29 Março 2016
Se a teologia de Paul Tillich é uma teologia on the boundary, a teologia hispânico-americana, que em Virgilio Elizondo tem o seu iniciador e o seu representante mais conhecido, é uma teologia crossing borders, de "cruzamento das fronteiras", que se faz intérprete de uma nova realidade humana em fase de expansão.
A opinião é do teólogo e sacerdote italiano Rosino Gibellini, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e em filosofia pela Universidade Católica de Milão, em artigo publicado no sítio Settimana News, 21-03-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Como um raio se espalhou a tristíssima notícia da morte por suicídio (por um tiro na cabeça) do teólogo hispânico dos EUA, Virgilio Elizondo, na sua casa em San Antonio (Texas), no início da tarde de segunda-feira, 14 de março. Ele tinha 80 anos.
Pendia sobre ele, desde maio de 2015, uma sentença de acusação de pedofilia por um fato que remonta a 1983, apresentado em um processo por um certo John Doe (nome fictício).
A imprensa também relata testemunhos segundo os quais a acusação não teria consistência, mas o teria entristecido e abalado, a ponto de morrer "de coração partido". Espera-se a reconstrução de uma morte trágica que veio de repente e de modo inesperado, depois de uma vida intensa e ativa, e também brilhante, que já lhe havia merecido uma rua em seu nome perto da catedral de San Fernando, que o tinha levado a ser – como foi escrito – "a alma da cidade".
Eu conheci Virgilio Elizondo desde 1975, por ocasião do Encuentro Latino-Americano de Teologia, realizado na Cidade do México em agosto de 1975, sobre o tema Liberación y cautiverio [Libertação e cativeiro], e rapidamente surgiu a amizade. Amizade que foi se solidificando em diversas ocasiões e nas mais variadas cidades do mundo, em concomitância dos congressos ecumênicos da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo), aos quais eu era convidado como observador convidado, e nas assembleias gerais anuais da revista internacional de teologia Concilium, na qual Virgilio Elizondo dirigiu durante anos a seção de "Teologia prática" (com Norbert Greinacher) e, posteriormente, a seção de "Teologia da libertação" (com Leonardo Boff). Na sua qualidade de teólogo mexicano-americano, sempre serviu de ponte entre a teologia do Norte e a teologia do Sul.
Paul Tillich, o teólogo alemão-americano, sintetizava a sua experiência de vida, que, da Europa, o levara para os Estados Unidos da América, em um breve livro, On the Boundary [Na fronteira] (1966), em que ele escrevia: "A fronteira é o melhor lugar para adquirir conhecimento". A partir dessa experiência, nascia o método da correlação entre revelação cristã e cultura, que encontrou expressão e aplicação na grande Teologia sistemática.
Se a teologia de Tillich é uma teologia on the boundary, a teologia hispânico-americana, que em Virgilio Elizondo tem o seu iniciador e o seu representante mais conhecido, é uma teologia crossing borders, de "cruzamento das fronteiras", que se faz intérprete de uma nova realidade humana em fase de expansão. Devo aqui assinalar que o livro oferecido em sua honra em 2000 traz o título Beyond Borders [Além das fronteiras].
Lembro também que tinha recebido como presente, nos anos 1970, o texto datilografado da tese doutoral de Virgilio Elizondo, defendida no Instituto Católico de Paris, que tinha o título um pouco misterioso para um europeu, Mestizaje, texto que então confluiria no livro Galilean Journey (1983), reeditado e ampliado no ano 2000. Esse livro, além de descrever a viagem de Jesus da Galileia, culturalmente mestiça, para Jerusalém, a cidade da cruz e da ressurreição, indicava com a categoria de mestiçagem a promessa de que eram portadores os mexicano-americanos.
O conceito de mestiçagem, assim, tornava-se uma chave hermenêutica para reler o Evangelho, mas também para reinterpretar a dinâmica da cultura; como expressou Jacques Audinet no prefácio da obra, "Elizondo aponta para uma nova fronteira. Os seus pensamentos, naturalmente, o levam a tratar de uma mestiçagem global".
A obra de Virgilio Elizondo mais lida na Europa é L'Avenir est au Métissage (1987), que retoma com ritmo biográfico a obra maior e que serviu para fazer conhecer à teologia europeia essa nova e complexa categoria cultural e teológica.
O presidente do Senegal e escritor, Léopold Sédar Senghor, salientou a convergência do discurso teológico de Virgilio Elizondo com a visão de Teilhard de Chardin, que prospectava para o início do terceiro milênio a "civilisation de l’Universel". A edição estadunidense do livro é intitulado The Future is Mestizo: Life Where Cultures Meet [O futuro é mestiço: a vida onde as culturas se encontram] (1988).
Com a sua atividade como membro do Conselho de Administração da revista internacional de teologia Concilium, publicada em sete línguas, Elizondo contribuiu, como é a vocação da american-hispanic theology, para construir uma ponte cultural entre a teologia do Norte e a teologia do Sul . Entre os artigos escritos na Concilium, merece menção especial o texto The New Humanity of the Americas [A nova humanidade das Américas] (1990), em que se expressa da melhor forma possível espírito, mestiço e universal ao mesmo tempo, de Virgilio Elizondo, o seu sonho e a sua visão de uma nova humanidade das Américas como paradigma de uma nova humanidade do mundo.
Sobre esse pano de fundo da mestiçagem, do cruzamento de vida e cultura, coloca-se o seu belo livro sobre Maria, intitulado Guadalupe. Mãe da nova criação (1997/2000), que tinha sido antecipado por La Morenita: Evangelizer of the Americas [La Morenita: Evangelizadora das Américas] (1981), que é uma das interpretações mais profundas da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe a Juan Diego sobre o Tepeyac, em 1531, no início das Américas.
Nossa Senhora de Guadalupe não é apenas outra aparição mariana. O ícone que ela nos deixou no manto do índio Juan Diego é a sua presença viva, que expressa reconhecimento, acolhida, compaixão e proteção, e marca o início de um processo de mestiçagem, como cadinho de povos e culturas.
Como escritor de espiritualidade, pode-se lembrar de O caminho da cruz. A paixão de Cristo nas Américas; e O Deus das surpresas.
Fundador do MAAC, Mexican-American Cultural Center de San Antonio (Texas), cidade estadunidense bilíngue, Virgilio Elizondo era um sacerdote ativo na pastoral, ex-reitor por mais de uma década da antiga catedral de San Antonio; diretor artístico da televisão San Antonio, Texas, que tinha uma grande audiência nos EUA e na América Central; e, desde 2000, também professor da Notre Dame University (Indiana, EUA), onde foi aberto um centro de estudos para a cultura hispânica.
A revista Time tinha nomeado Elizondo como um dos "inovadores espirituais" do novo milênio.
Adeus, Virgilio! Repouse em paz. É um adeus, no luto e na oração, com afeto e gratidão pela profunda e generosa amizade. Vou sentir a sua falta.
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Virgilio Elizondo, teólogo da fronteira. Artigo de Rosino Gibellini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU