15 Dezembro 2015
“O amigo Luiz Gonzaga de Souza Lima, mineiro, que de Petrópolis optou por viver em Cumuruxatiba, no Sul da Bahia, perto de onde as naus de Cabral aportaram. Escolheu viver perto dos índios como um monge para dai pensar o Brasil e o mundo. Posssui sólida formação como cientista político e analista da história brasileira, além de ter sido militante contra a ditadura militar e ter vivido por anos exilado na Itália. Escreveu um livro comentado neste blog que representa, a meu ver, um avanço face a quantos tentaram decifrar o nosso destino mas que o 'capelismo' medíocre de muitos de nossos intelectuais não lhe deram a mínima importância: A refundação do Brasil: rumo a uma sociedade biocentrada (RiMa, São Carlos SP 2011). Ao reagir a uma crônica de um amigo cientista e por anos dirigente do CNPQ, Alvaro Abreu, escreveu esta comovente carta que, com recortes, reproduzo. É um lamento de dor e de lágrimas face ao que ocorreu com o Rio Doce, levado quase à agonia pelo mar de lama tóxica da mineradora Samarco, vinculada à Vale do Rio Doce. Somos solidários a sua dor e lamento”, escreve Leonardo Boff, teólogo e escritor, no seu blog, 11-12-2015, ao reproduzir o texto abaixo.
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Fiquei chocado com os eventos da contaminação do Rio Doce. Acho que a VALE-Samarco matou o Rio Doce. Matou também o Rio das Velhas. Matou muito mais coisas.
Uma profunda tristeza se abateu sobre mim. Tristeza que veio com a lama tóxica, este absurdo subproduto da mineração, que escorreu do coração de Minas, para matar um pedaço dela mesma – um dos mais belos pedaços – e uma boa porção do Brasil, no qual está até o nosso querido Espírito Santo. Chorei. Chorei de verdade. Senti no peito e não deu para segurar.
Ah! Aquelas proféticas palavras de Drummond, hoje tão citadas na mídia social, mas por tanto tempo esquecidas… “O Rio? É Doce, A Vale? Amarga. Quantas toneladas exportamos de ferro? Quantas lágrimas disfarçamos sem berro?“. Pois é. Desta fez não deu para disfarçar. Saíram.
Quanto descobri a política, nos anos do colegial, no início dos sessenta, fui viver naquela grande plantação de sonhos que foram as lutas pelas reformas de base. Neste contexto, por vários motivos que não vem ao caso neste momento, terminei por mergulhar de cabeça em uma luta deflagrada pelos estudantes de geologia da Escola Nacional de Minas, em Ouro Preto. Organizei conferencias, fiz cartazes, estas coisas. Este movimento terminou por empolgar Minas. O movimento se chamava “O Minério não dá duas safras”.
Os conteúdos, ainda me lembro bem, eram mais ou menos assim. O Minério é a carne, aliás os ossos, do território. Não pertence a uma geração, mas deverão servir aos brasileiros das gerações futuras. Seu uso deve ser limitado. Isto não atrapalharia o desenvolvimento, pois países que não possuem minérios também se desenvolvem. Sendo território presente e futuro dos brasileiros, não deveria ser entregue a empresas privadas e jamais a empresas estrangeiras.
A campanha alertava também para uma importante questão. O território onde o minério está assentado é um dos pedaços mais preciosos do patrimônio histórico brasileiro. Seus arraiais, vilas, cidades, ruas e praças. Formam o cenário de importantes lutas políticas e sociais do Brasil. Esta paisagem tinha que permanecer garantida, para os que viessem depois, no futuro, conhecessem nossas raízes e os cenários da nossa história.
Ou seja, deveriam ser estabelecidos limites quantitativos e também geográficos, territoriais e paisagísticos. E muitas outras coisas. Acho que se pensava em uma lei para estabelecer os limites da mineração. Como se pode observar, ainda não se colocava a questão ecológica. Também ainda não existia a Usina de Tubarão.
Como o amigo pode perceber sou daquele povim simples que aprendeu a amar o Brasil admirando sua beleza e impressionado com sua grandeza, e, que aprendeu também, que somos os seus senhores e os responsáveis por ele.
Naquela bela adolescência política, como mineiro que começava a amar a construção da história, me sentia como um guardião, um defensor, daquele “coração de ouro em peito de ferro” que o Brasil possui nas nossas minas gerais, como está escrito no panteão da Escola de Minas de Ouro Preto, junto aos restos mortais de um antigo diretor da Escola.
É verdade que dali, de nossas belas montanhas, já desceram muitas riquezas, que iam sempre embora para enriquecer outros povos do mundo….
Mas também é verdade que das vertentes das nossas serras, da Serra do Espinhaço, da Serra da Canastra, da Mantiqueira, da Moeda, do Curral, e muitas outras sempre desceram águas limpas e puras, que se debulhavam em cachoeiras para nosso encanto e para o prazer, para a alegria, e para molhar, alimentar e embelezar o Brasil. São Francisco, Jequitionha, Doce, Mucuri, Paraibuna e tantos e tantos. Sentíamos certo orgulho do que o nosso estado oferecia.
Orgulho só comparável àquele que sentíamos por sermos o berço de ideias tão bonitas sobre o Brasil, defendidas com fervor, com o sangue, vida e desterro, pelos dos revolucionários de 1789, que testemunharam a nossa invencível vontade de independência e de liberdade.
Estas ideias, estes sonhos e estes testemunhos também desciam junto com nossas águas, jorravam de nossas nascentes, escorregavam por nossas cachoeiras e inundavam o Brasil de esperança e de civismo. Sonhos que desciam bonito levando também consigo a beleza simples da mais bela e rica paisagem urbana do Brasil Colonial.
Destas montanhas de ouro e ferro, também descia arte. Muita arte. Junto com os Profetas em pedra sabão de Aleijadinho e a exuberante arte sacra mineira, descia também uma das mais gostosas literaturas de toda a língua portuguesa, como nos apresenta mestre Guimarães Rosa. Tudo descia junto com nossas poesias, que estão entre as mais belas que já soubemos fazer, como nos mostra Drumond.
A poesia mineira carrega em sua beleza e em sua densidade algo mais que a beleza da criação poética. Traz o compromisso radical dos seus poetas com as liberdades e a autonomia cultural do Brasil, como se pode constatar pela presença de Alvarenga Peixoto, Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e outros ali no panteão dos revolucionários mineiros de ‘89, que está na mesma praça de Ouro Preto.
De Minas sempre desceram sonhos, encantamentos, mitos, caipirês gostoso, queijin, rapadurinha, costelinha de porco com torrêsmin e um feijãozin tropeiro. Muita cachaça boa. As melhores que nosso país aprendeu fazer. Muita carne, muito pequi, buriti… E desceu muita musica. Músicas lindas de todos os tipos e da melhor qualidade. Que encantaram e continuam a encantar o Brasil e o mundo.
Pode-se imaginar o que foi para minha alma simples de sertanejo mineiro ver descer das mesmas montanhas, tão amadas, aquela lama tóxica que está matando o mundo, a natureza, as plantas, os bichos, os peixes e matará as pessoas. Que está matando rios, lagos, e que matará também um pedaço do oceano Atlântico. Um crime, uma bandidagem. E tudo isto só para alguns ganharem dinheiro…
Junto com a imagem da lama chegou uma grande tristeza. Um profundo silêncio, um aperto de coração, denso e grave. Aquela dor. Acho que a lama feriu o coração do Brasil.
Para não me alongar:
1. O governo mineiro é da VALE; a bancada mineira no congresso é da VALE, o sistema político do pais, corrompido – todo -, palco e moldura de tantos escândalos, é corrompido também pela VALE;
2. A imprensa é da VALE;
3. E tantas outras coisas que não cabe aqui referir.
Este foi o modo com o qual me envolvi com o drama/tragédia da contaminação do Rio Doce. Tão boa e tão oportuna. Demorei para comentá-la porque não saberia falar deste tema senão do modo como fiz agora. Relacionando-o com o início dos meus sonhos políticos, da aprendizagem da cidadania e com o início da minha militância.
O sentimento que dominou foi a tristeza, que acabou escorrendo em lágrimas disfarçadas ao inteirar-me dos fatos, mas que saltaram copiosas, quentes e tristes quando vi no Facebook um filme sobre o rompimento da barragem e o Rio de Lama que se formou. A cada filme, e são muitos, continuam a rolar.
Esta lama é uma derrota para o Brasil, para seu presente e seu futuro. É um sonho que virou pesadelo, um sorriso que virou grito.
Sei que atravessaremos mais esta. Mas não precisava tanto.
Com um abraço fraterno
Luiz Gonzaga
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Lamento e lágrimas pelo Rio Doce - Instituto Humanitas Unisinos - IHU