22 Fevereiro 2016
No voo de retorno do México, no diálogo com os jornalistas, Francisco, respondendo a uma pergunta sobre o vírus Zika e sobre as ações que se querem ativar para freá-lo, falou de aberto e contracepção O Papa distinguiu o aborto, que “não é um mal menor”, mas “um crime”, do evitar a gravidez, que “não é um mal absoluto”. E citou o caso da admissibilidade da pílula anticoncepcional estabelecida nos anos Sessenta para as irmãs em risco de violência
A reportagem de Andrea Tornielli, publicado por Vatican Insider, 21-02-2016. A tradução é de Benno Dischinger.
A querela da Humanae vitae
Como é sabido, aos 25 de julho de 1968, em pleno verão, no ano que marcará a história do século vinte e será recordado para o início da contestação estudantil, o Papa Montini tornava conhecida a “Humanae vitae” a encíclica com a qual reafirmava a doutrina tradicional da Igreja sobre o controle dos nascimentos, declarando ilícito o uso dos meios anticoncepcionais.
Será sua última encíclica. Nos dez anos subsequentes de pontificado não publicará mais, após a ondada de críticas, contestações e ataques pessoais aos quais foi submetido também em muitíssimos ambientes católicos. O problema da planificação demográfica e da eventual abertura para a utilização dos contraceptivos da parte dos esposos cristãos já tinha levando João XXIII a instituir, em março de 1963, uma comissão de estudo.
La "pílula congolesa"
A questão já tinha sido debatida pelos teólogos em 1961, quando explodiu o caso da assim dita “pílula congolesa”. No decurso das desordens e das violências da guerra no ex Congo belga, muitas religiosas católicas tinham sido violentadas. Naqueles casos de estupro era lícito ou não o uso da pílula anticoncepcional? O tema foi enfrentado por “Estudos Católicos”, a revista próxima ao Opus Dei, que confiou a resposta a três estudiosos de teologia moral: monsenhor Pietro Palazzini, então secretário da Sagrada Congregação do Concílio e futuro cardeal; Francisco Hürt, professor de Moral na Gregoriana e Ferdinando Lambruschini, docente da mesma disciplina na Lateranense.
Todos os três religiosos justificaram a utilização da pílula contraceptiva no caso das Irmãs que haviam sofrido violência. Aquela discussão, ligada a um episódio específico, marcou de certo modo um divisor de águas: os moralistas de fato tinham recorrido a princípios e distinções (o princípio de totalidade, para o qual uma mutilação é lícita para o bem total da pessoa, ou o princípio do conflito entre dois males) que depois se teriam tornado argumentos para os defensores do abandono da tradicional posição católica. Os argumentos usados para o caso-limite foram imediatamente estendidos a outras situações e, de caso em caso, se começou a por em discussão o princípio da intrínseca negatividade da prática anticoncepcional.
O efeito dominó
O debate é muito bem narrado por dom Ambrogio Valsechi, teólogo moralista que foi afastado de sua cátedra no seminário de Venegono, no livro “Regolazione delle nascite” [Regulação dos nascimentos] (Queriniana, 1967): os argumentos usados para a pílula congolesa “abriam também a estrada ao emprego de pílulas para regula a fecundidade. Pode-se perguntar: por que o que era lícito para uma Irmã do Congo em vista do seu bem pessoal-espiritual, não podia ser permitido também à mulher desposada, quando a inibição ovulatória mirava um bem igualmente grande (regulação dos nascimentos) sem as graves dificuldades e riscos de uma completa abstinência? E não era possível que se restringisse também na família o direito-dever de procriar e, por isso, também neste caso a “esterilização” tivesse significado simplesmente biológico?”.
Dois anos após o debate sobre a pílula congolesa por primeira vez um católico, o ginecologista inglês John Rock, negava num livro seu o caráter da ilícita esterilização ao emprego da pílula para o controle dos nascimentos. “Começou tudo dali, foi o caso congolês que abriu a questão – recordará Guido Gatti, docente de Moral no Pontifício Ateneu Salesiano – Começou-se a falar de legítima defesa, depois outros ampliaram a novos casos, sempre mais distantes, até que se chegou àquela que foi chamada a pílula católica. Depois se acenou ao Concílio e, enfim, se chegou ao pronunciamento do Papa”.
A “Humanae vitae” não se pronuncia sobre os casos-limite.
O Magistério da Igreja não se pronunciará sobre o caso específico da violência e do estupro. “A Humanae vitae não entrou no mérito destes casos – explicou Palazzini – A encíclica proibia o uso da pílula, mas no caso que temos enfrentado se tratava de pessoas que eram constrangidas contra a própria vontade a uniões sexuais. A diferença com respeito aos casos aos quais a encíclica se referia é evidente”. Palazzini desmentirá também a quantos afirmam que aquele parecer de 1961 sobre a “pílula congolesa” tenha lesado a posição tradicional da Igreja sobre os anticoncepcionais.
“Contrariamente a quanto pensam muitos, a pílula não é condenada pela Igreja em absoluto. Ela o é somente em relação à intenção com que é assumida. No caso por nós considerado, a intenção é a “legítima defesa”, e não vejo como não deva ser considerado lícito o recurso à pílula da parte da mulher em perigo iminente de ser agredida... A Humanae vitae, ao invés, se refere à intenção de ter relações sexuais artificialmente fechadas à hipótese da procriação em âmbito conjugal. É bem outra coisa...”.
Zika e o precedente da AIDS
Algumas das motivações postas em campo pelos teólogos moralistas no caso da “pílula congolesa” podem ser aplicadas ao caso do vírus Zika e da concreta ameaça de graves malformações para o bebê? O Papa, citando o exemplo africano, após ter rebatido que aborto e contracepção não podem ser postos no mesmo plano, deixou entender que sim. Em novembro passado, no voo de retorno da África Central, tinha sido perguntado a Francisco se ante a difusão epidêmica da AIDS não seria o caso para a Igreja mudar de posição sobre o não ao preservativo.
O Papa tinha definido a pergunta como “parcial”, comparando-a àquelas que eram postas por Jesus aos doutores da lei: “É lícito ou não curar num sábado?” Francisco havia recordado que sim, o condon “é um dos métodos” para limitar a difusão da infecção e que “a moral” da Igreja se encontra sobre este ponto ante uma perplexidade”, devendo ter presente tanto a necessidade de preservar a vida das pessoas evitando que sejam infectadas, como de defender o exercício de uma sexualidade aberta à transmissão da vida.
“Mas, este não é o problema – acrescentou o Papa – o problema é maior”. ‘É obrigatório curar”, explicou, tornando própria a resposta de Jesus que curou o doente de hidropisia não obstante fosse sábado, convidando porém a olhar aos grandes problemas da África: “A desnutrição, a exploração, o trabalho em escravidão, a falta de água potável, estes são os problemas. Não falamos se se pode usar tal emplastro para tal feria. A grande injustiça é uma injustiça social, a grande injustiça é a desnutrição. Não me agrada descer a reflexões casuísticas quando o povo morre pela falta de água e pela fome”.
A resposta de Bento XVI
As aberturas à utilização do profilático, em particular para categorias em risco ou nas relações de casal em caso de um cônjuge soropositivo, não são novas na Igreja: neste sentido tinham se expressado, nas últimas décadas, os cardeais Carlo Maria Martini, Dionigi Tettamanzi, Javier Lozano Barragán, Georges Cottier. A dizer o mesmo, provocando reações variadas e também alguma dor de barriga, em 2010 tinha sido também Bento XVI, no livro-entrevista com Peter Seewald “Luz do mundo”.
“Concentrando-nos somente no profilático – havia respondido o Papa Ratzinger – quer dizer banalizar a sexualidade, e esta banalização representa precisamente a perigosa razão pela qual tantas e tantas pessoas não vêm mais na sexualidade a expressão do seu amor, mas somente uma espécie de droga, que se subministram por si.”
O Papa, porém, acrescentava: “Podem existir casos singulares justificados, por exemplo quando” quem se prostitui “utiliza um profilático, e isto pode ser o primeiro passo para uma moralização, um primeiro ato de responsabilidade para desenvolver de novo a consciência do fato de que nem tudo é permitido e que não se pode fazer tudo o que se quer”. Neste caso se estava falando da responsabilidade de não infectar e, portanto, de não por em risco a vida do outro. No caso do vírus Zika se trata de evitar a concepção de bebês com gravíssimas malformações cerebrais.
Aquelas palavras sobre a "Humanae vitae"
De resto, Bento XVI, precisamente no livro-entrevista “Luz do mundo” havia falado em termos muito realistas da contracepção, confirmando-se uma vez mais como teólogo e pastor fora dos clichês nos quais tantos “ratzingerianos” procuraram e procuram enquadrá-lo. “As perspectivas da “Humanae vitae” continuam válidas, mas outra coisa é encontrar caminhos humanamente percorríveis.
Creio que sempre haverá minorias intimamente persuadidas da justeza daquelas perspectivas e que, vivendo-as, ficarão plenamente apagadas, assim, de se tornar para outros um fascinante modelo a seguir. Somos pecadores. Mas não deveremos assumir este fato como instância contra a verdade, quando não é vivenciada aquela alta moral. Deveremos procurar fazer todo o bem possível, e apoiar-nos e suportar-nos mutuamente”.
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O vírus Zika e a “pílula congolesa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU