22 Outubro 2015
O vínculo matrimonial deve ser "pensado" e "compreendido" com outras categorias. Caso contrário, ele é reduzido a uma abstração jurídica, que salva a alma aos cardeais, mas conduz a Igreja rumo a uma irremediável hipocrisia.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 19-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No jornal Il Foglio do dia 16 de outubro, lia-se este título: "Cardeal Ouellet: 'Se o vínculo existe, não se pode fazer nada. Não se pode, sem tocar a doutrina, propor um acesso aos sacramentos'".
Folheando, depois, o artigo de Matteo Matzuzzi, encontravam-se estas declarações do cardeal:
"Se o matrimônio é nulo, deve-se esclarecer através dos procedimentos judiciários; caso contrário, se o vínculo conjugal e sacramental indissolúvel existe, ali não podemos – sem mudar a doutrina – propor um acesso aos sacramentos, porque é um ponto doutrinal."
Certamente, assinalou o purpurado canadense, "é preciso conduzir um diálogo para escutar bem a sua história, verificar realmente a sacramentalidade do vínculo". Ouellet (foto) também disse que "a posição da Familiaris consortio é a doutrina tradicional da Igreja, que foi confirmada por São João Paulo II e também pelo Papa Bento XVI", e "quando nos referimos à doutrina, nos referimos a isto: esta é a norma que nos permite construir e buscar uma pastoral, isto é, ir ao encontro das pessoas que se encontram nessas situações e oferecer-lhes uma reconciliação".
Aqui fica evidente como Ouellet identifica de modo forçado e desviante a "doutrina" com a "disciplina". De fato, onde está escrito que são os "procedimentos judiciários" o único órgão capaz de julgar sobre a existência e sobre a questão do "vínculo" entre marido e mulher? Em que mundo de cabeça para baixo toda a história das consciências, das alegrias e das dores de homens e mulheres deve ser remetida simplesmente a um "processo judicial", que deveria julgar não sobre uma história de graça e de pecado, mas uma presença original do vínculo, a fim de salvaguardar a "doutrina da Igreja"?
Esse estranho modo de reduzir a teologia dogmática e a moral ao direito canônico, talvez, deve ser repetido quase ex officio – e como um disco riscado e destoado – pelos Oficiais de Cúria?
Se essa é a premissa, é evidente que os erros em jogo são três:
Esse não é o raciocínio de uma Igreja que quer ser verdadeiramente "católica" e "universal"; assim raciocina uma seita fundamentalista, incapaz de ler a realidade por causa das categorias anacrônicas e inadequadas que tem em mente. E que parece preocupada não com o bem dos fiéis, mas em perder o poder sobre eles.
Faço apenas duas observações.
Fala-se do vínculo como se fosse uma "coisa": "se existe, então não se pode fazer nada". Mas o que existe ou não existe? Por que a Igreja deveria renunciar à própria autoridade justamente no momento em que pode mediar exatamente entre presença e ausência do vínculo? Entre Deus e homem, não há o abismo, mas há Cristo, a Igreja e há os sacramentos.
Mas também devemos nos perguntar: um vínculo pode existir independentemente da história e da consciência dos cônjuges? Quando, no mundo em que habitamos hoje, podemos fazer tal afirmação sem corar? Qual operação autoritária e desumana essas categorias escondem, que nasceram para servir a liberdade e agora servem o arbítrio?
Obviamente, o cardeal Ouellet sabe bem que, assim, aquela que ele chama de doutrina pode não se sustentar à prova da história. E, então, ele acrescenta às categorias superadas um gesto de boa vontade para com os cônjuges em crise: é preciso "escutar a sua história". Mas que história se pode contar? De que história estamos falando?
Como uma "analítica dos inícios" pode se sustentar diante da história e da consciência que, "depois", os sujeitos envolvidos elaboraram do vínculo? Como Ouellet pode se esquecer de que aquilo que, para a Idade Média e para a primeira modernidade, podia ser "irrelevante" hoje se tornou "decisivo"? A que século ele está se dirigindo?
Tudo isso serve para uma declaração de "impotência" do cardeal. Não podemos fazer nada. Eu acredito que esse "non possumus" é o fruto de uma leitura distorcida da tradição e de uma grave imunização do presente.
Nessa declaração de "não poder", está uma forma arbitrária de poder. O vínculo deve ser "pensado" e "compreendido" com outras categorias. Caso contrário, ele é reduzido a uma abstração jurídica, que salva a alma aos cardeais, mas conduz a Igreja rumo a uma irremediável hipocrisia.
E, é preciso reconhecer, depois de ler essas declarações infelizes, logo vem a nostalgia daquele menino audaz, que partiu a partícula no dia da sua Primeira Comunhão: quanta sabedoria pastoral, quanta profecia, quanto bom senso poderia nos ensinar esse pequeno "padre da Igreja"!
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Pensar o vínculo, escutar as histórias, respeitar as consciências. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU