05 Abril 2016
"Algo bem maior se rompeu em Mariana. Todas as tecnologias do mundo são bem-vindas para contar essa história", escreve Marcelo Leite, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 04-04-2016.
Eis o artigo.
Os óculos de realidade virtual com celular dentro são um fingidor. Fingem tão redondamente que o espectador chega a imaginar como dor a dor que os flagelados de Mariana deveras sentem.
Essa imitação dos versos de Fernando Pessoa vem a propósito do documentário "Rio de Lama", sobre o rompimento da barreira da Samarco que soterrou a vila de Bento Rodrigues. A obra, com menos de dez minutos de duração, estreia nesta segunda-feira (4).
O diretor Tadeu Jungle namorava a técnica de filmagem "esférica", com câmeras que captam tudo ao redor, quando ocorreu a tragédia. Intuiu que seria perfeita para captar toda a dimensão do crime ambiental e, em menos de um mês, estava no local com um cubo de máquinas GoPro.
O resultado é surpreendente, em sentido literal. Mesmo quem já viu dezenas de imagens -carro no telhado, retrato na parede enlameada, brinquedo despedaçado na lama- não deixará de encontrar uma perspectiva nova.
O aparato necessário é, de início, desconfortável. Usei os óculos -uma caixa de plástico de mais ou menos 20 cm por 10 cm, com tiras para fixá-la na cabeça- sobre os meus, de grau. Fones de ouvido completavam a tralha.
Bastam poucos segundos para se esquecer dela e dos pixels da tela do celular, perfeitamente visíveis. A ilusão de estar no rio de lama, do que sobrou, é mais forte.
SIGNOS DE DESTRUIÇÃO
De fato, não sobrou nada. Por todo lado que se vire a cabeça ou o corpo só se veem signos de destruição: barro para todo lado, seco ou gosmento, dos quais emergem fragmentos de vidas passadas.
A agitação motora do espectador, que se esforça para ver tudo ao redor, de início faz com que ignore o que está sendo dito. Sabe que são as vítimas falando de seus desgostos e perdas, mas a ânsia de captar a realidade perturbadora se sobrepõe.
Aos poucos a torrente de palavras enlutadas se impôs. Muitas foram ditas pelos ex-habitantes de Bento no próprio local em que moravam. "Aqui era a varanda..."
Um casal entoa moda de viola com voz mais pungente do que o normal. Em volta, a quantidade de lama que nada tem de normal. Mais adiante, paredes, portas, corredores e janelas da escola sem teto apertam o coração, como tudo que fica impedido de cumprir seu destino. Não há crianças correndo nem aprendendo, essa é a realidade.
Foi feliz a escolha do diretor de se concentrar nas imagens desoladas de Bento Rodrigues e depoimentos dos moradores órfãos. Não serve de nada para se informar sobre o desastre e seus culpados, mas transporta o espectador e o posiciona imediatamente do lado das vítimas.
É uma "máquina de empatia", a realidade virtual fabricada com celulares e óculos, como disse o artista inovador americano Chris Milk, citado por Jungle. É tudo verdade.
Eis aí um instrumento poderoso, que o jornalismo ainda terá de aprender como usar. Como se já não bastassem os drones, as redes sociais, as bases de dados... Haja tecnologia "disruptiva", como virou moda dizer.
Algo bem maior se rompeu em Mariana. Todas as tecnologias do mundo são bem-vindas para contar essa história.
O documentário termina com uma exortação de Jungle para que se erija no lugar da tragédia um memorial, de modo que nunca se possa esquecer o que aconteceu ali. Mas um memorial real-virtual já existe: "Rio de Lama".
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Algo bem maior se rompeu em Mariana (MG) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU