21 Junho 2016
Uma velha concepção da picaresca política dizia que coisas boas podiam ser feitas com cimento duvidoso. Isto era dito como uma provocação, dando-se a licença para pensar que situações interessantes se poderiam construir a partir de rejeitos.
A reportagem é de Horácio Gonzalez, publicada por Uninômade, 19-06-2016. A tradução é de Bruno Cava.
Esta proporcionalidade entre realizações democrático-populares e a confusa tolerância aos gargântuas e pantagruélicos do movimento social cobrou agora um significado doloroso, irreal e autodestrutivo, que desafia as crenças de milhares e milhares de militantes. Estapeia a memória dos mortos pela ditadura, dos desaparecidos pela fúria do estado, dos escritores e políticos que puseram a sua sensibilidade para trabalhar a favor da torrente histórica — Cooke, Walsh, Ortega Peña, Eduardo Luis Duhalde, Juan José Hernández Arregui, Rodolfo Puiggrós, Arturo Jauretche –, dos militantes de várias gerações, inclusive os anarquistas, socialistas e comunistas que, num passado distante, imaginaram que algo de novo sacudiria as suas vidas, até aqueles resistentes de uma década posterior, bem como os insurgentes que ofereceram sua face no tramo seguinte da história, e finalmente os jovens que se inscreveram na saga das velhas canções agregando-lhes agora novas estrofes.
Tudo isso ameaça colapsar ante um silogismo irresolúvel que devemos saber explicar: a aparição dos José López, esses arquétipos circulares que ressurgem de tempos em tempos como um cometa que visita de tantos em tantos anos a Terra. A ausência do sobrenome “Rega” [1] ao fim do nome mencionado não impede de considerar que, nesse caso, resida um campo de manobras que desbarata — recorrentemente — a vida popular a partir de seu próprio coração.
Mas foi assim mesmo? Realmente um ex-funcionário num lapso de sonambulismo tenta escalar as paredes de um convento habitado por três monjas anciãs com uma pilha de dólares? De muitos dólares? Para enterrá-los?
Estaria confirmada a tese destes últimos tempos, repletas de simbolismos e alegorias fatídicas. A corrupção precisa de cofres, terra úmida e sombrias figuras que medram com aditamentos de contratos e sobrepreços secretos. As imagens foram generosas com quem insistiu em pré-fabricar, nos meios de comunicação, receptadores ocultos para o dinheiro. Foi-lhes ofertada a cabeça encasquetada e o colete à prova de balas do homem que não ia à sacristia como crente, mas sairia algemado do oratório, rezando por seu abarrotado saco de dólares.
A história soa demencial e gostaríamos que estivesse errada, que não tivesse ocorrido, pois jamais a teríamos pensado. Víamos uma procissão policial portentosa que dirigia as suas lanças envenenadas contra o nosso assombro, contra a nossa história e contra os nossos compromissos de anos. Este episódio de entornos sinistros deve ser rapidamente esclarecido.
Tínhamos resistido a imputações de todo tipo. Percebíamos no tratamento midiático da questão uma montagem cinematográfica, que levava guindastes e vertiginosos fiscais a paragens desoladas. Não é que o tema nos agradasse e que negássemos inteiramente o que o vozerio dominante exclamava sem maiores provas. Mas o arrebatamento circense com que se expunham os casos permitia-nos ao menos levantar suspeitas, pois se tratava de demolir a memória de um governo, contornando ou fazendo pouco caso dos jogos financeiros não declarados que os membros do novo governo realizavam.
As diferenças são óbvias: num caso, o roubo para a própria algibeira; no outro, as furtivas manobras financeiras e empresariais em covis fiscais.
Agora, ainda quanto ao relato às margens do folhetim gótico, José López proporcionou o prato mais forte da temporada, o que permitiria anular toda uma história, cegar um compromisso, revogar um legado. Os dólares na abadia, o bispo amigo, e as cenas de guerra são munição pesada e destruidora. Não o podemos ignorar, matizar ou aliviar-lhe a barra, a menos que se demonstre ter sido uma grande farsa. Mas não nos parece que tenha sido. Em nome da reconstrução de uma frente social inovadora, que respeite as suas próprias bandeiras e examine criticamente os seus velhos arcabouços, ninguém deve furtar-se de condenar explicitamente este episódio do monastério sem beatos.
Nota:
[1] – Jogo entre o nome do funcionário kirchnerista, José López, flagrado na semana passada enterrando US$ 10 milhões num convento e José López Rega (1916-89), fundador de um grupo de extermínio atuante nas ditaduras argentinas (NE).
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O mosteiro sem beatos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU