23 Outubro 2015
A palavra gender divide. Há palavras que, por força de serem empunhadas como cassetetes, levantadas como bandeiras, acabam se tornando, elas mesmas, instrumentos de agressão, contundentes, até mesmo irritantes. Assim como muitas palavras estrangeiras, fagocitadas por um idioma outro, que as assimila sem compreendê-las e as utiliza sem explicá-las, elas também exalam uma aura de autoridade e, ao mesmo tempo, de mistério, que justifica o seu uso indevido.
O comentário é da escritora italiana Melania Mazzucco, publicado no jornal La Repubblica, 20-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hoje, pode acontecer que, durante uma discussão pública sobre a escola, um pai cale um docente agitando uma folha em que está escrito "No Gender". Como nas manifestações em que, nobremente, se protesta contra as chagas que ameaçam a humanidade: não à guerra, à pena de morte, ao racismo. A peremptoriedade da rejeição de algo que não se saberia (nem se pretenderia) definir impede o início de qualquer diálogo. Mas de que estamos falando?
O debate que nos últimos três anos eclodiu em torno do gender na Itália (mas também, em forma semelhantes, na França) vai se tornar objeto de estudos de sociologia da comunicação e psicologia das massas. Refletiu-se pouco sobre isso até agora, talvez por subestimação – ou porque não fomos capazes de compreender qual era o objeto da contenda, nem que dizia respeito a todos, não só aos homossexuais.
Qualquer pessoa interessada na circulação e na manipulação das ideias não pode deixar de se assombrar e se assustar com a mistificação perfeita que se enredou em torno dessa palavra, até envolvê-la em uma névoa mefítica. E até ocultar o verdadeiro alvo: a batalha cultural, mas também política e legislativa, para "lutar contra as discriminações que sofre aqueles que – mulher, homossexual, trans – são considerados inferiores só por causa do seu sexo, da sua orientação sexual ou da sua identidade de gênero".
O último livro de Michela Marzano, Papà, mamma e gender, publicado pela editora Utet, nos explica como, quando e por que pôde acontecer que uma concepção antropológica sobre a formação da identidade (sexual, psíquica, social) das pessoas abriu uma "rachadura", uma "fratura muito profunda" na Itália e desencadeou campanhas de propaganda, informação e desinformação jamais vistas há décadas. Até transformar o gender em um monstro, um fantasma ao qual qualquer um pode atribuir - em boa mas também em má-fé – o negativo das próprias ideias, da própria concepção da existência, e despejar sobre ele preconceitos, fobias e medos que se agitam profundamente dentro de cada um de nós.
Recordando com Camus que "nomear corretamente as coisas é um modo para tentar diminuir o sofrimento e a desordem que existem no mundo". Marzano atribui ao livro, acima de tudo, esse objetivo "didático" (o livro é acompanhado de um glossário). Portanto, gender é um termo inglês, cuja tradução italiana é simplesmente "gênero". Ele entrou na língua original no sistema da cultura universitária, porque delineava um campo de estudos novo (gender studies) e, por isso, necessitado de um nome próprio. Mas, depois, acabou resumindo o conjunto das teorias sobre o gênero – extinguindo todas as diferenças e nuances, até mesmo significativas.
Papà, mamma e gender é um livro fino, fácil de ler, uma bússola útil para se orientar no magma atormentado de intervenções, argumentações, polêmicas, muitas das quais estão vão à deriva nas ondas da web. À confusão semântica e conceitual do debate – que mistura sexo, identidade de gênero e orientação sexual – Marzano opõe explicações essenciais ("o ABC") que podiam ser consideradas óbvias, mas que se descobriu que são necessárias.
Memorize-se, por exemplo, esta: "Quando se fala de sexo, referimo-nos ao conjunto das características físicas, biológicas, cromossômicas e genéticas que distinguem os machos das fêmeas. Quando se fala de 'gênero', ao contrário, faz-se referência ao processo de construção social e cultural com base em características e em comportamentos, implícitos ou explícitos, associados aos homens e às mulheres, que acabam muito frequentemente definindo o que é apropriado ou não para um macho ou para uma fêmea".
Ao mesmo tempo, é um livro de história cultural e de crônica contemporânea, em que as reflexões sobre a distinção entre identidade e igualdade, entre diferença e diferencialismo, colocam-se ao lado da análise do léxico de um abaixo-assinado apresentado ao Senado italiano para apoiar "uma sã educação que respeite o papel da família", e em que as palavras de Aristóteles, Bobbio e Calvino são avaliadas como as de uma propaganda contra a perniciosa "ideologia de gênero".
É um livro de filosofia e autofilosofia (se eu posso pedir emprestado esse termo da narrativa): porque a autora não esconde as suas dúvidas (e a crítica contra a corrente radical do pensamento gender) e reivindica a honestidade intelectual de dizer como e por que ela chegou a acreditar em certas coisas em vez de outras.
A experiência pessoal – quem somos, como nos tornamos o que somos – influencia e sempre direciona o nosso modo de estar no mundo. "O pensamento não pode vir senão do evento, daquilo que nos atravessa e nos abala, daquilo que nos interroga e nos força a pôr tudo em discussão."
Os essencialistas colam em quem não reconhece o dualismo entre Bem e Mal o rótulo de relativista ético. Mas a ética não é relativa. Ele só deveria ser transitiva. Como Marzano, muitas vezes eu me perguntei como é possível temer que o reconhecimento a outros dos direitos de que gozam os demais (aos casais homossexuais de se casarem ou de ter e criar filhos) seja prejudicial para estes. De que modo o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo pode diminuir o casamento de um homem e de uma mulher, como uma família diferente pode enfraquecer as famílias chamadas de iguais. Eu não sei responder para mim mesma.
Mas me vem à mente o final visionário de O caminho faminto, o romance que o escritor nigeriano Ben Okri dedicou à sua jovem nação, atormentada pelo ódio, dividida pelos conflitos e incapaz de nascer. "Não é da morte que os homens têm medo, mas do amor (…) Podemos sonhar com o mundo desde o início e realizar esse sonho. Um sonho pode ser o ponto mais alto de uma vida inteira." Mas precisamos de "uma nova linguagem para falar disso".
Pois bem, talvez precisemos de uma nova palavra. Deixemos o gender para as revoluções antropológicas do século XX: o resgate dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos homossexuais. As revoluções são irreversíveis, no sentido de que podem ser derrotadas, mas não revogadas, e os princípios que as acendem não declinam. Encontremos outra palavra para "sonhar o mundo desde o início".
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"Gender", o engano perfeito em torno do gênero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU