14 Outubro 2015
É revelador que o próprio papa tenha tido que falar diante do Sínodo contra uma "hermenêutica conspirativa". O fato é que alguns jornalistas e blogueiros católicos têm escrito sobre conspirações no Sínodo desde outubro de 2014. Esses militantes de uma versão particularmente ideológica do catolicismo acreditam que a sua compreensão da indissolubilidade do matrimônio precisa de ser defendida usando a ameaça da solubilidade da Igreja.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio Global Pulse, 12-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Se os debates em Roma nesses últimos dias nos dizem alguma coisa é que o Sínodo dos bispos é o momento privilegiado para ver aonde o Papa Francisco está tentando levar a Igreja.
A assembleia ordinária do Sínodo completou apenas a primeira das suas três semanas de reuniões, mas é claro que ela é tudo menos "ordinária" – não no sentido de que vai decidir mudanças espetaculares em textos fundamentais da Igreja Católica, mas no sentido de que a distinção entre sínodos ordinários/extraordinários/especiais provavelmente seja algo do passado ou algo que vai ser bem diferente no futuro.
O que está acontecendo é uma redefinição do instrumento do Sínodo. Os detalhes deste novo Sínodo ainda não estão claros, mas já é significativamente diferente dos sínodos do passado recente.
Desde a sua criação por Paulo VI em setembro de 1965, a natureza dessa instituição sempre foi de assessoria e consultiva; isto é, um instrumento do primado papal, não da colegialidade episcopal.
Isso ainda não mudou. Mas, ao longo dos anos, muitas outras coisas mudaram.
Por exemplo, houve diferentes tipos de sínodos (com foco em um assunto particular ou em uma região particular do mundo). E os vários papas se basearam no seu conselho em vários graus (Paulo VI muito mais do que João Paulo II e Bento XVI). Os sínodos também produziram diversos tipos de documentos (depois do primeiro, em 1967, o papa não emitia uma "exortação apostólica pós-sinodal"; isso só se tornou habitual a partir de 1975).
Em uma mensagem de abril de 2014 ao cardeal Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do Sínodo dos bispos, o Papa Francisco falou do Sínodo como uma instituição em termos de "colegialidade afetiva e efetiva". Acrescentar o adjectivo "efetiva" foi significativo, porque o Sínodo só tinha sido considerado como um âmbito de "colegialidade afetiva"; isto é, o apoio moral de que os bispos ofereceram ao papa.
As instituições de governo eclesiástico mudaram, às vezes dramaticamente, durante a história da Igreja. Concílios ecumênicos (ou gerais), o momento mais alto e mais importante de consulta na história da tradição católica, também mudaram desde o primeiro realizado no ano 325 em Niceia.
A autoridade responsável por convocar um concílio (nem sempre o bispo de Roma!), a sua pauta, os seus membros (participantes com e sem direito a voto, auditores, convidados e observadores), seus documentos aprovados e a sua relação com o papa, tudo mudou ao longo dos séculos. O Vaticano II (1962-1965) foi diferente do Vaticano I (1869-1870), assim como o Vaticano I foi diferente do Concílio de Trento (1545-1563), e assim por diante.
Agora, com Francisco (e de acordo com o que foi relatado a partir da primeira semana de discussões sinodais), é possível que teremos sínodos dos bispos mais frequentes e mais abertos para as vozes das Igrejas locais (possivelmente com sínodos em nível continental ). O mais importante é que o Sínodo de Francisco já é muito mais independente do que no passado em relação à Cúria Romana, que não desempenha quase nenhum papel e não só no pontificado de Francisco.
Qualquer pessoa que conheça até mesmo uma ínfima parte da história dos sínodos e do estado da Igreja nos últimos 30 anos também está ciente de que muitos defenderam essas mudanças (e outras) do sínodo. Em uma virada que é típica do pontificado do Papa Francisco, o Sínodo de 2015 tornou-se também um debate sobre a utilidade do próprio instrumento: fingir movimentos é exatamente o oposto da ideia de "discernimento" que Francisco tem em mente para Sínodo e a Igreja em geral.
Essas mudanças não deveriam ser chocantes. Mas elas o são para aqueles que sentem que a liderança da Igreja hoje não pode ser confiável – ou seja, que o Papa Francisco está manipulando as regras do jogo a fim de obter um determinado resultado, um documento final com uma agenda especial que ele goste.
É interessante que aqueles que levantam essa acusação contra Francisco, e os bispos e cardeais que ele designou para dirigir o Sínodo, não estão revoltados com outras tentativas evidentes de limitar a liberdade dos membros do sínodo. Por exemplo, a Conferência Episcopal da Polônia violou as regras e publicou os resumos das intervenções de outros membros na internet (a página foi tirada do ar). Os bispos poloneses também enviaram por e-mail a todos os membros textos indicando uma particular posição em defesa da doutrina (como se os outros estivessem no Sínodo para destruí-la).
O prefeito da Congregação para os Bispos, o cardeal canadense Marc Ouellet, escreveu aos membros do Sínodo, alguns dias antes do início da assembleia atual, para lembrá-los do ensinamento da Igreja sobre o acesso à comunhão para os divorciados recasados "em resposta ao Sínodo extraordinário de outubro 2014, n. 53, que pediu mais estudos teológicos sobre o tema".
Os defensores do status quo claramente montaram uma forte resistência ao Papa Francisco, não apenas sobre as discussões que ele abriu sobre questões teológicas, mas também em torno dos procedimentos do Sínodo que ele implementou.
Então, o que aconteceu com a Igreja que, há apenas alguns anos, era um monumento ao papalismo? Para onde foram todos os ultramontanistas do século XX? Não é só que há um novo papa que vem de uma tradição católica que é claramente anti-ideológica e antissectária (a ideia de "pueblo").
Entre as muitas diferenças entre a Igreja de apenas uma geração atrás e a de hoje, há um conceito de unidade da Igreja que é muito diferente, uma "eclesiologia prática" diferente. Na segunda metade do período pós-conciliar (que eu acredito que começa na metade do pontificado de João Paulo II e culmina com Bento XVI) tivemos sintomas claros de uma ideologização sectária do catolicismo, especialmente no catolicismo de língua inglesa.
É revelador que o próprio papa tenha tido que falar diante do Sínodo contra uma "hermenêutica conspirativa". O fato é que alguns jornalistas e blogueiros católicos – aqueles que são contra qualquer mudança na prática pastoral da Igreja que lide com as novas questões sociais e morais – têm escrito sobre conspirações no Sínodo desde outubro de 2014.
O paradoxo é que a ênfase deles na indissolubilidade do matrimônio (que ninguém, especialmente o Papa Francisco, jamais colocou em dúvida) é acompanhada por uma abordagem muito descuidada da questão da unidade da Igreja. Esses militantes de uma versão particularmente ideológica do catolicismo acreditam que a sua compreensão da indissolubilidade do matrimônio precisa de ser defendida usando a ameaça da solubilidade da Igreja.
Em alguns âmbitos (que em alguns casos – infelizmente – também inclui teólogos católicos com cátedras de ensino em prestigiadas instituições católicas), há uma disposição sem precedentes de falar sobre o papa como um herege ou como um amigo dos hereges. Alguns deles dizem ver um cisma no horizonte. Mas, na realidade, parece que eles realmente esperam que o cisma aconteça.
A ameaça de um cisma uma vez era um grande tabu na Igreja Católica, uma espécie de arma do fim do mundo.
Mas não mais. Ao menos não para alguns católicos.
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Sínodo, o "documento de trabalho" do pontificado de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU