26 Novembro 2015
Imóveis, contas no IOR, fundos de pensões, procedimentos de contratação. Os livros Via Crucis, de Gianluigi Nuzzi (Ed. Chiarelettere), e Avarizia, de Emiliano Fittipaldi (Ed. Feltrinelli), sobre as finanças vaticanas, escritos com base em uma documentação quase coincidente e divulgado quase simultaneamente no fim de outubro, induziram o Judiciário vaticano a processar três empregados vaticanos, Mons. Lucio Anjo Vallejo Balda, o seu colaborador Nicola Maio e Francesca Chaouqui, sob a acusação de terem "revelado notícias e documentos relativos aos interesses fundamentais da Santa Sé e do Estado" pontifício, e os mesmos jornalistas italianos por "cumplicidade no crime", por força de uma pressão normativa feita pelo Papa Francisco em 2013 depois do primeiro vazamento de documentos confidenciais vaticanos (o "Vatileaks") que tinha marcado em 2012 a última parte do pontificado de Bento XVI.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada no sítio Gli Stati Generali, 20-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A primeira audiência de um processo que, previsivelmente, vai se concluir rapidamente antes do início do Jubileu (8 de dezembro) ocorreu no dia 21. Os documentos publicados, de todos os modos, são interessantes, embora parcialmente superados pelos acontecimentos, e oferecem uma oportunidade para fazer um balanço do quadro econômico do Vaticano e sobre as intervenções postas em prática pelo Papa Francisco.
O papa sabe, o papa deve saber
"Você deve escrever um livro. Você também deve escrevê-lo para Francisco, que deve saber"
A afirmação é de um monsenhor anônimo a Fittipaldi, antes de lhe deixar uma grande quantidade de documentos "do IOR, da APSA, dos dicastérios, dos revisores das contas chamados pela comissão referente, a Coşea". Esse é o ponto fraco da reconstrução.
Se esse argumento tinha qualquer fundamento em 2012 – quando Bento XVI, o papa teólogo, bastante isolado, tinha delegado a gestão dos assuntos correntes ao seu secretário de Estado, o exuberante Tarcisio Bertone, e o seu mordomo, Paolo Gabriele, decidiu, de modo traiçoeiro e provavelmente não solitário, vazar os documentos, porque, assim ele disse, considerava que era uma maneira de fazer com que o papa soubesse como as coisas estavam – Jorge Mario Bergoglio, sem dúvida, sabe.
Francisco pontualizou isso pessoalmente no ngelus do último dia 8 de novembro, em referência à investigação que promoveu no início do pontificado a fim de reformar, com a ajuda de nove cardeais de todo o mundo (o C9), a Cúria Romana e de chegar, em alguns anos, a uma constituição substituição da atual Pastor bonus: "Eu mesmo pedi para fazer esse estudo, e eu e os meus colaboradores já conhecíamos muito bem esses documentos, e foram tomadas as medidas que começaram a dar frutos, alguns até visíveis".
Os documentos publicados por Nuzzi e Fittipaldi, com efeito, vêm da Comissão Referente de Estudo sobre a Organização das Estruturas Econômico-Administrativas da Santa Sé (Cosea) instituída, junto com uma segunda comissão referente sobre o IOR (Instituto para as Obras de Religião), pelo papa no dia 18 de julho de 2013, na difícil situação em que pôs a mão na reforma das estruturas econômicas e administrativas do Estado pontifício e dissolvidas, por esgotamento da missão, no dia 22 de maio de 2014, depois que, no dia 24 de fevereiro anterior, o próprio papa havia criado ex-novo um superdicastério econômico, a Secretaria para a Economia, confiando-a ao cardeal australiano George Pell.
As duas pessoas sob investigação no Vaticano, Mons. Balda e Francesca Chaouqui, eram, respectivamente, secretário e membro da Cosea. E o cardeal Pell é retratado pelos dois livros de Nuzzi e Fittipaldi com tons negativos.
Os documentos, aponta Nuzzi, fotografam uma situação "atualizada até o inverno de 2013-2014", portanto, não atualizada.
Quem pagou pelos trabalhos da casa do cardeal Bertone?
O papa "deve saber que a Fundação do Bambin Gesù, nascida para recolher as ofertas para os pequenos doentes, pagou parte dos trabalhos feitos na nova casa do cardeal Tarcisio Bertone"
No dia 4 de novembro passado, poucos dias após depois do lançamento dos livros de Nuzzi e Fittipaldi, o cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, nomeou os novos conselheiros do hospital de propriedade da Santa Sé.
Os novos conselheiros são sete, incluindo a presidente, Mariella Enoc, Pietro Brunetti, Ferruccio De Bortoli, Maria Bianca Farina, Caterina Sansone, Anna Maria Tarantola e Antonio Zanardi Landi.
Novos conselheiros, novo estatuto e nova missão: "Um objetivo – declarou a presidente Enoc – em que eu trabalhei desde o primeiro dia da minha posse para garantir transparência, solidariedade e inovação".
Enoc tinha sido nomeada por Parolin no dia 13 de fevereiro passado, substituindo Giuseppe Profiti, que, nomeado em 2008 pelo cardeal Bertone como chefe do hospital pediátrico vaticano, em janeiro deste ano, havia renunciado.
Um ano antes, em dezembro de 2013, todos lembram o gelo com que o Papa Francisco, em visita ao hospital localizado no Gianicolo, tinha interrompido o discurso de Profiti, deixando o palco para ir cumprimentar as crianças.
Quanto a Bertone, ao jornal Corriere della Sera, ele declarou que pagou com as suas próprias poupanças os 300 mil euros dos trabalhos de reforma. Quanto aos outros 200 mil euros que teriam sido pagos pelo Bambin Gesù, "assim dizem, mas eu não autorizei nada".
Bertone não é secretário de Estado desde o dia 31 de agosto de 2013 e não é presidente da comissão de supervisão do IOR desde janeiro de 2014.
Como é administrado o patrimônio imobiliário
O papa "deve saber que o Vaticano possui casas em Roma que valem 4 bilhões de euros. Dentro delas, não há refugiados, como o papa gostaria, mas um monte de recomendados e VIPs que pagam aluguéis ridículos"
É o aspecto mais interessante dos livros de Nuzzi e Fittipaldi. É difícil que o papa não tivesse em mente esses dados quando, em setembro passado, entrevistado pela Rádio Renascença, de Portugal, especificou que "um colégio religioso, por ser religioso está isento de impostos, mas, se funciona como hotel, então, que pague os impostos como qualquer vizinho do lado. Senão, o negócio não é limpo".
Mas nunca havia sido publicado o valor de mercado dos imóveis de propriedade da Santa Sé. Nos últimos anos, aqui e ali, muitas vezes em conexão com investigações judiciais italianas, tinha surgido o tema dos imóveis de propriedade da Santa Sé.
O jornal britânico The Guardian havia reportado, no início de 2013, um "império imobiliário do Vaticano fora da Itália, depois que, na realidade, justamente o Mons. Balda, então secretário da Prefeitura para os Assuntos Econômicos, no fim de 2012, havia confirmado, em uma coletiva de imprensa no Vaticano, a existência de imóveis, dados ao longo do tempo em doação ao Vaticano, na Suíça, França e Inglaterra".
Sobre os números, porém, não havia certeza. Só o patrimônio da APSA (Administração do Patrimônio da Sé Apostólica), "entre unidades comerciais, residenciais e institucionais, vale nada menos do que sete vezes mais em relação ao que é relatado nos documentos contáveis", escreve Nuzzi agora. "E o valor de mercado atribuível também apenas ao patrimônio da APSA equivale a nada menos do que 2,7 bilhões de euros, um dado que, pela primeira vez, a comissão Cosea consegue documentar com precisão", e que os Vatileaks deram a conhecer à opinião pública.
O outro dicastério proprietário de muitos imóveis, usados para lucrar para financiar as missões, é a Congregação para a Evangelização dos Povos (Propaganda fide), que, em nota, quis desmentir algumas reconstruções dos dois livros: "Foi escrito, por exemplo, que a Congregação aluga imóveis de luxo a preços favoráveis e até mesmo que hospeda uma sauna ou que é proprietária do Hotel Priscilla. A totalidade dos imóveis de propriedade da Congregação, doados para as missões, são alugados a preço de mercado; não faltam exceções por motivos de situações de indigência".
É interessante – e está em objetiva contradição com o estilo habitativo do papa – a lista publicada no livro Via Crucis dos apartamentos, incluindo a metragem, dos diversos cardeais da Cúria Romana.
Como é gasto o Óbolo de São Pedro
O papa "deve saber que as ofertas que os seus fiéis lhes presenteiam todos os anos através do Óbolo de São Pedro não são gastas com os mais pobres, mas empilhadas sobre as contas e investimentos que hoje valem quase 400 milhões de euros"
Também no que diz respeito ao Óbolo, objeto de décadas de mistérios, os livros de Nuzzi e Fittipaldi relatam, pela primeira vez, o tamanho da coleta: "A coleta – afirma-se em um documento da Cosea – é utilizada para as iniciativas de caridade e/ou projetos específicos indicados pelo Santo Padre (14,1 milhões), para a transmissão das ofertas com fins específicos (6,9 milhões) e para a manutenção da Cúria Romana (28,9 milhões)".
Isso significa, afirma Nuzzi, "que mais da metade das ofertas que chegam dos fiéis de todo o mundo e que deveriam ir para os necessitados acabam, em vez disso, nos cofres da Cúria".
Observação não totalmente precisa, porque o óbolo – assim afirma a página eletrônica relativa – é "a ajuda econômica que os fiéis oferecem ao Santo Padre, como sinal de adesão à solicitude do Sucessor de Pedro para as múltiplas necessidades da Igreja universal e para as obras de caridade em favor dos mais necessitados".
Quem dá o óbolo, em suma, deveria saber (analogamente, querendo fazer uma comparação, a quem direciona os "oito por mil" [fração do imposto de renda italiano individual] à Igreja Católica) que a soma não é inteiramente utilizada "em favor dos necessitados".
Graças aos Vatileaks, os "contribuintes" do óbolo conhecem com exatidão o emprego das "receitas".
O IOR, as contas fechadas, as relações com a Itália
O papa "deve saber que o IOR ainda não foi limpo e que, dentro do torrião, ainda se escondem clientes abusivos, gentalha investigada na Itália por crimes graves. Ele deve saber que o Vaticano nunca deu aos seus investigadores do Banco da Itália a lista daqueles que fugiram com o botim para o exterior"
É verdade e é sabido que as limpezas iniciadas no Instituto para as Obras de Religião por Ernst von Freyberg, nomeado por Bento XVI no fim do seu pontificado e substituído em julho de 2014 por Jean-Baptiste de Franssu, fidelíssimo do cardeal Pell, foram radicais, mas ainda não se concluíram.
O fato de o IOR ter sido utilizado no passado para a lavagem de dinheiro é história, contada em parte pelo próprio Gianluigi Nuzzi no seu primeiro best-seller, Vaticano Spa.
Desde que o Papa Ratzinger selou um acordo monetário com a União Europeia, abrindo as portas do instituto que tem sede no torrião Nicolau V ao órgão do Conselho da Europa para o combate à lavagem de dinheiro, o Moneyval, e desde quando, depois, o Papa Francisco reforçou a operação de transparência engajando o grupo financeiro Promontory para fazer uma varredura das contas correntes, muitas coisas mudaram, no entanto.
Com o novo curso, o IOR enviou cartas de cancelamento em rajadas. Ele colaborou com a Justiça italiana, quando foi preso o Mons. Nunzio Scarano, empregado da APSA com contas no IOR nas quais movimentava milhões de euros de origem duvidosa ("Ele certamente não é a Beata Imelda", disse o Papa Francisco sobre ele, abrindo caminho para que a Justiça italiana fizesse o seu caminho).
"De maio de 2013 a junho de 2014 – afirma-se nos documentos públicos do instituto – o IOR sistematicamente controlou com atenção todos os dados dos clientes existentes. Essa tarefa foi agora completada com sucesso."
Como resultado desse processo de análise, o IOR terminou, no dia 31 de dezembro de 2014, 4.614 relações com a clientela. Destas, 2.600 eram contas "adormecidas", 1.460 foram fechadas por razões "fisiológicas", 554 relações foram fechadas depois da decisão de restringir os clientes a instituições católicas, clero, empregados ou aposentados do Vaticano com contas reservadas para salários ou pensões, além de embaixadas e diplomatas credenciados junto à Santa Sé.
Permanecem 274 relações a serem fechadas, das quais 149 "em fechamento" no dia 31 de dezembro passado, e 126 "bloqueadas". Em junho de 2014, quando as relações fechadas ainda não eram 554, mas 396, o IOR especificava que, "em junho de 2013 e na primeira metade de 2014, a cessação das relações com esses 396 clientes determinou uma saída de fundos em um total de 44 milhões de euros aproximadamente, dos quais 37,1 milhões de euros foram transferidos por depósito a instituições financeiras com sede em jurisdições que garantem a rastreabilidade dos fundos por força de um quadro normativo equiparável (88% foram destinados a instituições italianas), aproximadamente 5,7 milhões de euros foram transferidos a título de doação através de circuitos internos do instituto. A quantia residual, igual a 1,2 milhão de euros, foi liquidada em dinheiro, de acordo com as políticas internas".
É a área cinzenta indicada por Fittipaldi. O Vaticano decidiu encerrar o passado, deixando os clientes que se tornaram indesejados transferissem o seu dinheiro para outro lugar, sem comunicar os detalhes para a Itália. Decisão politicamente questionável, mas, em virtude da soberania estatal vaticana legítima.
No dia 31 de dezembro de 2014, os usuários do IOR eram 15.181. Entre eles, podem estar institutos religiosos (são a metade dos clientes que restaram, cerca de três bilhões em ativos), com casa generalícia na Itália e movimentos financeiros em outros países.
Nisso está centrado o recente acordo fiscal entre a Itália e o Vaticano. Como disse Von Freyberg antes de deixar o cargo, "todos os clientes no futuro deverão pagar os impostos nos seus países de origem: deverão pagar os impostos na Itália, nos Estados Unidos e assim por diante. E deverão demonstrar isso".
Também deve-se notar que Von Freyberg, sob o olhar vigilante do pontífice argentino, retirou os investimentos de operações imprudentes iniciadas na época do cardeal Bertone (Lux vide, Optimum ad maiora).
O orçamento saiu sangrando: em 2013, por causa de "encargos de natureza extraordinária" e "relevantes retificações sobre o valor dos fundos de investimento", o IOR – afirmava-se no orçamento publicado online, apesar de muitas resistências na Cúria – obteve um lucro de 2,9 milhões de euros, 83 milhões a menos do que em 2012.
O instituto, em 2014, voltou a crescer com um lucro – segundo o relatório de 2014 publicado em maio passado – de 69,3 milhões de euros: "A melhoria do resultado é imputável essencialmente ao andamento do resultado de negociações de títulos e à diminuição dos custos operacionais de natureza extraordinária".
A "Fábrica dos Santos"
O papa "deve saber que, para fazer um santo, para se tornar bem-aventurado, é preciso pagar. Sim, desembolsar dinheiro. Os caçadores de milagres são caros, são advogados, querem centenas de milhares de euros"
Os dados coletados pela Cosea "são alarmantes", escreve Nuzzi. "Nos escritórios dos postuladores, chegam grandes somas de dinheiro vivo, e não é feita uma adequada contabilidade sobre eles. Do que emergiu nos primeiros seis meses de investigação, continuam sendo "insuficientes os controles do dinheiro líquido para as canonizações".
O relato continua com uma história de contornos pouco claros sobre a decisão de bloquear as contas no IOR dos "postuladores" de algumas causas de canonização, além de grandes da Cúria, como Dom Vincenzo Paglia e Dom Georg Gänswein.
O tema, de todos os modos, existe e é conhecido. O que, na era de João Paulo II, era apelidada de "fábrica dos santos" tem a seu serviço muitíssimas pessoas muito íntegras e alguns espertalhões. Tanto que o cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, anunciou em janeiro de 2014 a entrada em vigor de um "tarifário de referência" ao qual postuladores e atores das causas de canonização deve se ater. O objetivo, explicou, era eliminar "desigualdades entre as várias causas". Um procedimento que levava a pensar em especulações e movimentações de dinheiro opacas em memória dos santos e bem-aventurados.
Ainda na época, o Catholic News Service (CNS), a prestigiada agência de notícias da Conferência Episcopal dos Estados Unidos fez algumas contas. Uma causa de canonização – desde os primeiros indícios até a missa em São Pedro – pode custar até 250 mil dólares. As despesas podem incluir a viagem das testemunhas, a exumação do candidato, a publicação da "positio", as despesas com os consultores teológicos, históricos, médicos, as cerimônias.
Duzentos e cinquenta mil dólares, nada de trocados. Nem todos podem se dar ao luxo. E – ironia da santidade – nem todos querem. O Mons. Greg Mustaciuolo, postulador para a canonização de Dorothy Day, fundadora do movimento operário católico, contou à CNS que há um problema. Quem quer Dorothy Day santa, de fato, prefere dar o dinheiro que tem aos pobres.
Quanto custam as pensões
Um capítulo do livro de Nuzzi, intitulado "O buraco negro das pensões", relata que a análise da Cosea revelou "um relevante déficit dos financiamento de ao menos 700-800 milhões de euros" no fundo de pensão. O problema, ligado ao envelhecimento da população vaticana e das restrições orçamentais, é conhecido. Tanto que, no dia 20 de fevereiro de 2015, com a Cosea já dissolvida, o conselho de administração e o colégio dos revisores das contas do fundo de pensão vaticano publicaram uma nota para esclarecer que o rácio de cobertura (funding ratio) é de 95%, para revelar o "progressivo aumento dos recursos financeiros e imobiliários, tanto com meios próprios, que, de 1993 a 2013, aumentaram em média 22.256.196 euros por ano, quanto pelo andamento em crescimento do lucro de exercício, que, nos últimos seis anos, passou de 23.583.882 euros para 26.866.657 euros, valores suficientes para cobrir o custo atual das pensões", e para informar que o patrimônio do Fundo, no dia 31 de dezembro de 2014, era de 477.668.000 euros e, em 31 de dezembro de 2015, será previsivelmente de mais de 504 milhões de euros", confirmando a solidez real do Fundo, que passou de uma dotação inicial de 10 bilhões das velhas liras italianas em 1993 para mais de 500 milhões de euros em pouco mais de 20 anos".
Com uma carta apostólica em forma de "motu próprio" do dia 29 de maio passado, o papa ordenou a revisão do estatuto do fundo de pensões vaticano.
Contratos e contratações
O livro de Nuzzi relata uma interessante intervenção do papa, registrada no início dos trabalhos da Cosea, em que Francisco aborda a questão dos contratos: "Há despesas que não provêm de uma clareza dos procedimentos. Isso se vê nos balanços. Conectado com isso, eu acredito que se deve ir mais longe no trabalho de esclarecer bem a origem das despesas e as formas de pagamento". E "se algo uma coisa foi feita sem um orçamento, sem autorização, não se paga".
O problema é evidente, difícil de erradicar em um pequeno Estado pontifício, muito poroso com a realidade romana e italiana, onde muitas vezes vigora a lógica de confiar trabalhos ou fazer contratações através de amigos e amigos de amigos. Não por acaso, no dia 28 de outubro, o Papa Francisco pôs um freio no risco das contratações fáceis, especificando que "o presente período de transição" devido à reforma em curso da Cúria romana não é "tempo de vacatio legis" e, em particular, "as contratações e as transferências de pessoal deverão ser efetuadas nos limites das tabelas orgânicas, excluindo qualquer outro critério com o nada obsta da Secretaria de Estado e na observância dos procedimentos prescritos, incluindo a referência aos parâmetros retributivos estabelecidos".
Atualmente, no entanto, ainda não está em vigor um procedimento novo e padronizado sobre os contratos, que previsivelmente será adotado pelos órgãos vaticanos, começando pelo Governatorato, com a conclusão da reforma da Cúria.
O bispo esbanjador
O papa "deve saber que um bispo na Alemanha desperdiçou 31 milhões de euros para reformar a sua residência e que, uma vez pego, foi promovido com um cargo em Roma. Francisco deve saber um monte de coisas. Coisas que não sabe, porque ninguém lhe diz"
Depois de meses de polêmicas, nos jornais e entre os católicos alemães, sobre o uso de dinheiro (uma viagem à Índia em primeira classe, uma luxuriosa reestruturação na diocese), e depois de uma investigação que Conferência Episcopal Alemã entregou à Congregação vaticana dos Bispos, o Papa Francisco "aceitou a renúncia" de Dom Franz-Peter Tebartz-van Elst no dia 26 de março de 2014, e nomeou um "administrador apostólico" para a diocese. Apesar das boas relações do bispo com alguns grandes alemães da Cúria Romana.
"Confirmado que, na Diocese de Limburg, chegou-se a determinar uma situação que impede um exercício fecundo do ministério por parte de S. Ex.ª Rev.ma Dom Franz-Peter Tebartz-van Elst, a Santa Sé aceitou a renúncia apresentada pelo prelado na data de 20 de outubro de 2013 e nomeou um administrador apostólico sé vacante na pessoa de S. Ex.ª Rev.ma Dom Manfred Grothe. O bispo cessante, S. Ex.ª Rev.ma Dom Tebartz-van Elst, receberá no tempo oportuno outro encargo".
O prelado agora é funcionário do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização. A revista Bild escreveu que o bispo vive agora em um apartamento perto da Praça Navona, coisa sobre a qual, evidentemente, Francisco não tem nenhum poder de intervenção.
No início de setembro, a Congregação para os Bispos, de acordo com a Secretaria de Estado, rejeitou o pedido da diocese de Limburg de um processo no Vaticano para a indenização em nome do ex-bispo.
A reforma da Cúria Romana, o papel de Pell
O papa "deve saber que o homem que ele mesmo escolheu para pôr no lugar as nossas finanças, o cardeal George Pell, na Austrália, acabou em uma investigação do governo sobre a pedofilia. Algumas testemunhas o definem como 'sociopata'; na Itália ninguém escreve nada. Ele deve saber que Pell gastou com ele e com os seus amigos, entre salários e roupas sob medida, meio milhão de euros em seis meses"
O cardeal Pell deveria ser ouvido em breve diante da Royal Commission into Child Sexual Abuse, na Austrália, que investiga algumas histórias de pedofilia e de relativo acobertamento das acusações. Quanto às críticas sobre os gastos do seu dicastério, o cardeal respondeu com uma nota detalhada.
O arcebispo emérito de Sydney – que não escondeu ter opiniões diferentes do papa, tanto em mérito à ecologia, quando foi publicada a encíclica de Francisco, Laudato si', quanto sobre o método e o mérito do recente Sínodo sobre a família – foi escolhido pelo próprio pontífice argentino entre os nove cardeais de todos os continentes que o ajudam na reforma da Cúria e no governo da Igreja Católica (o C9).
O papa não se cercou de "yes men". É preciso enquadrar a reforma que Francisco está fazendo – reforma dos estilos de vida, antes ainda que das estruturas, reforma que pretende dar novamente a forma evangélica à instituição eclesial – no marco da história vaticana destes anos.
Jorge Mario Bergoglio foi eleito, com imensa maioria, por um conclave que queria encerrar a época dos escândalos, incubada sob João Paulo II e que explodiu sob Bento XVI, que, renunciando ao pontificado, abriu o caminho para a eleição do primeiro papa latino-americano, do primeiro papa jesuíta e do primeiro papa que escolheu o nome do pobrezinho de Assis, Francisco.
"Quero uma Igreja pobre e para os pobres", disse ele, recém-eleito. Desafio imenso, certamente, mas não impossível. Os primeiros Vatileaks, em 2012, eram o sintoma de uma crise da Cúria; os atuais parecem ser a cauda dessa crise.
Francesco muda as coisas. A sua reforma não é feita apenas por palavras, não é marketing nem maquiagem. Nem todos estão contentes. A título de parcial retomada, deve-se lembrar que, a partir da prisão do Mons. Scarano, em junho de 2013, um semestre depois do conclave, o Papa Francisco deu uma sacudida em todas as finanças vaticanas. Decapitou a cúpula do IOR imediatamente inferior ao presidente alemão (o diretor-geral e o seu vice, Paolo Cipriani e Massimo Tulli, seriam investigados pouco tempo depois pela Procuradoria de Roma); decapitou a cúpula da APSA (foi embora tanto o responsável pela seção ordinária para os imóveis, Massimo Boarotto, quanto o da seção extraordinária para os investimentos financeiras, Paolo Mennini, filho daquele Antonio Mennini, braço direito de Dom Marcinkus); primeiro comissiona, depois substitui a comissão cardinalícia de vigilância do IOR liderada por Bertone; adota um motu proprio e quatro novas leis que, dentre outras coisas, reforçam a "prevenção e o combate das atividades em campo financeiro e monetário"; redesenha – graças ao trabalho da comissão referente sobre o IOR e a da Cosea – o Conselho para a Economia, grupo de 15 cardeais criados por João Paulo II para coenvolver prelados de todo o mundo na aprovação dos balanços da Santa Sé; e substitui os membros por oito cardeais e sete leigos.
Racionaliza os escritórios. Circunscreve o papel do IOR. Deixa ao Governatorato o papel de "subprefeitura" do Estado pontifício. Estabelece que a APSA se torne, oficialmente, o "banco central" do Vaticano. Inicia uma reforma dos meios de comunicação vaticanos (L'Osservatore Romano, Radio Vaticana, Centro Televisivo Vaticano, Sala de Imprensa). Por fim, cria um novo superdicastério das Finanças, a Secretaria para a Economia, que centraliza o controle sobre todos os orçamentos dos diversos escritórios com base em padrões contábeis internacionais.
O spoils system é radical. Saem de cena todos os jogadores, italianos, da gestão passada: o cardeal Tarcisio Bertone (o ex-secretário de Estado é substituído pelo espanhol Santos Abril y Castelló à frente da comissão cardinalícia de vigilância do IOR), o cardeal Attilio Nicora (à frente da autoridade financeira, AIF, senta-se o especialista em combate à lavagem de dinheiro de Liechtenstein, René Bruelhart), além do cardeal Angelo Scola (o arcebispo de Milão era membro do Conselho da Economia até sua reestruturação), o cardeal bertoniano Giuseppe Versaldi, que deixa a Prefeitura para os Assuntos Econômicos, dissolvida, para a mais isolada Congregação da Educação Católica, enquanto outro cardeal bertoniano, Domenico Calcagno, muitas vezes citado nos livros de Nuzzi e Fittipaldi, ao longo dos meses, torna-se quase invisível à espera de deixar a presidência da APSA.
Os membros da nova cúpula são todos não italianos: além dos já citados Bruelhart (AIF) e o cardeal Abril y Castelló (comissão de vigilância do IOR, agora ampliada para seis membros, em vez de cinco), o francês Jean-Baptiste de Franssu substituiu Von Freyberg no IOR, o cardeal alemão Reinhard Marx lidera o Conselho da Economia e o australiano George Pell é o chefe da poderosa Secretaria para a Economia.
O Mons. Vallejo Balda, da Opus Dei, agora em prisão no Vaticano por causa do vazamento de documentos, esperava se tornar o seu número dois, mas o papa prefere o seu secretário maltês, Alfred Xuereb.
Mas, entre os quadros diretivos vaticanos, ainda há italianos. O novo cardeal secretário de Estado, por exemplo, Pietro Parolin, faz parte do Conselho de Superintendência do IOR, até mesmo na qualidade de membro simples e não de presidente. O diretor da autoridade financeira liderada por Bruelhart é Tommaso Di Ruzza. Para redesenhar o futuro da APSA, contribuiu o economista Franco Dalla Sega. O ex-núncio Batista Ricca continua sendo – apesar de uma campanha de imprensa adversa – "prelado" do IOR, ou seja, oficial de ligação entre o instituto e o pontífice.
O novo curso, além disso, ao longo dos meses, levantou algumas perplexidades muito além do circuito dos italianos. Causou perplexidade uma longa série de empresas internacionais de consultoria engajadas pelo Vaticano nos primeiros meses de pontificado (Ernst & Young, Promontory Financial Group, McKinsey & Company, KPMG, PricewaterhouseCoopers, Deloitte). Aos olhos de muitos, o cardeal Pell acumulou poder demais.
Ainda em julho passado, em uma entrevista ao Financial Times, ele relançava a ideia, vista com desconfiança por diversos ambientes curiais, de criar um Vatican Asset Management (VAM), uma espécie de central para os investimentos.
Em aplicação do mais clássico princípio do check and balance, consequentemente, o papa não nomeou casualmente, nos últimos meses, três italianos em papéis-chave do novo organograma vaticano, o discreto e competente Mons. Mauro Rivella na secretaria da APSA, o Mons. Luigi Mistò na secretaria da secção administrativa da Secretaria para a Economia e, na vice-direção do IOR, Gianfranco Mammì.
Ele deixou que a Propaganda fide, liderada pelo cardeal italiano Fernando Filoni, conservasse uma certa autonomia de gestão. Confiou a recém-criada Secretaria para a Comunicação a um competente monsenhor italiano, de origem brasileira, Dario Edoardo Viganò.
O quadro geral, de todos os modos, é claro. Não há dados oficiais, mas há anos sabe-se que quem financia os cofres do Vaticano, principalmente, são os católicos estadunidenses e alemães. E os cardeais expressão desses países querem contar mais na gestão da "sua" burocracia. Nem todos os italianos estavam envolvidos nos escândalos, mas não havia escândalo em que algum italiano não estivesse envolvido.
Para usar a linguagem franca, abrasiva do cardeal Pell, àqueles que indicavam que agora há poucos italianos em posições de cúpula nos órgãos econômicos, "não somos o Vicariato de Roma, mas a Igreja universal".
O livro de Nuzzi dedica à "ascensão do cardeal Pell" o penúltimo capítulo, antes de concluir com a interrogação sobre se, depois do primeiro caso Vatileaks e a renúncia ao pontificado de Bento XVI, "Francisco também vai renunciar". É preciso excluir tal possibilidade.
Para aprofundar:
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Vatileaks: tudo o que o Papa Francisco sabe ou deveria saber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU