15 Junho 2016
Com a Amoris laetitia, entramos em um percurso de "reescuta" do real, sem as telas distorcidas de um procedimento canônico e de um direito canônico que exalam incompreensão dogmática, simplismo bíblico e agressividade institucional. O resultado último da Amoris laetitia, certamente, será – embora eu não saiba em quantos anos – uma reformulação abrangente do direito matrimonial substancial.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 10-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Entre as "coisas novas" que podemos encontrar na Amoris laetitia, deve-se incluir uma nova conscientização da decisiva relação que se instituiu, ao longo da história, entre configuração da "natureza do matrimônio" e os remédios que foram oferecidos pela experiência da sua "crise". Poderíamos quase dizer que houve, ao longo dos últimos 150 anos, um modo de pensar e de estruturar a "fisiologia matrimonial" – no plano teológico e no plano jurídico – que impôs que se pensasse a "patologia" apenas em certas formas e dentro de certos limites.
Por isso, gostaria de proceder uma detecção da Amoris laetitia acerca da "patologia", para intuir nela também a presença de um "modelo fisiológico" diferente. Mas, para fazer isso, gostaria, acima de tudo, de descobrir como funcionou nos últimos dois séculos essa delicada instituição eclesial.
a) A tradição do século XIX até as primeiras décadas do século XX
Assim como fez com a terminologia da "inerrância" para a Bíblia ou da "infalibilidade" para o papado, o século XIX também trabalhou sobre a determinação da "indissolubilidade" do matrimônio.
O esquema de compreensão foi predisposto, de forma gradual, primeiro por Pio IX, depois através de Leão XIII a Pio XI. Começando pelo discurso de Pio IX diante dos cardeais de 1852, para depois passar pela Arcano divinae sapientiae de Leão XIII, em 1880, o Código pio-beneditino de 1917 e chegar à Casti connubii de Pio XI, em 1930, o percurso de definição do matrimônio como "instituição divina" amadureceu uma série de características peculiares, que eu resumo na bela leitura oferecida por Peter Hünermann (Il Regno, 8/2015, p. 553-560):
a) uma leitura fundamentalista da Escritura pretendeu intuir diretamente a partir do texto bíblico uma normativa canônica sobre o matrimônio;
b) pensou-se no matrimônio como inteiramente normatizado por Deus e, portanto, subtraído da liberdade do homem e da mulher, segundo a lex naturalis e a Palavra do Senhor;
c) obviamente, não se negou a "participação" do homem e da mulher, mas reduzindo-a apenas ao "livre consentimento original", como forma com a qual é preciso obedecer ao modelo fornecido por Deus, ao qual os batizados devem simplesmente aderir e se uniformizar, sem qualquer exercício da liberdade.
Nas palavras de Peter Hünermann, tal posição pode ser assim resumida:
"O princípio hermenêutico com base no qual, na Casti connubii, interpretam-se os textos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, diz: Deus criou o matrimônio como criador do homem e da mulher e, ao mesmo tempo, regulou plenamente mediante leis divinas, anunciadas por Deus através da natureza ou de Jesus Cristo. Segue-se daí um fundamentalismo teológico, moldado por um pensamento jurídico, que apresenta os fundamentos bíblicos de um modo grosseiramente simplificado" (p. 556).
Isso significa que, a uma descrição da fisiologia matrimonial assim concebida, na qual todo o ordenamento do matrimônio é completamente subtraído da "disponibilidade" dos sujeitos envolvidos, toda possível "crise" deve ser imputável certamente não a Deus – cujo paradigma matrimonial, obviamente, está fora de toda possível avaliação –, mas ao "consentimento original" do homem e da mulher. Apenas a detecção de um "vício original" daquele ato pessoal e inimitável, que se expressa no consentimento, pode iluminar a "crise do matrimônio" com a detecção de uma "nulidade" original.
Poderíamos dizer, portanto, que é o modelo de hermenêutica da tradição, oferecido pela reflexão do século XIX, que impõe não só uma leitura positiva do matrimônio, mas também a "terapia" para o caso de crise. As nossas práticas judiciárias "forçadas" de hoje, de fato, não são o nosso "destino" como católicos, mas o fruto de uma teoria inadequada do matrimônio a partir do ponto de vista sistemático e jurídico.
b) A nova "mens" e a nova terminologia da Amoris laetitia
Dada a força e a autoridade dessa resposta que se tornou clássica a partir de meados do século XIX e que, portanto, tem mais de um século, a Amoris laetitia também retoma necessariamente tal perfil, que caracteriza a tradição eclesial há tanto tempo.
Mas, na Amoris laetitia, aparece, paralelamente, não só um "recurso novo para a patologia", mas também uma releitura diferente da fisiologia matrimonial. E está aqui o ponto novo que merece ser assinalado mais do que até agora. Ou seja, que a Amoris laetitia, com a sua abordagem "pastoral", não só inaugura caminhos de "acompanhamento, discernimento e integração" como lugares de remédio à "fragilidade", mas ajustar de forma diferente a lógica da fisiologia matrimonial, o modo de compreender a relação entre "desígnio de graça" e "resposta da liberdade".
Essa nova compreensão, saindo dos baixios de um fundamentalismo tão rígido quanto falso, elabora um novo papel da consciência livre e da história do sujeito. Por isso, pode descerrar um novo campo de mediação, no qual se volta a dar a primeira palavra à realidade e ao tempo, contra a ideologia do primado das ideias e do espaço.
É suficiente notar que, no texto da Amoris laetitia, repete-se quatro vezes a expressão "fracasso do matrimônio" (AL 40, 209, 242, 286): tal terminologia – que Basilio Petrà já havia assinalado durante o caminho sinodal – introduz uma dimensão nova no debate histórico.
O fato de o matrimônio ter "fracassado" introduz uma variável que a tradição recente obstinadamente quis negar, deslocando toda possibilidade de julgamento a partir do "fracasso posterior" à nulidade original. Sob esse perfil, a Amoris laetitia assume uma linguagem explicitamente diferente, introduzindo uma "teoria do vínculo" diferente.
c) O escândalo dos juristas e o interesse dos teólogos
O "fracasso do matrimônio", portanto, é uma expressão que, considerada a partir do ponto de vista do canonista de formação clássica, facilmente pode ser julgada como "imprecisa" e "enganosa". Essa objeção reflete um julgamento que, em sentido mais geral, ouve-se ser levantado contra a Amoris laetitia, de que seria um texto "impreciso" e "enganoso". Dizem isso alguns jornalistas, também alguns teólogos. Alguns pastores o sussurram.
Mas por quê? Não há dúvida de que o julgamento é proferido "em relação a um modelo". Certamente, em relação ao modelo do século XIX, a Amoris laetitia opera um grande transgressão: faz prevalecer a realidade sobre a ideia e o tempo sobre o espaço. Por isso, para aqueles que estão acostumados a lidar com a tradição com o primado da ideia a ser pensada sobre a realidade e do espaço a ser ocupado no tempo para caminhar, a Amoris laetitia aparece como documento dissonante e transgressor.
Especialmente para aqueles canonistas que vincularam a sua identidade a um suposto modelo imutável – que, para eles, só o é porque removeram a sua mutação –, o texto da Amoris laetitia parece ser quase desconcertante. Porque ele configura um horizonte de compreensão e de ação profundamente mudado, mudando as regras do jogo. A realidade e o tempo readquirem autoridade e pedem para ser dimensões abertamente reconhecidas.
Ao fazer isso, a Amoris laetitia inverte a tendência que, gradualmente, tinha se imposto ao longo da história. Tínhamos elaborado um "direito canônico substancial" com os critérios teológicos e dogmáticos que eu lembrei antes e com toda a sua fragilidade. Com base nesse direito substancial, tínhamos construído uma "catedral processual", que se autopromovia ainda mais como "única solução possível e legítima".
Esse é um "duplo salto mortal": a formalização jurídica e, depois, processual se tornam "esquemas" de uma pastoral geral do matrimônio. Desse modo, o pastor corre o risco de pensar como "primum" justamente o nível mais alto de formalização processual, perdendo, desse modo, grande parte da saudável relação com a realidade.
Com a Amoris laetitia, entramos em um percurso de "reescuta" do real, sem as telas distorcidas de um procedimento canônico e de um direito canônico que exalam incompreensão dogmática, simplismo bíblico e agressividade institucional. O resultado último da Amoris laetitia, certamente, será – embora eu não saiba em quantos anos – uma reformulação abrangente do direito matrimonial substancial.
d) As brincadeiras das crianças e a imunização do real
As dinâmicas a que a Igreja se adaptou, por causa do pensamento estreito que a dominou principalmente nos últimos 150 anos, podem ser compreendidas através de um exemplo bastante surpreendente. As brincadeiras das crianças.
Quando as crianças brincam, elas podem fazer isso de muitas maneiras. Mas há um modo em que uma criança se dispõe a jogar apenas quando está certa de que vai vencer. E faz isso de modo que as regras, as modalidades, os tempos, as competências estejam todas a seu favor.
A Igreja também quis se proteger, no matrimônio, da experiência da derrota. Predispôs um instrumento teórico mediante o qual, como instituição, no matrimônio, ela sempre sai vencedora, às custas de fazer com que os sujeitos saiam duplamente perdedores.
Porque, com efeito, o instrumento elaborado entre o fim do século XIX e o início do século XX tinha a vantagem de "vencer sempre". Convencia e se convencia de que "indissolubilidade" era sinônimo de "infrangibilidade". E que todo problema interno ao vínculo era atribuível a um vício original do próprio vínculo. Portanto, que o "fracasso" devia ser excluído a priori. Porque, se havia o vínculo, não havia fracasso possível. Mas, se o fracasso se manifestava, sempre se podia demonstrar que o vínculo nunca tinha existido.
Diante dessa "máquina do nada", que poderia se perpetuar até a parusia, o balde de água fria da Amoris laetitia chega de forma oportuna e bendita. Uma tradução da doutrina matrimonial requer um "banho de humildade", uma imersão sem escrúpulos na realidade, que agora podemos ler de maneira nova e sem preconceitos.
Nesse banho, a doutrina, de fato, não foi posta "em discussão", mas posta "em tradução". Uma disciplina renovada será o seu espelho fiel e eficaz. Cuja eficácia não poderá mais sofrer pausas, hesitações ou adiamentos: a vocação pastoral da experiência cristã do matrimônio e da família não pode mais esperar. Mas a espera não é só a Igreja, mas também da cultura comum.
Oferecer uma mediação não fundamentalista e não ingênua à inesgotável força da comunhão conjugal, que saiba manter em seu interior também a possibilidade da sua crise irreparável, é uma legítima expectativa não só das consciências dos fiéis, mas também das consciências tout-court. Que não precisam inventar aquilo que não existe, mas sim ler de forma cristã aquilo que a experiência já elaborou, embora com esforço e com limites evidentes.
Mas poder ler isso não só "pelo pecado", mas também "pela graça" é um dom que recebemos da Amoris laetitia. O dom pode até não ser aceito ou até rejeitado: mas, por favor, não chamemo-lo de "confusão" ou de "ambiguidade".
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Descobrindo a "Amoris laetitia": fisiologia e patologia em nova relação. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU