Por: André | 24 Novembro 2015
É o que afirma o cardeal africano Robert Sarah em seu livro Deus ou nada e na discussão que se seguiu. De forma exclusiva, aqui, uma prévia de uma intervenção de sua autoria, que sairá na próxima edição da revista L’Homme Nouveau.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa.it, 19-11-2015. A tradução é de André Langer.
Nas quatro páginas do dossiê que a revista católica francesa L’Homme Nouveau se dispõe a publicar no seu próximo número, a palavra “Sínodo” não aparece uma única vez. Muito menos encontra-se citada a Relatio finalis, que os padres sinodais entregaram ao Papa.
No entanto, entre os argumentos tratados no dossiê estão aqueles que, no duplo Sínodo sobre a Família, foram os mais controversos, desde a homossexualidade à comunhão aos divorciados recasados.
E, acima de tudo, o autor do dossiê foi um protagonista de primeira categoria no Sínodo. Trata-se do cardeal Robert Sarah, de 70 anos, guineano, nomeado há um ano pelo Papa Francisco para ser o prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, ou seja, alguém com competência e autoridade sobre precisamente os três sacramentos que estiveram no centro das discussões sinodais: o matrimônio, a eucaristia e a penitência.
Por que, então, este silêncio?
O cardeal Sarah tornou-se conhecido em todo o mundo por causa do extraordinário interesse suscitado, este ano, pelo seu livro intitulado Deus ou nada.
Um livro que, desde o título, coloca no topo da lista questões vitais do catolicismo, a crise de fé que o atravessa.
Os leitores deste livro fizeram chegar a Sarah muitos comentários, favoráveis e desfavoráveis. No dossiê que está para ser publicado na L’Homme Nouveau, o cardeal responde a um bom número das objeções que recebeu.
Mas, justamente o que estas objeções revelam convenceu ainda mais o cardeal Sarah de que o problema mais grave que a Igreja de hoje enfrenta é exatamente uma crise de fé.
Uma crise que é anterior às questões debatidas no Sínodo, porque ela toca os fundamentos mesmos da fé católica e põe a descoberto um difundido analfabetismo sobre o ensinamento secular da Igreja, presente também no meio do clero, ou seja, justamente entre aqueles que deveriam agir como guias dos fiéis.
O cardeal chega a dizer, a propósito do sacramento da Eucaristia: “Toda a Igreja sempre defendeu com firmeza que não se pode receber a comunhão havendo a consciência de que se está em estado de pecado mortal, princípio reiterado como definitivo por João Paulo II em 2003, em sua encíclica Ecclesia de Eucharistia”, sobre a base daquilo que foi decretado pelo Concílio de Trento.
E imediatamente depois acrescenta: “Nem mesmo um Papa pode dispensar dessa lei divina”.
Na sequência, apresentamos uma prévia – gentilmente autorizada pela L’Homme Nouveau – de uma parte do dossiê, no qual se constata que, para responder às suas objeções sobre as questões discutidas no Sínodo, o cardeal Sarah deve, em primeiro lugar, refrescar neles os dados elementares da doutrina, inclusive as Constituições Dogmáticas do Concílio Vaticano II tão citadas, mas cujo conteúdo é pouco conhecido.
O dossiê está publicado na revista francesa, no número de 21 de novembro de 2015.
Na sequência, uma prévia, com títulos criados pela redação.
______
Quatro objeções, quatro respostas e uma conclusão, por Robert Sarah
1. A doutrina, vamos votá-la por maioria
Pergunta: De acordo com um dos meus objetores, a Igreja católica “não é apenas a hierarquia dos bispos, inclusive o de Roma, mas é o conjunto dos batizados. Para dizer qual é a ‘posição da Igreja’, seria legítimo assumir a opinião desta maioria?”
Resposta: A primeira afirmação está correta. Mas o pensamento dos fiéis não representa a “posição da Igreja” se o mesmo não está de acordo com o corpo dos bispos.
Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Dei Verbum, n. 10: “O ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou transmitida foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo”.
Além disso, não se trata da maioria, mas da unanimidade. Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium, n. 12: “O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1 Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo quando, ‘desde os Bispos até os últimos fiéis leigos’, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes. Por este senso da fé, excitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus – sob a direção do sagrado Magistério, a quem fielmente respeita – não já recebe a palavra de homens, mas verdadeiramente a palavra de Deus (cf. 1 Ts 2,13); apega-se indefectivelmente à fé uma vez para sempre transmitida aos santos (cf. Jd 3); e, com reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida”.
Por último, esta unanimidade é uma condição suficiente para declarar que uma asserção está no depósito revelado por Deus (como no caso da Assunção de Maria), mas não é uma condição necessária, pois pode acontecer que o magistério defina solenemente uma doutrina de fé antes que se alcance a unanimidade (como no caso da infalibilidade pontifícia, no Concílio Vaticano I).
2. A comunhão para todos, sem discriminações
Pergunta: Segundo um objetor, cuja fidelidade ao sacerdócio é admirável, milhares de padres não hesitam em dar a comunhão para todos.
Resposta: Em primeiro lugar, advirtamos a ausência de autoridade doutrinal desta miríade de ministros sagrados, em outros aspectos seguramente respeitáveis. Além disso, qualquer que seja a autenticidade desta “estatística”, esta posição mistura, entre as pessoas que vivem em estado notório e costumeiro de pecado (por exemplo, adultério e infidelidade permanente ao próprio cônjuge, roubos frequentes e graves nos negócios):
a) um fiel que finalmente se arrepende com o firme propósito de evitar cair, no futuro, recebe então a santa absolvição e, em consequência, pode aproximar-se da santa Eucaristia, e
b) o fiel que não quer cessar, no futuro, de realizar atos de uma culpabilidade objetiva grave, contradizendo a Palavra de Deus e a aliança significada precisamente pela Eucaristia.
Este último caso exclui o “firme propósito” definido pelo Concílio de Trento como necessário para ser perdoado por Deus. Precisemos que este firme propósito não consiste em saber que não se pecará mais, mas em tomar com a própria vontade a resolução de empregar os meios aptos para evitar o pecado. Sem o firme propósito (e salvo uma ignorância total não culpável), esse cristão permaneceria em um estado de pecado mortal e cometeria um pecado grave se comungasse.
Na hipótese de que seu estado é conhecido publicamente, os ministros da Igreja, por sua vez, não têm nenhum direito de lhe dar a comunhão. Se o fazem, seu pecado será mais grave diante do Senhor. Seria inequivocadamente uma cumplicidade e uma profanação premeditada do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Jesus.
3. Casada novamente e muito ativa na Paróquia. Por que ela não pode comungar?
Pergunta: Uma pessoa que me escreve e cuja idade inspira o máximo de respeito evoca o caso de uma católica, divorciada por causa de violências conjugais, que vive como “recasada”, mas participa intensamente da vida de sua paróquia. Isto não deveria nos incitar a dar a santa comunhão a esta pessoa?
Resposta: Reconheço a generosidade de coração subjacente a esta objeção, mas esta mistura ou esquece vários aspectos. São estes:
1. Se uma pessoa sofre violências conjugais, ela tem o direito de deixar o próprio cônjuge (Código de Direito Canônico, cânon 1153).
2. A Igreja permite pedir pelo divórcio os efeitos civis de uma separação legítima (João Paulo II, 21 de janeiro de 2002, discurso à Rota Romana). O simples divórcio não exclui dos sacramentos.
3. Um cônjuge que se abandona de forma habitual às violências conjugais sofre, provavelmente, de uma doença psíquica, que talvez é causa de nulidade do mencionado matrimônio desde o começo (Código de Direito Canônico, cânon 1095 & 3).
4. Se a Igreja declara a nulidade do primeiro matrimônio, a vítima poderia contrair outro, posto que as outras condições deste sacramento estão presentes.
5. Posso compreender que um divorciado, por razões importantes – por exemplo, a educação dos filhos –, não possa deixar seu segundo cônjuge. Neste caso, para poder ser absolvido e ter acesso à santa comunhão, a pessoa deve comprometer-se a não realizar mais nesta união os atos que, segundo a lei divina, estão reservados aos verdadeiros esposos (Familiaris consortio, n. 84). Pois bem, a experiência de numerosos casais mostra que se isto é com frequência muito difícil, no entanto é possível com a ajuda da graça de Deus, uma direção espiritual e a prática frequente do sacramento da reconciliação. Com efeito, esta última permite, em caso de quedas, recomeçar firmemente pelo bom caminho, progredindo gradualmente para a castidade.
6. A participação na vida paroquial de um divorciado recasado e não pronto ainda para prometer a castidade dispõe justamente a abrir o próprio coração à graça de tornar esta promessa necessária (Familiaris consortio, n. 84).
4. A família africana não é aquela que dizemos
Pergunta: De acordo com outro padre que se apóia em sua experiência de missionário Fidei donum na África, a família africana não corresponderia à minha descrição.
Resposta: Não sei de que país e diocese africana este padre está falando. Mas na África ocidental, apesar da presença massiva do Islã, na tradição pura de nossos antepassados o matrimônio é monogâmico e indissolúvel. Falo disso no meu livro Dio o niente (Deus ou nada). Nele afirmei que “até o presente a família na África permanece estável, sólida e tradicional”.
De maneira alguma quero dizer que a família africana não-cristã seria um modelo, porque ela sofre evidentemente a marca do pecado e conhece também suas dificuldades. Simplesmente queria dizer que na cultura africana em geral:
1. a família permanece fundada sobre uma união heterossexual;
2. o matrimônio é visto sem o divórcio, apesar do paradigma da poligamia simultânea;
3. está aberto à procriação;
4. os vínculos familiares são vistos como sagrados.
Não é precisamente isto que o meu interlocutor missionário quis destacar? (Destaco aqui a generosidade dos Fidei donum, ou seja, dos padres diocesanos ocidentais que voluntariamente se tornam evangelizadores em países de missão.)
No entanto, a questão que ele levanta é outra: é a da eventual progressividade gradual da pastoral da evangelização das famílias não-cristãs, ainda embebidas de desvios provocados pelo pecado. Mas algumas de suas tradições podem ser evangelizadas e servir de ponto de partida para o anúncio de Cristo.
Em todo o caso, se o meu correspondente parece me acusar implicitamente de ter reduzido “a família africana” àquela que vive o ideal cristão, também não se pode reduzi-la em sentido inverso à tipologia poligâmica, seja de religião “tradicional” ou muçulmana.
Conclusão. O magistério da Igreja, este terreno desconhecido
Para concluir, sinto-me ferido em meu coração de bispo ao constatar tamanha incompreensão do ensino definitivo da Igreja por parte de irmãos padres.
Não posso me permitir imaginar como causa de tanta confusão senão a insuficiência da formação de meus irmãos. E enquanto responsável para toda a Igreja latina da disciplina dos sacramentos, sou obrigado em consciência a recordar que Cristo restabeleceu o desígnio originário do Criador de um matrimônio monogâmico, indissolúvel, ordenado para o bem dos esposos, como também para a geração e a educação dos filhos. Ele elevou, além disso, o matrimônio entre os batizados à categoria de sacramento, significando a aliança de Deus com o seu povo, assim como a Eucaristia.
Apesar disso, existe também um matrimônio que a Igreja chama de “legítimo”. A dimensão sagrada deste matrimônio “natural” constitui um elemento de espera do sacramento, na condição de que respeite a heterossexualidade e a paridade dos dois esposos quanto aos seus direitos e deveres específicos, e que o consenso não exclua a monogamia, a indissolubilidade, a perpetuidade e a abertura à vida.
Ao contrário, a Igreja estigmatiza as deformações introduzidas no amor humano: a homossexualidade, a poligamia, o machismo, a união livre, o divórcio, a anticoncepção, etc. Em todo o caso, ela jamais condena as pessoas, mas não as deixa em seu pecado. Assim como seu Mestre, tem a coragem e a caridade de lhe dizer: vai e não peques mais.
A Igreja não apenas acolhe com misericórdia, respeito e delicadeza. Convida firmemente à conversão. Seguindo seus passos, promove a misericórdia para com os pecadores – todos somos pecadores –, mas também a firmeza diante dos pecados incompatíveis com o amor a Deus, professada com a comunhão sacramental. Não é isto imitar a atitude do Filho de Deus, que se dirige à mulher adúltera: “Também eu não te condeno. Vai e não peques mais” (Jo 8,11)?
________
Sobre o livro Deus ou nada e sobre o seu autor:
A “resenha” do livro feita pelo Papa emérito Bento XVI, em uma carta dirigida ao cardeal Sarah:
“Li Dieu ou rien com grande proveito espiritual, alegria e gratidão. Seu testemunho sobre a Igreja na África, sobre o seu sofrimento durante a época do marxismo e sobre uma vida espiritual dinâmica, tem grande importância para a Igreja, que está um pouco espiritualmente cansada no Ocidente. Tudo o que você escreveu no que se refere à centralidade de Deus, à celebração da liturgia e à vida moral dos cristãos é particularmente relevante e profundo. Sua corajosa resposta aos problemas da teoria de gênero esclarece, em um mundo obscurecido, uma questão antropológica fundamental”.
Sarah também foi um dos 11 cardeais que às vésperas do Sínodo de outubro passado, pronunciou-se em defesa da doutrina e da pastoral tradicionais do matrimônio em um livro editado em cinco idiomas: em inglês pela Ignatius Press, em italiano pela Cantagalli, em francês pela Artège, em alemão pela Herder e em espanhol pelas Ediciones Cristiandad.
E foi também um dos 11 bispos africanos, entre os quais estavam sete cardeais, que também às vésperas do Sínodo reclamaram a atenção sobre a contribuição da África na atual etapa da Igreja, em um livro editado em inglês pela Ignatius Press e em italiano pela Cantagalli.
Sarah foi, além disso, um dos 13 cardeais que, no começo do Sínodo, manifestaram ao Papa Francisco suas “preocupações” em uma carta entregue pessoalmente a ele.
Posteriormente, ele foi um dos 12 padres sinodais escolhidos para representá-los no conselho de cardeais e bispos que permanecerão no cargo até o próximo sínodo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sínodo supervalorizado. Na Igreja existe sobretudo uma crise de fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU