicação são extremamente importantes não só para a difusão de conceitos, mas principalmente porque controlam a dispersão e direcionamento da glória aos atores sociais. Estamos diante da derrocada de uma presidente da República em parte por pressões da opinião pública, que também tem garantido a continuação da Operação Lava Jato”, frisa Ruiz.
Governo das vontades
A partir dessas análises genealógicas do poder, o que há de comum e está no cerne das discussões de Foucault e Agamben é a questão da cooptação da autonomia dos sujeitos. A natureza deliberativa da política, que em sua essência prevê que os cidadãos decidam coletivamente os rumos da comunidade da qual fazem parte, na contemporaneidade tem sido sequestrada pelo governo das vontades.
Conforme chama a atenção o professor Ruiz, “estamos emaranhados em uma rede de governamentabilidade da conduta dos sujeitos. As práticas de deliberação autogestionárias políticas estão sendo substituídas pela condução do poder de escolha dos cidadãos, que se configura em formas de gestão e administração dos interesses e condutas. Somos cada vez mais massificados e menos sujeitos”.
O professor ressalta ainda que a democracia, de onde se parte da noção de deliberação coletiva do governo, não é boa nem má em si mesma, o que define esse caráter são os caminhos utilizados para colocá-la em prática. Nesse sentido, Ruiz faz uma avaliação dos processos democráticos atualmente. “A democracia moderna provoca uma cisão na arte da retórica, que pressupõe o diálogo, em busca do consenso. Quando a técnica de poder da democracia se distorce e transforma-se em persuasão simplesmente, ela se converte em demagogia. Atualmente, as democracias de massa são demagogias massificadas pela opinião pública”, pondera.
Assim, a importância e necessidade desse debate sobre a genealogia do poder reside justamente no entendimento dos mecanismos de governamento contemporâneos, com vistas a buscar linhas de fuga para a construção de modos de gestão mais participativos que promovam sociedades mais justas. “Precisamos ter uma visão crítica acerca desse debate e refletir sobre o que chamamos hoje de democracia e que tipo de democracia queremos”, propõe o professor.
O conferencista
Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004); e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).
Por Leslie Chaves
Nota da IHU On-Line: O vídeo da conferência pode ser visto clicando aqui.
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Que democracia temos e qual queremos? Uma genealogia das técnicas de governo contemporâneas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU