19 Outubro 2015
Enquanto ocorre em Roma uma cúpula mundial de bispos sobre as evoluções familiares, o teólogo francês André Paul afirma que a própria noção de família cristã é uma ficção. Ao contrário do casamento, ela não teria fundamentos históricos nem teológicos.
A reportagem é de Bernadette Sauvaget, publicada no jornal Libération, 04-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Iconoclasta, um pouco dândi, André Paul, aos seus 80 anos, conservou a energia de se indignar, o frescor do pensamento que lhe permite lavrar caminhos cheios de armadilhas na Igreja Católica, nomeadamente os relativos à ética sexual e familiar.
Nascido em abril de 1933, André Paul é historiador, teólogo, exegeta e biblista francês, estudioso do judaísmo antigo e rabínico. É doutor em teologia e em línguas semíticas (hebraico, etiópica, siríaca, aramaico).
Especialista nos primeiros séculos do cristianismo, ele publicou no ano passado um livro apaixonante, intitulado Eros enchaîné, les chrétiens, la famille, le genre [Eros acorrentado, os cristãos, a família e o gênero] (Ed. Albin Michel) que traça a história do contencioso do cristianismo com a sexualidade, a sua forma de responder aos católicos indignados com a aprovação da lei sobre o casamento para todos.
Em setembro, André Paul reincidiu com um provocativo La "famille chrétienne" n’existe pas. L’Eglise au défi de la société réelle [A "família cristã" não existe. A Igreja diante da sociedade real], pela mesma editora, uma forma de colocar o seu grão de areia em um debate muito acalorado e atual.
Em Roma ocorre uma cúpula mundial de bispos e de cardeais convocados para refletir sobre as evoluções eventuais da doutrina católica sobre essas questões. Favorável a uma abertura, o Papa Francisco coagulou contra ele os ambientes conservadores e vários cardeais muito influentes.
Eis a entrevista.
Por que você diz que a "família cristã" não existe?
Porque há uma ruptura radical, tanto na forma quanto no pano de fundo, entre os textos da Igreja Católica e a realidade. De fato, eu não vejo uma "família cristã" qualquer. Os papas sucessivos e os cardeais, sobretudo, retrataram uma família e uma sociedade como eles queriam que fossem. Hoje, os sociólogos descrevem uma sociedade onde a situação de "descasamento" predomina largamente. Cada é um livre para se casar, quando e como quiser, e também para não se casar... Não é mais uma obrigação social. Se o indivíduo não se casa, ele pode optar por uma ou outra forma de convivência, inclusive com uma pessoa do mesmo sexo. A Igreja se obstina a manter um modelo de família obsoleta, como uma prótese ideológica, ou, em outras palavras, como uma ficção.
Mas essa família cristã nunca existiu na história?
Eu acho que não. Na história, houve a "gestão" de uma entidade humana e social em torno da filiação, com ramificações horizontais e verticais que foi chamada de "família". Mas uma entidade teorizada e estruturada, canonizada como a Igreja diz, não se pode dizer que tenha existido. As situações se tornaram, sim, pouco a pouco, normativas. Na Igreja, as regras do casamento cristãos foram fixadas progressivamente. Na origem, os cristãos se alinhavam de acordo com a sociedade romana e as suas regras matrimoniais. Pouco a pouco, essa cerimônia adquiriu um toque cristão.
Mas é preciso esperar até o ano 1000 para que realmente exista um matrimônio cristão. E é somente no século XIII que ele se torna um sacramento. Devemos esperar ainda pelo Concílio de Trento, no século XVI, para que fosse definida dogmaticamente (de modo irreversível, portanto) a indissolubilidade do matrimônio cristão. Mas não se fala de família. A partir de 1930, com Pio XI, deixou-se de codificar o uso do sexo no casal exclusivamente finalizado à procriação. Mas o primeiro papa a publicar um texto sobre a família foi João Paulo II, em 1981, com a sua exortação apostólica Familiaris consortio. Mas, lá novamente, a preocupação de controlar o sexo supera muito uma verdadeira problemática familiar.
De onde vem a concepção repressiva do sexo no cristianismo?
É uma história muito antiga. Originalmente, ela remonta a uma má interpretação dos Evangelhos por Clemente de Alexandria, no fim do século II. Esse Padre da Igreja foi o primeiro a conceber e escrever um código moral cristão, "O Pedagogo". O texto, que contém um capítulo sobre a sexualidade, estava destinado à educação dos jovens. Clemente de Alexandria não escreveu nele coisas muito evangélicas! Por exemplo, na sua visão, em um casal, quando o homem leva a sua esposa ao orgasmo, se diz que é como se ele a tratasse da mesma forma que as cortesãs ou as prostitutas.
De quem ele é herdeiro?
De uma cultura greco-judaica. Clemente foi educado na escola platônica de Alexandria e ficou muito marcado pelas obras de Filo de Alexandria, um contemporâneo de Jesus que tem uma teoria muito repressiva sobre o sexo. Ele serviu de canal entre as escolas pitagóricas e os Padres da Igreja, para afirmar que o sexo não foi criado senão para a reprodução, o que chamamos hoje de procriacionismo.
O procriacionismo é o núcleo duro do pensamento católico sobre o casal e a família?
Totalmente. No século XVI, aquela que foi chamada de escola francesa da espiritualidade se inscreveu nessa linha. Inspirando-se em Plínio, o Velho, o grande Francisco de Sales dizia que o modelo do casal cristão são os elefantes, porque eles se reencontram a cada dois anos para copular a fim de perpetuar a espécie... Ele achava isso maravilhoso!
Ao longo dos séculos, o clero católico foi formado em uma mentalidade misógina. É preciso esperar até Pio XII, na segunda metade do século XX, para que a Igreja admita que não é pecado se o casal tem relações fora dos períodos de fertilidade da mulher. O Papa Pio XII finalmente concedeu, mas depois de alguma hesitação. Desde a Antiguidade até João Paulo II, os textos da Igreja Católica se inscrevem nesse veio. É no Catecismo da Igreja Católica, elaborado em Roma sob o controle de Ratzinger (o futuro Bento XVI) e endossado por João Paulo II, nos anos 1990, que encontramos os textos mais repressivos sobre a sexualidade. Esse catecismo contém propostas homofóbicas que poderiam – estou convencido disso – colidir com a lei!
Na visão católica tradicional, a família é a censura do eros?
Exatamente. E eu pleiteio uma reabilitação da dimensão erótica no cristianismo, para que a Igreja tente elaborar uma doutrina do hedonismo. A Igreja Católica deve declarar, de uma vez por todas, que o pecado não está ligado ao sexo.
E é por isso que você diz que essa família cristã não existe?
Sim, eu repito: a família cristã é uma ficção, porque os textos da Igreja Católica negam a sua base fisiológica e a sua base antropológica, isto é, o ato conjugal e o prazer físico do amor.
A Manif pour tous se inscrevia na tradição católica do procriacionismo?
Não exatamente. Certamente, é uma cruzada, mas uma cruzada que não é exclusivamente católica. A Manif pour tous é antes o sinal de um pânico interior profundo. Essas pessoas se sentiram ameaçadas nas suas regras de vida tranquilizantes, na sua sociabilidade burguesa muito ritual, em um código de vida em que a religião encontra o seu lugar.
O Papa Francisco vai evoluir a Igreja Católica sobre essa questão da família?
Eu sou bastante pessimista. A renúncia de Bento XVI em fevereiro de 2013 foi um ato corajoso e interessante, abrindo perspectivas. Os conservadores não são sempre aqueles que nós acreditamos que sejam. Ao renunciar, Bento XVI deu uma lição a muitos bispos. Em 1978, a eleição de João Paulo II tinha suscitado grandes esperanças. Karol Wojtyla foi o grande libertador, próximo dos jovens, mas, no fim, foi um papa muito conservador, que acobertou os crimes de pedofilia, principalmente no caso dos Legionários de Cristo.
O Papa Francisco tem uma personalidade sedutora e simpática, mas, sobre essa questão da família, eu não acho que ele vai mudar as coisas ou que vai ir muito longe. Eu vejo isso na sua maneira de se referir à encíclica de Paulo VI Humanae vitae, que, em 1968, condenou o uso da contracepção. Quanto ao aborto, nem se fala. Ele o condena cada vez mais firmemente.
O Papa Francisco também tem que enfrentar o bastião romano [a Cúria, o governo da Igreja], que tem mil anos de existência por atrás. Os seus opositores ainda têm muito poder lá. O Papa Francisco tem propostas interessantes e admiráveis sobre a ecologia, a justiça social ou a guerra. Mas, no âmbito da doutrina da Igreja, será que ele vai poder ou vai se atraver a fazer qualquer coisa?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"A família cristã não existe." Entrevista com André Paul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU