Por: Cesar Sanson | 23 Fevereiro 2016
"É compreensível que as empresas queiram garantir que o novo marco legal crie um ambiente positivo para seus negócios, mas isso certamente não acontecerá sem que os direitos mais fundamentais dos detentores de conhecimento tradicional sejam garantidos". O comentário é Nurit Bensusan, especialista em Biodiversidade e coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA em artigo publicado por Instituto Socioambiental - ISA, 22-02-2016.
Eis o artigo.
Dizem que quando se tem em mãos um limão, metáfora para algo azedo e difícil de engolir, o melhor a fazer é transformá-lo numa limonada, uma bebida agradável e, portanto, mais fácil de engolir.
Talvez essa seja a intenção da Casa Civil, quando colocou em discussão uma minuta de decreto sobre a Lei 13.123/2015. Essa é a lei que trata do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional (saiba mais no quadro abaixo). A lei reflete sua elaboração e tramitação: um processo desequilibrado, onde o setor privado, usuário do patrimônio genético e do conhecimento tradicional, teve grande parte de seus interesses contemplados, enquanto os detentores de conhecimentos tradicionais tiveram seus direitos desrespeitados e afrontados.
A lei remeteu um significativo conjunto de temas para a regulamentação, ou seja, para que ela fique de pé, apesar de já estar em vigor, há necessidade de um decreto que regulamente muitos de seus dispositivos. Após sucessivos adiamentos, na véspera do Natal, o governo, por meio da Casa Civil, apresentou uma minuta de decreto para discussão. A informação que circula é de que a minuta deverá entrar em consulta pública em março e assim deverá permanecer por cerca de um mês. Depois disso, o governo irá recolher as contribuições e fechar o texto final. Ainda não se sabe quando o decreto será publicado exatamente.
Em que pese os inúmeros problemas que o texto apresenta, é nítido o esforço que foi realizado no sentido de dar mais atenção aos clamores dos detentores de conhecimento tradicional – naturalmente muito insatisfeitos com a lei – e de tentar garantir alguns de seus direitos (para ajudar na análise da minuta de decreto, o ISA preparou um guia da minuta).
Os debates acerca da minuta, porém, dão conta que fazer da lei uma “leimonada”, isto é, transformá-la em algo mais palatável para os detentores de conhecimento tradicional e para aqueles preocupados em assegurar seus direitos, será uma tarefa difícil, quiçá impossível. A Lei 13.123/2015 causou estragos que não podem ser revertidos com sua regulamentação. Por exemplo, ao separar o patrimônio genético do conhecimento tradicional, criando a possibilidade de sistemas distintos de acesso, a Lei estabeleceu uma forma de usar o patrimônio genético brasileiro, muitas vezes resultado das atividades das comunidades humanas que aqui viviam e vivem, sem nenhuma consulta, sem nenhuma autorização, de forma automática.
São limitados os avanços que a minuta traz no sentido de dar mais garantias aos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais de que seu conhecimento será acessado de forma apropriada e com a concordância deles. Ainda assim, o texto tem sido alvo de críticas do setor privado, que parece entender qualquer tentativa de verificação, fiscalização e controle por parte do governo como um obstáculo inaceitável às suas atividades.
É compreensível que as empresas queiram garantir que o novo marco legal crie um ambiente positivo para seus negócios, mas isso certamente não acontecerá sem que os direitos mais fundamentais dos detentores de conhecimento tradicional sejam garantidos. A almejada segurança jurídica, que contribuiria, segundo o setor privado, para fomentar o uso e a geração de inovação a partir de nossa biodiversidade, não virá sem o reconhecimento do papel dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores e do conhecimento tradicional nos processos que geram e mantêm a biodiversidade e consequentemente o patrimônio genético.
Limão ou limonada? Façam suas apostas...
O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais.
Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
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É possível fazer da lei de patrimônio genético uma ‘leimonada’? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU