03 Mai 2016
"Análise detalhada do programa econômico do vice revela ataque aos salários, novos favores às elites e ímpeto de bloquear luta das maiorias por igualdade".
O comentário é de Carlos Frederico Leao Rocha, doutor em Economia e professor do Instituto de Economia da UFRJ, em artigo publicado por Outras Palavras, 02-05-2016.
Eis o artigo.
Ao se colocar como alternativa à presidência, o vice-presidente Michel Temer preparou um documento sobre quais seriam as linhas gerais seguidas em um suposto governo de substituição à presidente Dilma Roussef. O documento se chamou “Uma ponte para o futuro” [1]. Este texto procura apresentar criticamente suas principais propostas e desenhar um possível cenário, caso a hipótese de impedimento da presidente venha a se verificar.
“Uma ponte para o futuro” realiza inicialmente um diagnóstico da situação do país. Primeiro, haveria um grave desequilíbrio causado pelos benefícios criados pela Constituição de 1988. Segundo, como a carga tributária é elevada, uma solução pelo aumento dos impostos estaria inviabilizada. Terceiro, existiria grande dificuldade de redução de despesas que resultam de obrigação constitucional.
O Ajuste Fiscal
Segundo o documento, os dispositivos de gastos em educação, saúde e assistência social seriam até virtuosos, mas, somados a outras despesas obrigatórias não virtuosas, que incluem a Previdência Social, tornariam necessária uma forte reestruturação, alterando dispositivos constitucionais e legais.
Em termos orçamentários, o projeto do Vice-presidente propõe:
i. fim de todas as vinculações obrigatórias do Orçamento a despesas específicos (incluindo as virtuosas);
ii. criação do orçamento impositivo, ou seja, o orçamento votado no congresso deve ser obrigatoriamente executado em sua integralidade, sem contingenciamento;
iii. fim de todas as indexações, seja para salários, seja para benefícios previdenciários, seja para qualquer gasto;
iv. criação do orçamento de base zero, que significa a revisão de todos os itens orçamentários a cada legislatura, ou seja, a possibilidade de descontinuidade anual de qualquer programa; e
v. um dispositivo que impossibilita o aumento das despesas acima do crescimento do PIB.
A primeira percepção que emerge da leitura das propostas de ajuste é uma tentativa de deslocamento de poder do Executivo para o Legislativo. Escrito em outubro de 2015, em um cenário político conturbado, com o governo enfraquecido, percebe-se que existe uma tentativa de assegurar aos congressistas que suas emendas orçamentárias terão de ser executadas. É possível especular que o objetivo era assegurar aos congressistas, próximos a votar um impedimento, estariam frente a uma oportunidade de ganhar poder na definição de recursos de acordo com seus desejos, que não poderiam mais ser alvo de contingenciamento governamental.
Sob o ponto de vista econômico, as medidas sugeridas parecem conduzir, no entanto, à redução dos gastos sociais. A desvinculação das despesas é um dos instrumentos, o outro é o fim das indexações, que afeta principalmente a Previdência Social, objeto de análise específica mais adiante. Uma rápida avaliação nas despesas que sofreriam desvinculação permite concluir que, salvo algumas exceções que poderiam ser citadas nominalmente se fossem os únicos alvo, apenas recursos destinados à Saúde, Previdência, Educação e salários sofrerão os cortes propostos [2].
A segunda consequência econômica é a proibição institucional de políticas keynesianas. Ao fixar que o gasto governamental não poderá crescer mais do que o PIB, o vice-presidente está definindo o fim da possibilidade de se realizar políticas anticíclicas. Tradicionalmente, os gastos governamentais representam um papel anticíclico. Economistas keynesianos e ortodoxos vêm debatendo questões em torno do tema desde a publicação da Teoria Geral do Emprego, Juro e Moeda, em 1936. Está longe de haver consenso, mas nunca, desde os anos 1930, o pêndulo esteve tão a favor dos seguidores de Keynes. Até mesmo o sisudo Fundo Monetário Internacional apresentou uma mudança no seu entendimento sobre o assunto, propondo políticas fiscais mais frouxas, após a crise de 2008[3]. O entendimento do vice-presidente é, no entanto, que devemos proibir legalmente políticas que, frente a uma queda do PIB, possam atenuar os efeitos recessivos.
Surge, então, um primeiro conjunto de questões: será que é razoável dar esse importante passo, que produziráengessamento das políticas públicas, a partir da retirada de uma presidente que foi legitimamente eleita com um programa oposto e a indicação quase que biônica de um presidente alternativo? Será que medidas tão drásticas quanto essas não deveriam ser alvo de uma Constituinte?
Uma ponte para o futuro dá especial ênfase à Previdência. Essa atenção é justificada devido ao crescente déficit do INSS e à elevada parcela do PIB dedicada a este item do Orçamento. De acordo com os argumentos expostos, o Brasil teria cerca de 12% do PIB dedicados à Previdência, parcela semelhante a França e Alemanha, que têm uma pirâmide demográfica mais envelhecida -, e o dobro de EUA e Japão.
O documento, então, propõe:
i. aumento da idade mínima de aposentadoria para 60 anos, para mulheres, e 65, para homens; e
ii. fim da indexação dos benefícios da Previdência ao salário mínimo.
Com respeito a esse ponto é importante ressaltar que cerca de 60% dos beneficiários da Previdência recebem o piso do salário mínimo. A retirada da indexação implicaria uma perda real significativa para um número razoavelmente grande de famílias (cerca de 30% das famílias recebem rendimentos previdenciários). É fundamental lembrar que, em média, o crescimento e melhor distribuição dos rendimentos da Previdência Social são responsáveis por cerca de um quarto da redução da desigualdade no Brasil. As mudanças na indexação no piso salarial estarão na contramão deste processo. Além disso, deve-se ponderar que, se o salário mínimo tem um valor em termos de dignidade humana (artigo primeiro da Constituição Federal), o que se pode pensar em termos de valores sociais sobre esse tipo de medida?
O aumento da idade de aposentadoria toca em um ponto relevante que entendo deva ser pensado pela sociedade. Trata-se da divisão intergeracional da renda. Não teria uma oposição inicial à medida, embora, mais uma vez e sempre, entenda que isso deve ser uma discussão social e não uma medida tomada a partir da assunção do poder indiretamente por alguém cujo programa não foi submetido a escrutínio.
É de se notar, contudo, uma grande omissão. Um dos vários equívocos do governo Dilma foi a desoneração da folha de pagamento, que provocou, em 2014, uma redução de cerca de R$ 20 milhões na arrecadação de impostos. Não há uma palavra do vice-presidente sobre esse tema. É de se especular quando entidades empresariais desenham ou copiam figuras de pato, quem serão os verdadeiros patos de um possível governo Temer.
A Agenda para o Desenvolvimento
A parte final do documento apresenta uma agenda de desenvolvimento fortemente baseada na liberalização dos mercados (ou quase). As principais medidas podem ser divididas em quatro grupos. Primeiro, há elementos que, creio, todos concordariam e que não foram realizados por impossibilidade de negociação parlamentar ou por falta de capacidade técnica de montagem de uma agenda de discussões. Nesse caso, a “Ponte para o Futuro” propõe a melhoria do ambiente de negócios com a simplificação do sistema tributário e redução dos obstáculos à abertura e ao fechamento de empresas; atenção à gestão das empresas públicas e das agências reguladoras, entre outros pontos de menor importância. Ensaia o que seria uma continuidade da política de inovação ao “dar alta prioridade à pesquisa e o desenvolvimento tecnológico que são a base da inovação”.
Segundo, argumenta pela necessidade de se realizar com celeridade uma “abertura comercial que torne nosso setor produtivo mais competitivo, graças ao acesso a bens de capital, tecnologia e insumos importados”. Essa abertura deveria ser acompanhada pela assinatura de acordos regionais, já em andamento, que melhorariam o acesso de produtos tupiniquins aos mercados da Ásia e da América do Norte. Além do mais, argumenta que o realinhamento do câmbio auxiliaria essa transformação.
A terceira frente seria “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias”, inclusive na área de petróleo, que retornaria à regulação que vigorou previamente à descoberta do pré-sal.
A quarta iniciativa seria a alteração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), permitindo que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos. Neste aspecto, merece também destaque uma frase contida no documento, em que se afirma que, em contrapartida ao novo sistema público sem indexação, “novas legislações procurarão exterminar de vez os resíduos de indexação de contratos no mundo privado e no setor financeiro”. O principal contrato do “mundo privado” é o de trabalho e creio ser essa uma maneira indireta de se afirmar que se alterará a regra de reajuste do salário mínimo.
Cabe notar uma importante ausência, tanto nos comentários da política de desenvolvimento, quanto nos referentes ao ajuste fiscal: a desoneração tributária à indústria por intermédio do IPI e outros procedimentos. (Olha o pato outra vez na área). A desoneração de impostos no total (incluindo a da folha de pagamento) representou, em 2014, R$ 88 bilhões de redução na arrecadação da União. Nenhuma palavra sobre isso no documento: nem sobre as medidas que poderiam vir a ser virtuosas, nem sobre alguns estrondosos erros do governo Dilma.
A agenda de desenvolvimento merece comentários. Na parte inicial, mudanças no ambiente de negócios estão longe de conduzir a uma trajetória clara de desenvolvimento. A evidência empírica não parece ser conclusiva a esse respeito, principalmente porque existem endogeneidades que são difíceis de controlar. Mais importante, acreditar na simplificação do sistema tributário com as divergências de interesses encontradas entre os entes federativos está mais próximo da montagem de uma agenda natalina, do que propriamente de desenvolvimento.
A proposta de abertura do mercado doméstico está na mesa desde o início do processo de redemocratização do Brasil. O governo Collor fez um esboço de uma política de redução da proteção e os governos Itamar e FHC realizaram uma importante modificação nesse cenário, estabelecendo regras transparentes para tarifas e permitindo a entrada de bens importados em todos os segmentos da economia. Os governos Lula e Dilma mantiveram as principais características do modelo, ainda que tenham implantado, em alguns setores, políticas de conteúdo local, bem-sucedidas em alguns casos, nem tanto em outros. De fato, quando se examinam as empresas, aquelas que mais importam insumos e equipamentos tendem a ter melhor desempenho e as exportadoras tendem a ser mais eficientes. Contudo, é wishful thinking pensar que a mera redução tarifária ou a suspensão de políticas de conteúdo local somadas à recente desvalorização cambial implicarão crescimento das exportações. A abertura de mercados impõe um novo e mais agressivo ambiente seletivo às empresas. Os impactos sobre emprego e renda no curto prazo estão longe de ser positivos. Um ano após a forte desvalorização de 2015, não se verifica mudança nas exportações. As estimativas de elasticidade preço e câmbio de nossas exportações estão longe de ser otimistas. Ademais, apesar da abertura promovida por Itamar e FHC ter afetado os segmentos de comerciáveis no Brasil, a estrutura industrial pouco se alterou além da provocação de uma onda de fusões e aquisições que internacionalizou ainda mais a nossa indústria. Nesse sentido, a experiência ensina que mesmo no longo prazo os efeitos podem não ser os desejados.
O tema da privatização parece ser um pouco mais perigoso e, nesse caso, o escrutínio público é fundamental. Toda vez que foi tema de eleição, a população escolheu contra a privatização. No setor financeiro, Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES tiveram um papel central na reversão da crise, entre 2009 e 2010. São instrumentos importantes de política econômica. Não parece razoável privatizá-los. Na área do petróleo, o retorno do marco regulatório ao sistema de concessão está longe de ser dano. No entanto, a privatização da Petrobras não parece ser convidativa. A Petrobras tem grande contribuição ao desenvolvimento tecnológico do Brasil. Parece claro que provedores da Petrobras têm melhor desempenho do que seus pares e os testes de causalidade, na medida em que se aperfeiçoam, tendem a ressaltar o seu papel.
O ponto mais perigoso da agenda de desenvolvimento são as mudanças preconizadas para o mercado de trabalho. No que tange às mudanças na CLT, parece claro que o documento caminha na direção de reduzir a remuneração daqueles que percebem até três salários mínimos. Calcula-se que 50% da melhoria na distribuição de renda se devem à melhor distribuição da renda laboral. Dois elementos tiveram papel importante nessa trajetória: a regra do salário mínimo e a redução do bônus da qualificação. Cabe lembrar que o país ainda mantém um dos maiores bônus à qualificação do mundo. A liberalização do mercado de trabalho, somada à desvinculação do salário mínimo à regra existente, tende a aumentar esse bônus. Os aspectos distributivos tendem a ser danosos. Mais uma vez, trata-se de uma forte reversão de trajetória.
A Economia Política do Impedimento
Em seu “Aspectos Políticos do Pleno Emprego” [4], Michal Kalecki, um dos grandes economistas do século XX, enuncia o principal limite das políticas econômicas que visam ao pleno emprego. Segundo ele, apesar do sucesso de políticas de dinamização da economia, a oposição dos “líderes da indústria” a essas políticas emergiria por três razões: “(i) não gostam da interferência do governo no problema do emprego como tal; (ii) não gostam da direção dos gastos do governo (o investimento público e o consumo subsidiado); (iii) não gostam das mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego”. No primeiro caso, ressalta que a rejeição às políticas tem origem na possível perda de influência que esses “líderes da indústria” teriam, em razão da perda de importância relativa do investimento privado para a manutenção do nível de atividade. “A função social da doutrina das ‘finanças saudáveis’ é fazer com que o nível de emprego dependa do estado de confiança”. No segundo caso, a oposição ao consumo subsidiado adviria do fato de que “os fundamentos da ética capitalista requerem que ‘você deve ganhar o seu pão no suor’, a menos que você tenha meios privados”. O terceiro caso é, no entanto, aquele que merece maior ênfase do autor. De acordo com ele, o elevado nível de atividade resultaria em busca de ganhos salariais e maior poder de barganha dos trabalhadores, podendo implicar greves. E a disciplina das fábricas seria algo de que os patrões não estariam dispostos a abrir mão. O texto de Kalecki, escrito em 1943, prossegue afirmando que o fascismo foi uma maneira de autorizar as políticas de estímulo ao nível de atividade, mantendo a disciplina do chão da fábrica.
Essas características estavam presentes em 2013/14, quando se discutia a eleição presidencial. O nível de atividade pressionava o chão das fábricas; as políticas de transferência de renda eram condenadas por importantes segmentos empresariais e pela classe média, com base em princípios éticos parecidos com os presentes no texto de Kalecki, (lembrem-se do “dê uma vara e ensine a pescar”); e o investimento público aparentava ter pujança para retomar um papel que representou anteriormente, na década de 1970, quando a mediação autoritária permitia o convívio de alto grau de atividade e pressão sobre os salários reais, mantendo elevada desigualdade. No entanto, agora não havia o regime autoritário para manter a disciplina. Estava montado o cenário para o início de pregação da doutrina das “finanças saudáveis”. Assim, o segundo e fragilizado governo Dilma iniciou o caminho à redução do nível de atividade, mas, para esses líderes da indústria (ou capitães da indústria, conforme tradução brasileira – por que não coronéis?), não seria o suficiente.
O impedimento da presidente se dá, então, sob esse clima e com uma agenda de mudança por parte da oposição que implica assegurar que não haverá espaço para outra vez se adotarem políticas anticíclicas no país. Enfim, olhando o resumo da obra, a ponte para o futuro parece mais um túnel escuro para aqueles que um dia sonharam com uma sociedade mais igualitária e sem pobreza. Trata-se de uma ponte para o passado e um passo para o abismo. Cuidado com a ciclovia que ameaça desabar.
Notas
1 O documento original está disponível aqui.
2 Ver documento disponibilizado na página do MPOG, , que apresenta todas as despesas obrigatórias no orçamento da União.
3 Ver, por exemplo, Ban, C. Austerity versus Stimulus? Understanding Fiscal Policy Change at the International Monetary Fund Since the Great Recession. Governance, 28(4), 2014.
4 Ir ao link para uma versão em português do artigo.
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