21 Setembro 2015
"O real vale metade de quando fui morar para o Brasil em 2010, então todos os preços subiram para compensar, mas não a maior parte dos salários. Em greve, em quebra, em queda, o Brasil visto do Rio de Janeiro neste começo de Agosto de 2015. E a queda do governo é a iminência parda", comenta Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora portuguesa, em artigo publicado por Jornal de Portugal, 09-08-2015
Eis o artigo.
1. Entre hospitais e universidades, o trânsito carioca vai de cartaz em cartaz: por aumentos, por reformas, contra cortes. Uma velha amiga é professora numa universidade federal onde os cortes atingem 70 por cento, um novo amigo idem, a greve dura e dura, eles não vêem fim à vista. O que seria realista conseguir, pergunto. Resposta, “apenas” 50 por cento de cortes. Mas querem que o dinheiro venha de onde, contrapõe outro amigo dentro do governo. Bolsas, pesquisa, investigação, tudo suspenso por causa dos 70 por cento, resume a amiga antiga. Os funcionários da limpeza já nem eram pagos, a universidade estava um nojo, diz o amigo novo. Os alunos não fazem ideia quando voltarão a ter aulas. Os professores não fazem ideia quando irão compensar as aulas. Ninguém sabe quando haverá férias, ninguém faz planos. O real vale metade de quando fui morar para o Brasil em 2010, então todos os preços subiram para compensar, mas não a maior parte dos salários. Em greve, em quebra, em queda, o Brasil visto do Rio de Janeiro neste começo de Agosto de 2015. E a queda do governo é a iminência parda.
2. Onde anda o José Dirceu, tinha-me lembrado há semanas naquele vale de Minas Gerais onde tudo parece remoto menos o estado do céu que dará o estado da terra, lembrança ociosa, dois dedos de conversa. Então esta semana ficámos todos lembrados, era isso, andava por aí em prisão domiciliária a ver se não lhe caía em cima a prisão não domiciliária, mensalão, petrolão, negócio de milhão. Pois é, portuguesa, suspira dona Luzia que já me tirou uns 200 cafés, debruçada sobre o seu balcão em Laranjeiras. Que foi dona Luzia, digo eu, me dá tristeza essa falta de movimento, diz ela, já viu como estamos em crise, e os dois únicos clientes além de mim contam que metade da família já foi para Portugal, mudar de vida mesmo, pelo menos não tem PT lá.
3. Mais ou menos zangada com o PT, mais ou menos em crise, tudo isto é Zona Sul, aquela amostra de Rio de Janeiro vista como “o” Rio de Janeiro que até pega ônibus e metrô, mas não perde seis horas de vida por dia em transportes públicos, e vê tudo o que há em volta como periferia.
4. Domingo calculei no Google a distância que precisava de fazer em transportes públicos e dava duas horas e cinquenta só a ida. E eu ia de Laranjeiras, que já é a periferia da Zona Sul, para a Vila Autódromo, que está longe de ser o extremo da Zona Oeste. Primeiro, tinha de apanhar qualquer ônibus que fosse para a Central do Brasil, onde apanharia o único que de lá vai para a Vila Autódromo. Isto significava atravessar todo o centro do Rio de Janeiro, depois parte da Avenida Brasil, que é a mega via de acesso à cidade, e depois toda a Linha Amarela, que é a ligação entre Zona Norte e Zona Oeste. Algo como ir de Lisboa ao Porto, só que num ônibus desconjuntado, destruidor de cervicais, aliás, dois ônibus desconjuntados, quando não três. Aliás, no caso de quem vai para trabalhar, ir de Lisboa ao Porto, fazer um turno de oito horas e voltar do Porto para Lisboa, em, ao todo, quatro, quando não seis ônibus destruidores de cervicais. Eis a vida do carioca da periferia.
5. E como era um domingo de sol deu para comprovar a heróica disposição desse carioca num domingo de sol: lota os transportes públicos com lancheiras, cadeiras, bebés e as piscinas de plástico dos bebés, para saltar em Copacabana por umas horas, antes de fazer tudo de volta. Sendo que ao domingo o metrô não liga directamente a periferia à Zona Sul. Ou seja, o povo tem metrô directo de um pedacinho da periferia para ir servir a Zona Sul durante a semana mas não tem metrô directo para a praia no dia em que pode ir à praia. A orla é igual para todos, só que não.
6. Havia uma certa prevalência de mulheres e bebés a bordo que se explica pelo facto de o carioca que num domingo de sol não anda horas em transporte para ir à praia é porque anda horas em transporte para ir ao futebol.
7. Esse domingo foi o meu terceiro dia consecutivo na Avenida Brasil desde que vim de Minas. Sexta, o meu ônibus demorou quase tanto de Minas à Avenida Brasil como da Avenida Brasil à Rodoviária. A faixa central está tomada pelas obras da BRT, a rede de ônibus rápida que o prefeito Eduardo Paes está a capitanear rumo às Olimpíadas. Entretanto, centenas de milhares de cariocas de um lado e do outro continuam a viver como em campos de refugiados. Sábado, o meu segundo dia consecutivo na Avenida Brasil, foi para ir de Laranjeiras a uma das favelas da Maré. Já tinha ido muitas vezes à Maré mas nunca uma favela do Rio me tinha lembrado tanto um campo de refugiados palestinianos. O exército retirou-se de lá há dias, depois de uma longa ocupação que não “pacificou” nada mas mutilou gente, por exemplo o rapaz que fui visitar. Era um mulato esgalgado e bonito. O que acontece mal mudamos de ônibus na Central do Brasil é que os cariocas escurecem todos, deixa de haver brancos. E são esses os mais mutilados, jovens mestiços, muitas vezes às mãos do Estado.
8. A favela Vila Autódromo, onde fui domingo, está a ser removida por causa das Olimpíadas, tornou-se o símbolo da luta contra as remoções. É preciso fazer toda aquela avenida em Jacarepaguá para ver como será erradicada. À direita, condomínios fechadíssimos, grades altas, sistemas de vigilância, cidades dentro da cidade. À esquerda, um estaleiro espacial, com dezenas de equipamentos desportivos em construção. De repente uns barracos de tijolo, e o estaleiro do Parque Olímpico continua. Não sei quando voltarei ao Rio, mas suspeito que da próxima vez a paisagem estará mais pasteurizada.
9. E este foi o fim de semana em que a empresa que gere os comboios da Central, a decadente linha que serve a Zona Norte, autorizou os comboios a passarem por cima do corpo de um homem que caíra nos trilhos, sem que ninguém soubesse se ainda estava vivo, porque a altura do comboio permitia um vão, portanto entre um homem levar com não sei quantas carruagens a passarem sobre ele e os contratempos que parar a circulação ia causar, eles escolheram não ter contratempos. Não era filho de alguém que é alguém, morreu sem atrapalhar o trânsito. A família soube pela TV, lá na periferia.
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A periferia da queda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU