31 Janeiro 2016
A referência a "valores", desde sempre imutáveis no tempo e no espaço, como se fossem todos diretamente descendentes da Natureza e/ou de Deus, é algo totalmente problemático (para dizer o mínimo) quando comparada com a pregação evangélica.
Publicamos aqui a declaração do movimento Nós Somos Igreja Itália, divulgada em seu sítio, 27-01-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O quadro geral diante de nós
O estupor midiático dos últimos dias sobre o projeto de lei Cirinnà sobre as uniões civis está em flagrante contradição com uma temática que exigiria uma reflexão pacata, mesmo que, há muito tempo, se espera uma adequada normativa da matéria. Os temas são sensíveis e indubitavelmente delicados para serem enfrentados se partimos de sensibilidades diferentes e, especialmente, de uma concepção diferente da laicidade do Estado.
Está envolvido tudo aquilo que, ao mesmo tempo, está profundamente enraizado na sensibilidade coletiva que vem do passado, mas que também está fortemente envolvido nas muitas coisas novas que crescem na nossa sociedade também sobre essas questões.
As mudanças impetuosas são dadas pelas novas tecnologias da comunicação (web e afins), pela biologia, pela medicina, além de uma globalização de temas que, depois, calam em realidades cultural e socialmente diferentes.
A realidade mudou dramaticamente também no universo das relações. Por exemplo, a experiência das pessoas homossexuais nas suas relações de casal parecem ser agora, cada vez mais, ao contrário do que acontecia no passado, como que fundamentada em valores profundos.
Como cristãos, sabemos a partir do Evangelho que Jesus contrastou a cultura patriarcal então em vigor, não propôs modelos, exerceu no mais alto grau a misericórdia e manifestou a sua predileção pela inocência da infância. Também podemos dizer que Jesus muitas vezes "ia além", colocando como pedra angular do seu testemunho a sua humanidade e a fé no Pai, não as doutrinas, não a moral ou outras coisas.
Por isso, a referência a "valores", desde sempre imutáveis no tempo e no espaço, como se fossem todos diretamente descendentes da Natureza e/ou de Deus, é algo totalmente problemático (para dizer o mínimo) quando comparada com a pregação evangélica.
A base fundamentalista se mobiliza
Dada essa reflexão geral, o Nós Somos Igreja exprime os seus pontos de vista sobre as questões que são discutidas nestes dias. O cenário relembra o de nove anos atrás, com o choque sobre os DICO [no italiano, sigla para o projeto de lei intitulado "Direitos e deveres das pessoas estavelmente conviventes"] propostos pelo "católico adulto" Romano Prodi e com a manifestação do dia 12 de maio de 2007, gerida pessoalmente pelo cardeal Ruini.
Agora, a base fundamentalista do mundo católico, que se mobiliza contra o fantasma do gênero e contra a lei contra a homofobia, tenta repetir neste sábado, 30, uma manifestação em massa semelhante à do dia 20 de junho contra toda a lei Cirinnà.
Na cúpula da Conferência Episcopal Italiana (CEI), levantaram-se duas posições, a do flexível Galantino, substancialmente compartilhada no Vaticano, e a mais rígida de Bagnasco, que, no entanto, no discurso de abertura na segunda-feira ao Conselho Episcopal Permanente, não se referiu explicitamente à mobilização do sábado, nem sequer citou a lei em discussão, limitando-se a repetir as posições tradicionais sobre a família.
Nesse contexto, é importante entender qual é a mensagem do Papa Francisco para a Igreja italiana, que serve de pano de fundo para as questões em discussão.
O papa também – todos bem o sabemos – coloca uma significativa atenção na prática cristã da misericórdia, na atenção para as novas pobrezas e nos verdadeiros grandes problemas do mundo (guerras, ambiente, refugiados...).
O discurso de Francisco ao encontro da Igreja italiana de Florença, em novembro, parece-nos ter sido pouco escutado. O papa continuamente tinha falado de diálogo, de busca do bem comum para todos, porque é justamente o debate e a crítica que ajudam a preservar a teologia de se transformar em ideologia.
Ele havia dito: "Diante dos males e dos problemas da Igreja, é inútil buscar soluções em conservadorismos e fundamentalismos, na restauração de condutas e de formas superadas que nem sequer culturalmente têm a capacidade de ser significativas. A doutrina cristã não é um sistema fechado incapaz de gerar perguntas, dúvidas, interrogações, mas está viva se sabe inquietar, se sabe animar".
Toda a mensagem do papa, que também repetiu a linha da Igreja sobre a família, vai na direção contrária à das "campanhas", ao de uma Igreja que se entrincheira nos seus recintos, às manifestações de rua.
Em vez disso, ao se observar o que está acontecendo nestes dias, temos a impressão de que, mais uma vez, o problema da relação com as instituições de uma parte consistente do mundo católico é enfrentado do modo mais antigo possível.
Sobre as uniões de fato e sobre as uniões civis
As uniões de fato já são uma prática difundida, especialmente nas gerações mais jovens, até mesmo entre casais de fiéis. O que foi pregado por muitos anos como um dos pecados mais graves, já é um fato bastante aceito (ou ao menos não demonizado) até mesmo no tecido difuso do mundo católico.
A plenitude formal, mas especialmente sacramental para nós, cristãos, da relação de casal deve ser sempre considerada como a referência à qual se deve tender. Mas não vemos precisamente nenhuma recaída negativa sobre a coletividade ao se aceitar – além disso, com um grave atraso – a positiva normativa contida para os casais heterossexuais no Título II do projeto de lei agora em discussão, que regulamenta a disciplina da convivência. Ao contrário, há o benefício de dar mais estabilidade e reconhecimento certo aos direitos para aqueles que não querem, pelos motivos mais diversos e, talvez, em uma primeira fase, ter acesso ao casamento.
A primeira parte do projeto de lei se ocupa, em vez disso, dos casais homossexuais, prevendo uma instituição específica, a das uniões civis. Ela foi separada do que é previsto para as uniões de fato e foi definida como "formação social específica", com referência ao artigo 2 da Constituição italiana e à sentença 38 de 2010 da Corte Constitucional, que, ao declarar inconstitucional o casamento entre homossexuais, solicitava, porém, uma intervenção legislativa ad hoc para os casais homossexuais.
Nesse projeto de lei, encontramo-nos diante de casos bem diferentes entre si, as uniões de fato das uniões civis, e estas últimas do casamento. Chegou-se a essa conclusão depois de uma interminável discussão; de fato, havia o problema de indicar que as uniões civis não deveriam ser ou parecer uma espécie de casamento.
Os dez artigos sobre as uniões civis se referem ao Código Civil na normativa sobre o matrimônio apenas com relação às relações patrimoniais e sucessores. Agora, defende-se que essas normas de referência não seriam boas. A referência evocaria o fantasma do "quase-matrimônio".
Não se entende, senão como expressão de uma contraposição identitária e da vontade de boicotar toda a lei, a animosidade com que os católicos, internos e externos ao Parlamento, defendem obstinadamente que nos encontraríamos ainda, com base nessa referência, diante de uma espécie de verdadeiro casamento em contradição com o artigo 29 da Constituição. Isso ofenderia – defende-se – os próprios fundamentos do viver civil. Um simples exercício de pacata honestidade intelectual não faria mal.
Adoção
Discute-se acaloradamente sobretudo em relação à chamada stepchild adoption (um inútil anglicismo) prevista pelo artigo 5 do projeto de lei. Ela prevê a adoção por parte de um dos dois membros do casal do filho biologicamente filho do outro. As questões são indubitavelmente de grande complexidade. Corre-se o risco de intervir de modo grosseiro se perdermos de vista o tema do absoluto primado do interesse da criança, que é proclamada por todos, mas depois, muitas vezes, contradita na prática e nas culturas difusas.
As estatísticas mais atualizadas dizem que, na Itália, "são mais de um milhão as crianças que vivem em condições de pobreza extrema, enquanto 34% estão em risco de pobreza e exclusão social". Parece que os menores sem família são 34.000 e, deles, 19.000 internados em instituições. Além disso, muitíssimos menores sozinhos que desembarcaram nas costas italianas constituem tanto um problema objetivo, quanto uma oportunidade de intervenção humanitária que pode ter, na sensibilidade genitorial, uma ocasião para se manifestar.
O tema do desejo de maternidade é delicado e não pode ser enfrentado sem um oportuno aprofundamento ou com posições pré-constituídas. Parece-nos óbvio que, com a criança, não deve haver uma relação de "posse", mas uma relação afetiva que envolve deveres de paciente educação e compreensão, e aqueles que quisessem se colocar fora dessa ótica certamente não podem ter a nossa compreensão.
Dito isso, diante do problema social da infância e do atual sistema de adoções que, por opinião comum, funciona de modo discutível em muitos aspectos, tentamos expor algumas hipóteses, talvez úteis na discussão em curso.
Parece-nos que os atuais instrumentos de intervenção deveriam superar a rigidez normativa e preconceitos culturais, e ter como objetivo, não declamado, mas praticado, a chamado genitorialidade difusa.
Hipotetizemos: um alargamento da área dos sujeitos que podem ser declarados adotantes ou guardiães até incluir os solteiros e os casais homossexuais; prever e favorecer diversas formas de ajuda e de relação com as crianças necessitadas não estreitamente ligadas aos institutos jurídicos agora existentes; uma gestão desses institutos diferente da atual em termos de simplificação, rapidez e qualidade do controle caso a caso.
Uma perspectiva desse tipo, de grande alcance, poderia ir ao encontro, se for apoiada por recursos, por serviços e por operadores à altura da situação, por um lado, da necessidade das crianças abandonadas ou negligenciadas e, por outro, da disponibilidade de acolhida de tantos casais. Não é um objetivo fácil de se conseguir, mas possível, sim.
A stepchild adoption
É a questão no centro de todos os conflitos e das tentativas de mediação destes dias. Trata-se da adoção (ou da guarda) de crianças já nascidas e filhas biologicamente de um dos membros do casal ligado por uma união civil, talvez em consequência de uma relação de tipo heterossexual anterior, como acontece.
Obviamente, é necessário que haja, no caso específico, os requisitos de confiabilidade, estabilidade etc... requeridos e rigidamente avaliados pela lei ordinária para o processo de adoção. Nós pensamos que tal instrumento normativo permite sanar muitas situações de precariedade e de dificuldade, e vai na direção da tutela dos menores e da sua justa colocação dentro também das famílias homogenitoriais.
Todas as análises sociológicas dizem que a educação das crianças nesse tipo de casal não sofre de modo algum por causa dessa condição particular.
Por uma Igreja em saída
Tentamos nos ocupar das uniões civis e dos problemas conexos não nos limitando ao curto-circuito midiático e aos conflitos parlamentares destes dias. O nosso ponto de vista se enquadra em uma ótica de tutela da laicidade das instituições e contrasta a linha perdedora das campanhas identitárias em curso (a organizada para o sábado, 30, em particular). Por outro lado, tenta ver a complexidade dos problemas novos como eles se apresentam na realidade de hoje (quer ela nos agrade, quer ela não nos agrade) e a importância dos sujeitos envolvidos (o casal, hetero ou homo, os homossexuais, a mulher, as crianças...) e das relações que se estabelecem.
Não pensamos ter esgotado a busca, mas pensamos estar na linha da Igreja na saída, como o Papa Francisco nos convida a fazer. Justamente a partir dessa inspiração, dizemos claramente que somos favoráveis à aprovação da lei no seu texto atual e contrastamos as simplificações de muitos meios de comunicação que dizem que os católicos estão, por antonomásia, todos de um lado só.
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Uniões de fato, uniões civis, adoção e laicidade das instituições: uma reflexão pacata - Instituto Humanitas Unisinos - IHU