Por: Cesar Sanson | 15 Junho 2016
"A atual crise política e o déficit de legitimidade nos partidos e governo proporcionaram o avanço de propostas que representam um enorme risco de retrocesso à medida que andam na contramão dos direitos humanos", escreve Atila Roque, Diretor Executivo da Anistia Internacional no Brasil em artigo publicado por CartaCapital, 14-06-2016.
Eis o artigo.
Com muita frequência me vejo diante da pergunta, quase sempre em tom provocação: a quem se destinam os direitos humanos? Com isso muitos querem sugerir que os “bandidos” são os maiores beneficiários. Outros, no entanto, reconhecem a importância de garantir a dignidade humana a todas as pessoas, sem exceções. Os princípios fundamentais dos direitos humanos, conquistados e consagrados internacionalmente após muito sofrimento ao longo das últimas décadas e, no caso do Brasil, expresso amplamente na Constituição de 1988, constituem os pilares que sustentam o estado de direito moderno.
O novo momento político, entretanto, nos coloca um questionamento ainda mais primordial: para que servem os direitos humanos em momentos de crise como o que vivemos?
Estou convencido que é justamente em momentos críticos, quando as circunstâncias políticas e econômicas colocam a sociedade diante de escolhas muitas vezes difíceis, é que os direitos humanos devem servir como o ponto de referência do qual não devemos nos afastar. Nesse sentido, certamente, algumas medidas concretas e declarações iniciais de altas autoridades no governo provisório agravam a preocupação com os avanços que logramos ao longo da transição da ditadura para a democracia no Brasil.
A extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e Direitos Humanos, por exemplo, constitui indícios dos riscos de fragilização do marco institucional responsável pela garantia de direitos fundamentais para a promoção da igualdade e da justiça social no Brasil. A composição do ministério do governo provisório integralmente de homens brancos também revelou uma baixa preocupação com a diversidade que deve sempre estar expressa no modo como o Estado compõe as mais altas posições de poder da administração pública.
No entanto, é preciso reconhecer que muitos dos desafios e riscos com os quais nos deparamos nesse momento se tratam do acirramento de problemas que já vínhamos alertando, inclusive nos relatórios anuais de balanço do estado dos direitos humanos no mundo da Anistia Internacional, em particular no capítulo brasileiro, disponíveis no site da entidade.
O relatório de 2015, por exemplo, chamava a atenção para o avanço no legislativo de um conjunto de propostas que se aprovadas significariam retrocessos graves nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, das populações indígenas e quilombolas em relação aos seus territórios e de desmonte da legislação que controla o acesso a armas de fogo no país, apenas para citar alguns temas. A crise política e o déficit de liderança e legitimidade existente atualmente nos partidos políticos e governo – que já vem sendo objeto de debate desde as grandes manifestações de 2013 – proporcionaram o avanço de uma pauta de propostas que busca rever conquistas essenciais consagradas, inclusive, na Constituição brasileira.
A agenda legislativa apresenta sérias ameaças como a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos – diminuindo a idade com que jovens se tornariam adultos, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que retira do Executivo a exclusividade de demarcar terras indígenas, e a Proposta de Lei (PL) 5069/2013, que dificulta o atendimento de saúde a mulheres vítimas de estupro. Estes projetos encontram-se atualmente em discussão na Câmara dos Deputados ou no Senado, juntamente com a proposta de revogação do Estatuto do Desarmamento (PL 3722/12), que flexibiliza o porte de armas; o novo código de mineração (PL5807/13), que ignora o impacto da atividade ao meio ambiente; e o Estatuto da Família (PL 6583/13), que define família apenas a partir de casais heterossexuais. Sem contar a tipificação do terrorismo aprovada em março, que pode ser usada para criminalizar movimentos sociais e protestos pacíficos por conter linguagem sumamente vaga. Todos estes projetos representam um enorme risco de retrocesso à medida que andam na contramão dos direitos humanos. Estas propostas comprometem conquistas alcançadas a duras penas no passado recente.
O momento é de atenção e cuidado. Mais do que nunca temos que buscar na nossa história recente a inspiração para evitar aventuras e aprender com os acertos do processo de transição democrática. Para isso é essencial o fortalecimento de uma sociedade civil autônoma e independente capaz de, em momentos históricos de transição ou crise como o que vivemos atualmente, fazer a diferença na balança do processo de mudança sociopolítico brasileiro.
Esse delicado equilíbrio, infelizmente, pende atualmente para o lado da regressão dos direitos humanos e retrocessos na nossa jovem democracia. Mais do que nunca a mobilização social e a defesa dos direitos à livre manifestação são centrais para que possamos fazer o debate amplo que precisamos sobre as escolhas e reformas que o Brasil não pode mais adiar, inclusive aquele do sistema político, de maneira que as nossas instituições possam recuperar o mínimo de legitimidade necessária a garantia da democracia e do Estado de direito.
A afirmação e defesa dos direitos humanos fundamentais a todas as pessoas é parte essencial dessa luta, seja qual for o desdobramento da atual crise política e o resultado do julgamento do impeachment atualmente em curso no Senado. O Brasil, não devemos nos enganar, segue sendo um país de raízes autoritárias, onde a desigualdade, a violência, o machismo e o racismo continuam a estruturar o poder. Esses são os monstros que se apresentam de maneira cada vez mais aberta e desavergonhada nas redes sociais e nas ruas.
Momentos de incerteza e instabilidade requerem lucidez das lideranças responsáveis de todas as esferas para que formem uma verdadeira frente política suprapartidária na defesa da democracia e dos direitos humanos. Às autoridades cabe o dever de reafirmar seu compromisso de defesa das conquistas consagradas na Constituição de 1988 e a cumprirem plenamente com suas obrigações internacionais adquiridas em virtude dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil faz parte.
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Direitos Humanos são inegociáveis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU