Por: Cesar Sanson | 22 Março 2016
"De 2014 em diante, o governo federal e boa parte da esquerda brasileira trabalharam para aniquilar a primeira vertente de junho. Primeiro, organizaram uma máquina repressiva que inviabilizou a permanência dos manifestantes nas ruas e nas redes, através do uso da força e da disseminação do medo e da vigilância. Segundo, organizou uma máquina de marketing eleitoral que dessubjetivou e chantageou a insurgência, transformando-a no bastião de uma defesa do 'menos pior', de ataque aos 'pessimildos' (a insurgência mesma!) e de uma guinada à esquerda que nunca viria a acontecer". O comentário é de Alexandre Mendes e Clarissa Naback em artigo publicado por UniNômade, 21-03-2016.
Eis o artigo.
“Um condenado põe em perigo sua vida para protestar contra punições injustas; um louco não pode mais suportar ser confinado e humilhado; uma pessoa recusa o regime que a oprime. Isso não faz do primeiro inocente, não cura o segundo e não assegura à terceira o amanhã prometido. Ademais, ninguém é obrigado a ajudá-los. Ninguém é obrigado a declarar que essas vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam a verdade. É suficiente que elas existam e que tenham contra si tudo que está determinado a silenciá-las até que haja um sentido em ouvi-las e em prestar atenção ao que querem dizer. Uma questão de ética? Talvez. Uma questão de realidade, sem dúvida.” (Michel Foucault – É inútil revoltar-se?)
1. Embora (propositalmente) esquecida, é impossível tentar compreender a atual situação de grande impasse político no Brasil sem a chave explicativa de junho de 2013.
2. Em 2013, uma grande e surpreendente coalizão formada por alianças heterogêneas e pouco prováveis identificou um mesmo alvo: o pacto constituído por uma acumulação por hibridização (ora neodesenvolvimentista, ora neoliberal) que, de um lado, produzia uma falsa sensação de progresso econômico (o Brasil que “decolava”) e, de outro, garantia a permanência de um fluxo de dinheiro responsável pelo lastro político do projeto (o financiamento eleitoral e a irrigação de praticamente todos os partidos do cenário brasileiro). Aos dois aspectos, acrescenta-se um único modus operandi: a figura do “rolo compressor”. A metáfora foi muito utilizada para ilustrar a maneira como os projetos (pré-fabricados) foram (e ainda são) implementados, “tratorando” qualquer discussão prévia, pública e democrática.
3. As jornadas de junho atingiram o alvo a partir de um duplo e ambivalente ataque:
3.1. O primeiro, através de uma expansão imediatamente produtiva (aparentemente de maior duração), gerou uma inédita e democrática mistura de enfrentamentos de rua, proliferação de assembleias, autoconstituição de redes de comunicação, manifestações nas favelas e periferias, agenciamentos entre diferentes sujeitos em luta (bombeiros, professores, usuários de transporte público, moradores ameaçados de remoção, jovens estudantes, garis) e um longo etcétera;
3.2. O segundo, através de um tom unicamente reivindicatório (e de duração aparentemente limitada), depositou suas fichas nas instituições que seriam responsáveis pela organização de punição: ministério público, juízes, legisladores e demais agentes da ordem (ex: a campanha contra a PEC 37).
4. De 2014 em diante, o governo federal e boa parte da esquerda brasileira trabalharam para aniquilar a primeira vertente de junho. Primeiro, organizaram uma máquina repressiva que inviabilizou a permanência dos manifestantes nas ruas e nas redes, através do uso da força e da disseminação do medo e da vigilância. Segundo, organizou uma máquina de marketing eleitoral que dessubjetivou e chantageou a insurgência, transformando-a no bastião de uma defesa do “menos pior”, de ataque aos “pessimildos” (a insurgência mesma!) e de uma guinada à esquerda que nunca viria a acontecer. Por adesão entusiasta, medo, inércia ou defesa de uma identidade de esquerda (comunitarismo/tradicionalismo), quase nada escapou ao buraco negro do governismo.
5. O novo governo Dilma nunca começou… Aliás, começou sim, ao perder toda a legitimidade e o apoio fabricados já no primeiro dia, quando tornou-se evidente o tamanho da mentira contada nas eleições presidenciais e sua absoluta falta de imaginação política (além de não mudar nada, o governo escondeu a profunda crise já diagnosticada, a agenda do ajuste fiscal, o aumento dos preços administrados que acelerou a inflação, deu prioridade total ao agronegócio e à privatização como “agenda positiva” e enviou para votação em regime de urgência uma legislação altamente repressiva).
6. Desponta a segunda vertente de junho, numa via de mão dupla: a operação Lava Jato não seria possível sem o consenso social anticorrupção de junho de 2013; as grandes manifestações não seriam tão bem-sucedidas sem a sequência de notícias bombásticas da operação Lava Jato. Após desaparecer durante o ciclo insurgente, o desejo destituinte da segunda vertente reaparece triunfante, apresentando-se como força social, política, judicante e punitiva.
7. A defesa governista, raspando o tacho das eleições de 2014, se organiza em duas frentes:
7.1. Primeiro, na lógica chantagista de difusão do medo, anuncia a iminência de um novo golpe ou de uma ascensão extremista e conservadora da direita, negando qualquer legitimidade à indignação crescente. Praticamente todos que se consideram de “esquerda” abraçam a hipótese. A (viva) memória da resistência à ditadura se converte em (morta) celebração do medo, da paralisia e da paranoia.
7.2. Segundo, na falta de qualquer linha política a ser defendida, o governismo ocupa o espaço vazio com uma formal defesa da democracia e da “legalidade”. Entra em cena a tradição do garantismo e do abolicionismo penal que, há décadas, serve de ferramenta de luta e de análise da seletividade e do racismo das práticas punitivas brasileiras. Incapaz, no entanto, de qualquer análise política que não caia na teologia negativa do “menos pior”, e de levar a sério a própria seletividade da máquina repressiva governista (e do autoritarismo que a mantém), ela se transforma na figura esquálida do seu próprio avesso: direito sem política; forma sem conteúdo. Um “abolicionismo de Estado” que, não sem disfarçar algum constrangimento, infla quando o alvo é o governo, e encolhe quando o alvo é a multidão.
8. Diante da contínua desfaçatez a indignação cresce, com suas ambiguidades. Na campanha do governo, uma aparente inteligência crítica acaba se revelando como autoritária estupidez (a miséria, portanto, é certa). E nas atuais manifestações não governistas? É possível que uma aparente estupidez (como quer o consenso na esquerda) se revele como portadora de uma materialidade crítica?
8.1. Talvez não… A segunda vertente de junho, e falamos com aqueles de boa-fé, quer enfrentar a corrupção com a transferência completa de sua potência para as autoridades judiciais, acusatórias e policiais. A figura do juiz-herói é tão somente o reconhecimento da corrupção total de nossa capacidade de agir politicamente, de tomarmos as rédeas da situação. Por mais que todo o sistema político tenha trabalhado para a despossessão dessa capacidade (sendo corresponsável pela desesperada busca por uma redenção que caia dos céus), precisamos evitar as armadilhas e recusar qualquer saída deste tipo. Que o culto ao deus-juiz seja substituído pelo lento cultivo da terra; que a corrupção endêmica seja combatida com a distribuição democrática de poderes, formas de controle social e de ampliação de espaços de decisão, inclusive no sistema de justiça.
Ora, se “cadeia” resolvesse, estaríamos no melhor país do mundo. Uma saída verdadeiramente abolicionista (ao invés de se entregar à defesa disfarçada de governo autoritário) seria pensar a substituição da medida penal por distribuição de responsabilidades políticas, administrativas e financeiras aos envolvidos (empresários e políticos) e, ao mesmo tempo, defender os direitos fundamentais na sua materialidade (o direito ao questionamento) como condição para a abertura de novos espaços políticos.
8.2. Talvez sim… Apesar da participação de setores extremistas e antidemocráticos, e de episódios lamentáveis, as manifestações, desde o ano passado, continuam apresentando deslizes curiosos: uma recusa e até um desconhecimento sobre os grupos organizadores (aqueles que fazem chamadas terríveis); uma recusa da falsa polarização e do oportunismo político de candidatos que querem “surfar” no movimento (as vaias contra Aécio e Alckmin); uma defesa moderada de direitos individuais de cunho progressista e, principalmente, uma conexão real com a crescente e justa indignação da população brasileira (que tende a se aprofundar)
Explicando a epígrafe: A imagem de um manifestante (coxinha?) suportando um canhão d’água no rosto e resistindo ao avanço da tropa de choque paulista nos coloca uma questão: será que ele não tem algo a nos dizer? Não há um sentido em ouvi-lo? Não há vozes que precisam ser escutadas?
9. O governo tentou dar o troco mobilizando, mais uma vez, uma manifestação que só consegue atrair pessoas se não colocar em pauta o que foi o próprio governo nos últimos anos (apela-se de forma abstrata para a “democracia”, esquecendo-se também o papel autoritário do governismo na eliminação de qualquer alternativa democrática – sendo ele, portanto, corresponsável pela ascensão de todo o tipo de salvacionismo e extremismo). Essas manifestações não apenas são menos impactantes, como se sustentam apenas pela mobilização do medo e da insegurança.
10. Que tipo de democracia poderíamos construir a partir da vitória do medo sobre esperança?
11. Por outro lado, as análises que, por fora da idolatria governista, reduzem as atuais manifestações à polaridade fabricada (“nem isso, nem aquilo, nem 13, nem 18”), cometem o seguinte equívoco: enquanto a polarização foi forjada pelo próprio sistema político (e, por isso, o antes quase falido PSDB aceita e agradece com prazer o reciclado papel de opositor), as manifestações não governistas parecem querer prolongar e sustentar o profundo impasse que atinge a política brasileira, rejeitando, por sua cumplicidade, as fórmulas concebidas desde a redemocratização. A grande dúvida é como o impasse será resolvido. Com o terreno em aberto seria impossível prever, mas deixamos apenas três impressões:
11.1. Risco Bolsonaro. Ao contrário do que parece, a “solução” Bolsonaro não é alimentada por uma “onda conservadora” que emergiu para polarizar com a esquerda. Ela é resultado da própria vontade de implodir o falso sistema de polarização construído com participação da própria esquerda (o mesmo poderia se dizer de Moro). Há um forte desejo de sabotagem que encontra em Bolsonaro uma arma para implodir o sistema e todos aqueles são vistos como responsáveis por ele. Esse agenciamento do desejo não vai ser combatido com impotentes e abstratos cânticos de direitos humanos, ou pela afirmação ad hoc de uma superioridade moral. Precisamos criar saídas materiais para que a “sabotagem” represente um aprofundamento da democracia. A “solução” Bolsonaro precisa parecer menos atraente e menos desejante que outras soluções criadas politicamente.
11.2. Risco Berlusconi. As análises que comparam as possíveis consequências políticas da operação Lava Jato com a situação italiana depois da operação Mãos Limpas, geralmente esquecem duas coisas: primeiro, que a operação judicial ocorreu na Itália depois que a esquerda institucionalizada, através do chamado “compromisso histórico”, resolveu aniquilar todo o tipo de crítica insurgente e autônoma realizada pela geração de 1968 (semelhanças com o PT pós 2013?); segundo, que ao tentar manter o governo Dilma intacto e garantir sua continuidade, a esquerda quer nos fazer esquecer de todas as relações mafiosas (e, portanto, a corrupção da democracia) estabelecidas com empreiteiras, bancos, empresas e gestores de fundos públicos nos últimos anos. Paradoxalmente, a esquerda quer que Lula se transforme no novo Berlusconi. Quer garantir que ele faça um acordão geral pós Lava Jato, para que o modelo de acumulação por hibridização se mantenha, com suas negociatas autoritárias, como se nada tivesse acontecido (exatamente o que fez Berlusconi).
12. Como fugir de ambos os riscos? O problema é que sem um poder constituinte que possa criar um amplo e democrático repertório de alternativas a situação fica cada vez mais difícil. A chantagem e a repressão nos levou para a falta de alternativas. A falta de alternativas nos leva para mais chantagem e extremismo salvacionista. Como romper com o círculo vicioso?
Pode ser interessante pensar em duas frentes possíveis:
12.1. Novas eleições já! Do ponto de vista institucional, diante das consequências do estelionato eleitoral e da crise de legitimidade crescente, devemos insistir na convocação de novas eleições como forma de provocar uma mínima discussão política envolvendo a sociedade. Não vamos entrar nos detalhes de sua viabilidade (por dupla renúncia, cassação após apuração de responsabilidades ou tentativa de estabelecer uma PEC do recall com validade imediata). Como afirmação política, nos cabe defender que um novo momento eleitoral pode servir, tanto para aumentar a participação social nos rumos da crise palaciana, como evitar um possível “acordão” posterior ao impeachment.
12.2. Do ponto de vista instituinte, o desbloqueio da crise institucional deveria servir não para uma reativação do poder de aplicar a mesma receita, a mesma agenda (Brasil), mas abrir um processo de discussão e construção de novas agendas possíveis. Lutar contra a corrupção é lutar contra aquilo que nos impede de utilizar, de forma autônoma, ferramentas construídas em uma ampla cartografia de lutas: Tipnis (Bolívia), Vila Autódromo, Guarani-Kaiowá, Belo Monte, escolas ocupadas, Amarildo, Aldeia Maracanã, Jirau, UERJ etc. Se houver refundação da república, que seja a partir das experimentações produzidas desde baixo, aquelas que souberam criar um partido de trabalhadores, e que sabem a hora de enterrá-lo.
13. O enigma de junho continua ressoando: “decifra-me ou te devoro”.
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Vertigens de junho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU