19 Abril 2016
"Os comentários críticos sobre a decisão da Câmara dos Deputados, em favor do sim à instalação do processo de impeachment da presidenta, neste domingo, têm sido pautados por três conjeturas, indicativas da saúde - ou da doença - da nossa democracia, das virtudes cívicas de nossas/es parlamentares e, principalmente, do respeito devido aos direitos de quem as/os elegeu", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
A primeira é comum, tanto à posição vencedora quanto à vencida: uma e outra afirmam que a história futura do país julgará do acerto ou do erro da decisão tomada pela Câmara dos deputados. Quem votou pelo impedimento manifesta certeza da sua conveniência e oportunidade, e quem votou pela rejeição do processo garante que a nação vai se arrepender.
Seria mais conveniente se ambas antecipassem as razões condicionantes de um ou outro desses cenários ficarem melhor desenhados, levado o país, por exemplo, à justiça social ou ao risco de aprofundamento das nossas desigualdades. Se pretendem empoderar, ou não, as reformas política, tributária e agrária, entre outras de urgência inadiável; se os cuidados indispensáveis à nossa terra e ao meio-ambiente vão se libertar das amarras que lhes impõe a redução de tais bens a pura mercadoria, e à subtração de nossas riquezas pelas transnacionais; se as medidas preventivas das fraudes e da manipulação das licitações impedirão o assalto costumeiro do dinheiro público, feito por empreiteiras compradoras de políticos/as e funcionárias/os infiéis aos serviços devidos ao povo; se o tão falado quanto descumprido princípio constitucional de função social da propriedade continuará, ou não, desmentido pelo acúmulo de bens e fortunas livre de qualquer controle e assim por diante.
A começar por aí, haveria possibilidade de se saber se a história futura prevista, tanto por quem venceu, como por quem perdeu no domingo passado, pode contar com o apoio do eleitorado que optou pela composição atual da Câmara de deputadas/os, porque não há ingenuidade capaz de acobertar esses condicionantes todos terem motivado as posições conflitantes, entre o sim e o não do impeachment, muito mais do que a honestidade ou a desonestidade da presidenta. O que esteve em jogo ali, visivelmente contra ela, foi o rumo político do seu governo sobre cada um desses condicionantes.
A segunda conjetura básica sobre o acontecido no dia 17 deste abril, chega aos vícios de conteúdo e forma do encaminhamento de todo o processo, desde seu trâmite de comissão, até o acesso à votação do plenário da Câmara. O cálculo antecipado da vitória do sim aliviou seus/suas adeptos/as daquele esforço argumentativo anterior, no sentido de justificar o impeachment, mesmo não havendo nenhum crime sendo investigado contra a presidenta. Até as famosas pedaladas fiscais, denunciadas pelas/os adeptas/os do sim, como prova irrefutável de corrupção e desgraça do país inteiro, foram praticamente esquecidas.
Também tratou-se de ocultar a diferença notável entre o alegado como ilicitude praticada pela presidenta e o que já se apurou contra quem presidiu a votação de domingo. Ela é tão grande que nem se pode excluir o reconhecimento, pelo Supremo, da nulidade jurídico-legal de todo o processo. Para vergonha da nação, um processo capaz de desencadear a queda de uma presidenta eleita pelo povo, foi e está sendo presidido por uma pessoa, Eduardo Cunha, contra quem existem provas de crimes revelados até por instituições financeiras de outros países, desmentindo versões anteriores dele mesmo partidas, como se todo o seu dinheiro acumulado fora daqui tivesse origem legal.
Se o golpe atualmente em andamento se consumar, vai ser necessária muita ginástica ética para os governos democráticos de outros países vencerem o constrangimento de decidir sobre reconhecer, ou não, um novo governo do Brasil, erguido sobre um alicerce de moral e origem legal tão baixas e discutíveis.
A terceira conjetura dos comentários críticos feitos sobre o decidido pela Câmara procura avaliar como as instituições e as organizações de povo vão se posicionar e mobilizar daqui para a frente. O processo judicial movido contra a presidenta e o seu vice no Tribunal Superior Eleitoral parece não estar preocupando o segundo, considerando-se o modo como se comportou na arregimentação dos votos de parlamentares em favor do impeachment e está se posicionando na escolha de um novo ministério para um governo sob sua presidência, antecipada como certa.
Essa é uma outra circuntância sob todos os aspectos bizarra. Alguém eleito como vice-presidente da República, seu partido se afirmando aliado do governo da presidenta até o ponto em que proclama sua insatisfação com a política em execução. Seu vice passa então a conspirar contra ela, visando tomar o seu lugar, permanece institucionalmente sentado em seu posto, fora de vista mas ativo na articulação da espera que ela tombe, tudo como se toda essa atitude não ultrapassasse um milímetro da mais absoluta normalidade. Nova fonte segura do ridículo a que o Brasil esta sendo submetido dentro e fora daqui.
Com o acréscimo das infelizes intervenções de parlamentares, durante a sessão da Câmara, inspiradoras dos seus votos. A do deputado Bolsonaro, homenageando um torturador a serviço da ditadura pode-se dizer mais grosseira ainda do que a do seu colega Jean Wyllys, pois o cuspe que esse lhe desferiu não se compara com o vômito daquele deputado dejetado sobre todas as vítimas do outro golpe, o de 1964.
Se essas três conjeturas, então, forem interrogadas por aquela imensa quantidade de gente pobre e trabalhadora do Brasil, sobre o que pode ela esperar do ocorrido no domingo passado, de uma das perguntas será certa a dificuldade em darem resposta. As garantias devidas aos direitos humanos fundamentais sociais desse contingente multitudinário ganharão ou perderão com o resultado dessa votação, se ele for repetido no Senado?
Esses direitos se encontram em crise permanente de efetividade no Brasil. Existe um silêncio cúmplice do golpe diário perpetrado contra os direitos humanos fundamentais de gente pobre e miserável do nosso país, assim imposto por uma vergonhosa história passada de repressão, preconceito e desprezo por toda essa fração de povo. O Congresso Nacional, especialmente pelo poder da sua bancada ruralista, tem sido um dos principais sentinelas a serviço dessa injustiça. Um dos deputados relembrou, aliás, quando proclamou seu voto na sessão destinada a decidir a admissão de se instalar o impeachment, a triste coincidência de a Câmara se reunir num 17 de abril, a data em que, vinte anos atrás, 19 sem-terras eram assassinados em Eldorado do Carajás, por defenderem o seu direito de acesso a terra pela reforma agrária, um direito sempre dependente dessa política pública e sempre frustrado pela sua permanente prorrogação.
Por uma simples razão. Se tudo quanto está se fazendo no plano institucional posiciona-se em sentido contrário a esses direitos, o mesmo não se dá entre a maioria das organizações e movimentos populares indignada com o golpe. Embora seja cedo ainda para se medir os efeitos da frustração sofrida com o decidido pela Câmara, a resistência contra ele não baixou a guarda, a se julgar por alguns sites e notas inseridas nas redes sociais circulando hoje mesmo na internet. Na Carta Maior, um editorial assinado por Saul Leblon, sob o título de “Os antecedentes da tormenta indicam por onde recomeçar”, e o blog de Luis Nassif aberto com a expressão “Xadrez do dia do pesadelo”, por exemplo, vale serem lidos, mesmo sob o calor do improviso imediato à votação da Câmara. A coluna do filho de Rubem Paiva, no Estadão do dia seguinte ao decidido pela Câmara, uma pessoa que, até hoje, não sabe sequer onde se encontra o corpo do seu pai assassinado pelo outro golpe, também explicita o tamanho da traição sofrida pelo país nesse lamentável episódio.
De desespero, portanto, essa mobilização não sofre, mesmo porque a sua experiência histórica de reveses semelhantes, se não conseguiu ainda tirar-lhe a paciência, também não vai ser agora que vai força-la a desistir de tornar verdadeira a soberania do povo de seu país, por mais humilhada tenha sido pela decisão cameral desse fatídico 17 de abril. Pura utopia? Antes nutrida por essa do que coautora do golpe capaz de assassina-la.
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Os direitos sociais depois de 17 de abril - Instituto Humanitas Unisinos - IHU