12 Janeiro 2016
Quando “vivemos um tempo com forte pulsão anti-democrática” e num “sistema de democracia de baixa intensidade”, Boaventura de Sousa Santos propõe que os portugueses debatam de forma a “fazer pressão sobre os partidos políticos, os movimentos sociais, os governos e a administração pública e da justiça”, com o objectivo de garantir “o máximo possível de liberdade negativa e positiva e as condições de igualdade que pressupõem”. A entrevista foi realizada por e-mail.
A entrevista foi publicada por Público, 10-01-2016.
Qual o papel dos cidadãos e dos seus movimentos na procura de uma boa governança?
A boa governança, no sentido utópico, está nos antípodas da concepção dominante de boa governança, a qual, no meu entender, tem um carácter distópico (aquilo que uma sociedade não deve desejar). Na tradição do pensamento liberal, governança era sinônimo de governo e este, enquanto gestão do bem comum, estava centrado no Estado. Obviamente, reconheciam-se muitas outras fontes e formas de governo parcial ou setorial na sociedade, da família ao mercado, da sociedade civil à esfera pública. A partir dos anos noventa do século passado, com a emergência e consolidação do pensamento neoliberal, passou a entender-se que a gestão do bem comum não competia apenas ao Estado, mas ao conjunto da sociedade, a qual devia organizar-se para esse efeito. Governança emergiu então como um conceito mais abrangente que o de governo. O conceito de boa governança sintetiza a ideologia do neoliberalismo: uma hostilidade geral à presença do Estado na regulação social e a sua substituição por mecanismos não estatais, nomeadamente o mercado; e a preferência pela regulação social nacional e internacional por via de mecanismos não coercitivos, voluntariamente assumidos (códigos de conduta, boas práticas, soft law). Esta ideia surgiu em parte para que os países doadores e as agências financeiras internacionais (Banco Mundial e FMI) pudessem ser mais normativos e impor aos países necessitados de ajuda internacional as chamadas condicionalidades, as políticas de ajustamento estrutural, de que Portugal, sob a troika, foi uma das mais recentes vítimas.
Como acontece em geral com os conceitos que circulam nas relações internacionais, a boa governança é uma ideia ambígua. Está repleta de normativas com as quais não podemos deixar de estar de acordo: transparência, prestação de contas, democracia, primado do direito e sistema de justiça independente e eficiente, liberdade de informação e de expressão. O problema reside em que estas normativas são concebidas como parte de um modelo político muito mais amplo que é imposto independente do que as populações dos países visados decidam por via democrática. Essas medidas incluem a privatização de serviços públicos essenciais (educação, saúde, segurança social, transporte público, água), a redução da despesa pública, sobretudo no domínio das políticas sociais, o financiamento de Estado por via de empréstimos e não de impostos progressivos. Trata-se da imposição do modelo de democracia liberal, contra o modelo de social-democracia que dominou na Europa desde 1945. E tudo isto é imposto por instituições, como o Banco Mundial e o FMI, em cujos estatutos se estabelece que são organizações apolíticas.
A verdadeira utopia do nosso tempo consiste em pensar e pôr em prática outras formas de governação da vida pública e privada que não se centrem na contraposição entre Estado e sociedade e antes na contraposição entre interesses, nos conflitos que eles geram e no modo de os resolver. E para salientar que a concepção que proponho não tem nada a ver com a que domina hoje em dia, falarei de boa governação em vez de boa governança. Respondo ao responder às perguntas seguintes.
A boa governança que concretize uma nova utopia deverá manter como eixo a democracia? Isto quando, a nível mundial, se vive um confronto entre autocracia e democracia, e a Europa se confronta com apelos securitários.
A boa governação é a ideia de governo público e privado radicalmente democrático. Democracia é todo o processo social, político e cultural por via do qual relações desiguais de poder são gradualmente substituídas por relações de autoridade partilhada. Democratizar é assim uma tarefa que está muito para além do Estado e do sistema político. Distingo cinco campos em que a democratização deverá ter lugar: o campo doméstico (relações entre homem e mulher, entre parceiros, entre filhos e pais), o campo da comunidade (relações de vizinhança, de solidariedade, da ação social e cultural), o campo da produção (relações no trabalho produtivo e na organização das empresas), o campo da cidadania (relações no espaço público e no sistema político, dos partidos aos movimentos sociais, da administração pública às universidades, escolas, centros de investigação) e o campo mundial (relações entre países e entre estes e as organizações internacionais). Democratizar é um processo sem fim. À medida que esse processo avançar, os três grandes modos de dominação (relações desiguais de poder) contemporâneos — capitalismo, colonialismo e patriarcado — irão desaparecendo. Qualquer deles teve historicamente um princípio e é natural que tenha um fim.
Democratizar inclui assim as ideias de desmercantilizar a vida e as relações sociais (uma economia de mercado é desejável, mas uma sociedade de mercado — em que tudo se compra e tudo se vende — é moralmente repugnante), descolonizar as relações sociais (lutar contra o racismo, a limpeza étnica, a islamofobia e a xenofobia) e despatriarcalizar (pondo termo ao sexismo e à homofobia).
Perante este vasto horizonte utópico há que ter em conta três ideias. A primeira é que a democracia não pode ser restringida a um modelo único, seja ele liberal ou não. Cada campo social tem seus modos próprios de democratizar (votação, consenso, rotação, etc.) e mesmo em cada um pode haver variação. Para além disso, as diferentes culturas obrigam a contextualizar interculturalmente a ideia de democracia. Para acomodar as culturas indígenas no país, a Constituição da Bolívia de 2009 consagra três tipos de democracia: representativa, participativa e comunitária. A segunda ideia é que atualmente, mesmo no campo em que se investiu mais na democratização (o campo da cidadania), vivemos um tempo com forte pulsão anti-democrática. Vivemos hoje em um sistema de democracia de baixa intensidade em que as classes populares estão cada vez mais à mercê da filantropia e em que o cidadão comum (e não apenas os imigrantes ou os cidadãos com outra cor de pele) é vigiado e tratado como se fosse “naturalmente” suspeito. Vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas. Não é só a deriva securitária (em si mesma grave, se conduzir à normalização do Estado de emergência ou de exceção); é tambem a erosão dos bens e serviços públicos e o fato de a democracia representativa estar a ser sequestrada pelo poder do dinheiro e pela corrupção endêmica. Para a fortalecer é urgente transformar o sistema político de modo a que a democracia representativa seja complementada a todos os níveis pela democracia participativa. A terceira ideia é que a democracia enquanto horizonte utópico é uma tarefa urgente aqui e agora. As utopias modernas (a começar pela de Thomas More) nunca foram democráticas e foram sempre imaginadas para um não-tempo e não-espaço. A utopia que advogo é realista e concreta. Traduz-se em iniciativas concretas que visam diminuir aqui e agora a desigualdade de poder nas mais diversas relações sociais. Não se envergonha de dar pequenos passos desde que eles sejam conquistados vencendo a resistência de autoritarismos instalados. O seu horizonte é uma lente especial que tanto permite ver e querer ao longe como ver e actuar ao perto.
Qual o papel nessa nova utopia do binómio Liberdade-Igualdade?
Pelo menos a partir de Kant é possível distinguir entre liberdade negativa e liberdade positiva, uma distinção a que Isaiah Berlin dedicou importante trabalho. A liberdade negativa é a liberdade para agir sem obstáculos ou constrangimentos; a liberdade positiva é a capacidade de cada um agir de modo a ter controlo sobre a sua vida e atingir os seus objectivos. Ao contrário do pensamento liberal, não vejo nenhuma incompatibilidade entre os dois conceitos de liberdade. Vejo, pelo contrário, complementaridade. Mas para que esta seja possivel é necessário contemplar duas relações complementares entre liberdade e igualdade. A liberdade negativa pressupõe a igualdade formal, a igualdade de todos perante a lei, para o que são fundamentais os direitos cívicos e políticos. A liberdade positiva pressupõe a existência de condições que a permitam exercer, e para isso é necessária uma certa medida de igualdade material (ausência de grande desigualdade social e de discriminação social e cultural). Nos últimos cinquenta anos essa medida foi garantida pelos direitos econômicos, sociais e culturais (direito laboral; saúde, educação e segurança social públicas; reconhecimento da diversidade cultural). O reconhecimento e a concretização destes direitos só é possivel através de uma forte intervenção de Estado, o Estado social de direito.
E a luta pelos Direitos Humanos?
Os direitos humanos (DH) têm duas faces: a face distópica e a face utópica. A face distópica é dominante, é a que emerge do discurso dominante das agências internacionais sobre DH. De fato, a esmagadora maioria da população do mundo não é sujeito de direitos humanos; é objeto do discurso de DH das agências internacionais e das ONG que lhes estão próximas. É uma narrativa que se contenta em mencionar as consequências das violações dos DH sem nunca questionar as causas. A face utópica dos DH é a que emerge das lutas sociais pela dignidade, pelo direito à saúde, à educação e à segurança social, pelo direito ao trabalho com direitos, pelo direito das mulheres ao seu corpo, pelo direito à terra e à água, pelos direitos coletivos dos povos indígenas e camponeses da África, da Ásia e das Américas ameaçados de expulsão das suas terras e da contaminação das suas águas por parte empresas mineiras, de agricultura industrial e de exploração de madeira. Muitos deste DH não são reconhecidos pela face distópica dos DH. Em sua face utópica, os DH têm duas características. Por um lado, não se limitam às relações entre humanos; incluem também as relações entre os humanos e a natureza. O art. 71 da Constituição do Equador de 2008 consagra os direitos da natureza. É a utopia em forma constitucional. Por outro lado, os DH não se imaginam sem os correspondentes deveres humanos e, nessa medida, assumem um caráter intercultural, uma vez que a cultura ocidental moderna é a única que dá total prevalência aos direitos humanos sobre os deveres humanos. Este desequilíbrio de DH acaba de ser tragicamente demonstrado na Cimeira do Clima que se realizou recentemente em Paris.
Qual o papel da justiça nessa boa governança?
O papel fundamental da justiça é assumir plenamente a sua quota de responsabilidade na concretização da liberdade tanto negativa como positiva e das condições de igualdade que elas pressupõem. Para isso não basta ser gratuita, livre, independente; é necessário que os magistrados sejam treinados em faculdades de direito a criar no futuro onde a técnica jurídica seja uma arma democrática e não, como agora, uma arma burocrática, onde a liberdade e a igualdade, os direitos e os deveres sejam o núcleo central do plano de estudos.
Qual é a sua utopia?
A minha utopia bem concreta é que os leitores do Público comecem a discutir estas ideias e todas as outras que sejam suscitadas por elas e que, a partir dessa discussão, se organizem em Círculos Políticos do Viver Bem a que Todas e Todos Temos Direito para, a partir deles, fazer pressão sobre os partidos políticos, os movimentos sociais, os governos e a administração pública e da justiça para que garantam o máximo possível de liberdade negativa e positiva e as condiçoes de igualdade que pressupõem.
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“Democratizar está muito para além do Estado e do sistema político” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU