03 Mai 2016
"Nenhuma outra ordem religiosa dedicou tanta atenção e energia em recolher e difundir os testemunhos sobre como e por que muitos jovens decidissem de improviso converter-se e mudar radicalmente o seu estilo de vida. Na base desta grande empresa existia a exigência de constituir um corpo 'da mesma cor', como havia escrito Inácio de Loyola nas Constituições, 'um grupo humano fundido perfeitamente como um só bloco estatutário e periodicamente revocado à sua primeira vocação'. À maior glória de Deus, como recitava o seu lema".
O comentário é de Massimo Bucciantini, pesquisador de história da ciência, professor da Faculdade de Letras e Filosofia II (Arezzo), colaborador do Instituto e Museu de História da Ciência de Florença, e diretor, juntamente com Michele Camerota, da revista Galilaeana – Journal of Galilean Studies, ao falar sobre o livro La Vocazione. Sorie di gesuiti tra Cinquento e Seicento, de Adriano Prosperi. O artigo foi publicado por Il Sole 24 Ore, 1-05-2016. A tradução é de Benno Dischinger.
Adriano Prosperi
La Vocazione. Sorie di gesuiti tra Cinquento e Seicento
Einaudi, Torino
2016
[A vocação. Histórias de jesuítas entre o século dezesseis e dezessete - em tradução livre]
250 Páginas
Eis o artigo.
Prosperi reconstrói a história coletiva dos jesuítas, a ordem baseada na chamada divina e na obediência para salvar a Igreja.
“Aquilo que deve estar a peito, na educação, é que nos nossos filhos jamais diminua o amor à vida. O mesmo pode tomar diversas formas, e às vezes o rapaz apático, solitário e esquivo não vive sem amor pela vida, nem é oprimido pelo medo de viver, mas está simplesmente em estado de espera, visando preparar a si mesmo à própria vocação. E o que é a vocação de um ser humano, senão a mais alta expressão do seu amor pela vida?” Não encontrei palavras melhores do que estas para iniciar. Que estão fechadas num breve escrito, publicado pela primeira vez em “Nuovi Argomenti”, em 1960.
As pequenas virtudes de Natalia Ginzburg – de quem neste ano ocorre o centenário do nascimento – são uma experiência sem tempo. Dez páginas ou pouco mais, mas que, uma vez lidas, é difícil esquecer. Onde a busca de uma vocação entendida como “paixão ardente e exclusiva”, como “verdadeira saúde e riqueza do homem”, que nada tem a ver com o sucesso e o dinheiro, se torna o melhor augúrio que um pai e uma mãe possam expressar pensando no futuro dos próprios filhos.
Uma ideia de vocação interior, inscrita num universo integralmente laico, no qual há plena liberdade de escolher, e onde o progenitor a certa altura sabe o que deve fazer: esperar, “em silêncio e um pouco à parte”, que a vocação do filho “se desperte e tome corpo”.
Também no centro do último livro de Adriano Prosperi está o tema da vocação, mas o modo pelo qual é declinado vai numa direção diametralmente oposta àquela indicada por Ginzburg. Mais que a educação à liberdade de pensar (e de errar) aqui é a educação à obediência o cerne em torno do qual gira a história inteira. “O ser jesuíta foi uma escolha de pertencimento construída e tutelada em nome de uma chamada que arrancava os filhos à família terrena e não tolerava traições”. São estes os fundamentos da nova Ordem que desde o seu nascer se tornou o mais potente e influente da Igreja católica. E Prosperi indaga a partir de um acurado exame das autobiografias que eram requeridas pelos superiores a numerosos membros da Companhia. Desde a segunda metade do século dezesseis, contar os particulares da própria vocação se tornou um dos instrumentos empregados para reforçar a memória e a história da Ordem como corpo escolhido e guiado por Deus.
Nenhuma outra ordem religiosa dedicou tanta atenção e energia em recolher e difundir os testemunhos sobre como e por que muitos jovens decidissem de improviso converter-se e mudar radicalmente o seu estilo de vida. Na base desta grande empresa existia a exigência de constituir um corpo “da mesma cor”, como havia escrito Inácio de Loyola nas Constituições, “um grupo humano fundido perfeitamente como um só bloco estatutário e periodicamente revocado à sua primeira vocação”. À maior glória de Deus, como recitava o seu lema.
Autobiografias impostas do alto, como explica Prosperi, nas quais o que contava não era repercorrer todas as vivências da própria vida, mas narrar aquele precioso e crucial instante no qual tinha sido percebido o convite do Senhor a segui-lo. Uma história coletiva, portanto, onde cada um tinha a tarefa de recordar a si e aos outros aquele ponto de fratura entre passado e futuro, entre uma vida de pecado e uma nova vida marcada pela absoluta obediência a Deus. E que se materializou com o colocar por escrito o significado da passagem a uma identidade nova.
Como, com os seus instrumentos, fez Caravaggio, quando foi solicitado a pintar a Vocação de São Mateus para a Capela Contarelli de São Luiz dos Franceses em Roma. O quadro, que é reproduzido sobre a capa do livro, configura de fato a vocação como uma lâmina de luz que reveste a pessoa “chamada” e “transforma imediatamente em apóstolo o fiscal alfandegário disposto a recolher o dinheiro”. Naturalmente aquele convite não dirigido a todos, porque nem todos tinham a força de acolhê-lo.
Era um convite especial para o atingimento da perfeição, tanto da própria alma como da Ordem à qual pertenciam, um corpo criado por intervenção divina, e portanto como tal providencial para a salvação da própria Igreja. Em suma, uma milícia combatente por Cristo que devia ramificar-se sobre a inteira face do planeta e que encontrava nos Exercícios espirituais do seu fundador não tanto um livro de devoção ou de propaganda religiosa quanto um verdadeiro e próprio manual operativo, simultaneamente físico e espiritual, como podia sê-lo um texto de estratégia militar. E não é por certo um acaso que, quando o jovem príncipe Federico Cesi decidiu criar a Academia dei Lincei, na definição de sua organização (os colégios) e dos regulamentos para os seus filiados (as constituições) se inspirasse precisamente no modelo vencedor da Companhia. Também os ‘Liceus’ foram e se perceberam como uma “milícia”, embora vocacionada ao progresso da ciência, à “aquisição das filosóficas e matemáticas ciências”. Inventar a perfeição. Como transmiti-la aos novos membros das gerações futuras. Disto se tratava. E a partir deste ponto de vista as páginas dedicadas ao jesuíta espanhol Girolamo Nadal são exemplares.
Foi ele, em 1553, junto ao coirmão Juan Alonso de Polenco, que solicitou a Inácio contar a experiência espiritual de sua vida. E foi ainda ele, nos anos de 1561-62, que correu a longo e largo pela Europa para explicar a quem queria fazer-se jesuíta quais fossem as razões profundas de semelhante escolha, fazendo pregações, expondo as Constituições, interrogando noviços e padres provinciais, distribuindo questionários a todos os membros da Companhia, reforçando neles confiança e entusiasmo. Tratou-se – escreve Prosperi – “de um vasto censo, uma prova verdadeira e capital para um organismo jovem e em rápido crescimento, exposto ao perigo da dispersão, mais ainda mais àquele das dúvidas e das crises individuais”.
Uma última anotação antes de encerrar. Provavelmente este livro não existiria se aquele que o escreveu, por sua própria admissão, não tivesse lido o ensaio de Marco Boarelli, A fábrica do passado. Autobiografias de militantes comunistas (1945-1956) (Feltrinelli), no qual são postas em evidência as estreitas semelhanças entre os métodos educativos dos Jesuítas e as escolas de formação política instituídas pelo Partido comunista na Itália dos anos Cinquenta, “entre as autobiografias orais e escritas dos militantes comunistas e as questões previstas no “Exame geral” ao qual a Companhia submetia os candidatos”. Semelhantes débitos de reconhecimento não representam uma novidade. Mas, com frequência as fontes de inspiração são recordadas de modo fugaz na página dos agradecimentos ou então acabam por ser sepultadas em alguma nota perdida para iniciados. Declará-lo nas páginas de abertura é a cifra de um estilo, de um modo de fazer história à qual somos sempre menos habituados.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A fábrica das vocações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU