28 Setembro 2015
"As nossas tradições religiosas lembram-nos que, enquanto seres humanos, somos chamados a reconhecer o Outro que revela a nossa identidade relacional contra qualquer tentativa de instaurar «uma uniformidade que o egoísmo do forte, o conformismo do fraco, ou ainda a ideologia do utopista poderia procurar impor-nos», afirmou Papa Francisco, citando Michel de Certeau, ao discursar no Independence Mall, em Filadélfia.
E saudando os imigrantes hispânicos afirmou:
"Muitos de vós são imigrantes neste país, pagando pessoalmente um alto preço, mas com a esperança de construir uma nova vida. Não desanimeis com os desafios e as dificuldades que tendes de enfrentar, sejam eles quais forem. Peço para não vos esquecerdes que, tal como aqueles que vieram antes de vós, trazeis muitos talentos à vossa nova nação"
E continuou:
"Não vos envergonheis das vossas tradições. Não esqueçais as lições que aprendestes dos vossos antepassados e que podem enriquecer a vida deste país americano. Repito: não vos envergonheis daquilo que faz parte de vós, o sangue da vossa vida. Também vós sois chamados a ser cidadãos responsáveis e a contribuir frutuosamente para a vida das comunidades onde viveis. Penso de modo particular na fé fervorosa de muitos de vós, no sentido profundo da vida familiar e em todos os outros valores que recebeste sem herança".
Eis o discurso.
Queridos amigos!
Um dos momentos salientes da minha visita tem lugar aqui, diante do Independence Mall, local do nascimento dos Estados Unidos da América. Neste lugar, foram proclamadas pela primeira vez as liberdades que definem este País. A Declaração de Independência afirmou que todos os homens e todas as mulheres são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de alguns direitos inalienáveis e que os governos existem para proteger e defender tais direitos. Estas vibrantes palavras continuam a inspirar-nos hoje, tal como inspiraram outros povos em todo o mundo, no combate pela liberdade de viver de acordo com a sua dignidade.
Mas a história mostra também que esta verdade, como aliás qualquer verdade, deve ser constantemente reafirmada, assumida e defendida. A história desta nação é também a história dum esforço constante, até aos nossos dias, para encarnar estes altos princípios na vida social e política.
Recordamos as grandes lutas que levaram à abolição da escravatura, à extensão do direito de voto, ao crescimento do movimento operário, e ao esforço progressivo por eliminar todas as formas de racismo e preconceito contra as sucessivas ondas de novos americanos. Isto demonstra que um País, quando está determinado a permanecer fiel aos seus princípios fundadores que se baseiam no respeito pela dignidade humana, torna-se mais forte e renova-se.
Todos beneficiamos quando se faz memória do nosso passado. Um povo que recorda não repete os erros do passado; pelo contrário, olha confiante para os desafios do presente e do futuro. A memória salva a alma dum povo de tudo aquilo ou de todos aqueles que poderiam tentar dominá-lo ou utilizá-lo para os seus interesses. Quando o exercício efectivo dos respectivos direitos é garantido aos indivíduos e às comunidades, estes não apenas se sentem livres para realizar as suas potencialidades mas contribuem para o bem-estar e enriquecimento da sociedade.
Neste lugar, que é um símbolo do espírito americano, quereria reflectir convosco sobre o direito à liberdade religiosa. É um direito fundamental que plasma o modo como interagimos social e pessoalmente com nossos vizinhos, cujos pontos de vista religiosos são diferentes dos nossos.
A liberdade religiosa implica certamente o direito de adorar a Deus, individual e comunitariamente, como a nossa consciência dita. Mas, por outro lado, a liberdade religiosa transcende, por sua natureza, os lugares de culto, bem como a esfera dos indivíduos e das famílias.
As nossas diferentes tradições religiosas servem a sociedade, primariamente através da mensagem que proclamam. Convidam os indivíduos e as comunidades a adorar a Deus, fonte de cada vida, da liberdade e da bondade. Lembram-nos a dimensão transcendente da existência humana e a nossa liberdade irredutível contra qualquer pretensão de poder absoluto.
Basta lançar um olhar à história, especialmente à do século passado, para ver as atrocidades perpetradas pelos sistemas que pretenderam construir este ou aquele «paraíso terrestre» dominando os povos, subjugando-os com princípios aparentemente indiscutíveis e negando-lhes qualquer tipo de direito. As nossas ricas tradições religiosas procuram oferecer significado e orientação, «possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 256). Chamam à conversão, à reconciliação, ao compromisso em prol do futuro da sociedade, ao sacrifício de si mesmo no serviço do bem comum, e à compaixão por aqueles passam necessidade. No coração da sua missão espiritual, encontra-se a proclamação da verdade e da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos humanos.
As nossas tradições religiosas lembram-nos que, enquanto seres humanos, somos chamados a reconhecer o Outro que revela a nossa identidade relacional contra qualquer tentativa de instaurar «uma uniformidade que o egoísmo do forte, o conformismo do fraco, ou ainda a ideologia do utopista poderia procurar impor-nos» (M. de Certeau).
Num mundo onde as diferentes formas de moderna tirania procuram suprimir a liberdade religiosa, ou reduzi-la a uma subcultura sem direito de expressão na esfera pública, ou ainda usar a religião como pretexto para o ódio e a brutalidade, torna-se forçoso que os seguidores das diferentes religiões unam a sua voz para invocar a paz, a tolerância, o respeito pela dignidade e os direitos dos outros.
Vivemos num mundo sujeito «à globalização do paradigma tecnocrático» (Enc. Laudato si’, 106), que visa conscientemente uma uniformidade unidimensional e procura eliminar todas as diferenças e as tradições numa busca superficial de unidade. As religiões têm, portanto, o direito e o dever de fazer compreender que é possível construir uma sociedade onde «um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valores como tais» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 255), é um «precioso aliado no compromisso pela defesa da dignidade humana, (...) um caminho de paz para o nosso mundo ferido» (ibid., 257).
Os Quakers, que fundaram Filadélfia, viviam inspirados por um profundo sentido evangélico da dignidade de cada pessoa e pelo ideal duma comunidade unida pelo amor fraterno. Tal convicção levou-os a fundar uma colónia que haveria de ser um paraíso de liberdade religiosa e tolerância. Este significado de compromisso fraterno em prol da dignidade de todos, especialmente dos mais fracos e vulneráveis, tornou-se parte essencial do espírito americano. Durante a sua visita aos Estados Unidos em 1987, São João Paulo II prestou-vos um comovente tributo, lembrando a todos os americanos que «a prova decisiva da vossa grandeza é o modo como tratais cada ser humano, mas de maneira especial os mais fracos e os mais indefesos» (Discurso na cerimônia de despedida no Aeroporto de Detroit, 19 de Setembro de 1987, 3).
Aproveito agora a ocasião para agradecer a todos aqueles que procuraram, qualquer que seja a sua religião, servir o Deus da paz construindo cidades animadas pelo amor fraterno, cuidando do próximo em necessidade, defendendo a dignidade do dom divino da vida em todas as sua fases, defendendo a causa dos pobres e dos imigrantes. Com muita frequência, aqueles que precisam da nossa ajuda são incapazes de se fazer ouvir. Vós sois a sua voz, e muitos dentre vós permitiram lealmente que o seu grito fosse ouvido. Com este testemunho, que muitas vezes encontra forte resistência, recordais à democracia americana os ideais para que foi fundada, e que a sociedade debilita-se sempre e em toda a parte onde prevalece a injustiça.
No nosso meio, temos hoje membros da grande população hispânica da América, bem como representantes de imigrantes recentes nos Estados Unidos. A todos saúdo com particular afeto!
Muitos de vós são imigrantes neste país, pagando pessoalmente um alto preço, mas com a esperança de construir uma nova vida. Não desanimeis com os desafios e as dificuldades que tendes de enfrentar, sejam eles quais forem. Peço para não vos esquecerdes que, tal como aqueles que vieram antes de vós, trazeis muitos talentos à vossa nova nação.
Não vos envergonheis das vossas tradições. Não esqueçais as lições que aprendestes dos vossos antepassados e que podem enriquecer a vida deste país americano. Repito: não vos envergonheis daquilo que faz parte de vós, o sangue da vossa vida. Também vós sois chamados a ser cidadãos responsáveis e a contribuir frutuosamente para a vida das comunidades onde viveis. Penso de modo particular na fé fervorosa de muitos de vós, no sentido profundo da vida familiar e em todos os outros valores que recebeste sem herança.
Trazendo as vossas contribuições, não só encontrareis o vosso lugar aqui, mas ajudareis a sociedade a renovar-se a partir de dentro.
Queridos amigos, agradeço o vosso caloroso acolhimento e o facto de vos terdes reunido hoje comigo. Possam esta nação e cada um de vós sentir-se renovados na gratidão pelas muitas bênçãos e liberdades de que gozais. E possais defender estes direitos, especialmente a vossa liberdade religiosa, porque esta foi-vos dada pelo próprio Deus. Ele vos abençoe a todos. Peço-vos, por favor, que não vos esqueçais de rezar por mim.
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Vivemos num mundo sujeito «à globalização do paradigma tecnocrático», critica Francisco no Independence Mall - Instituto Humanitas Unisinos - IHU