Por: Jonas | 17 Setembro 2015
Integrante da Rede de Pesquisas em Genocídio e Política Indígena e doutora em Antropologia, Diana Lenton apresenta provas do genocídio dos povos originários (na Argentina). Campos de concentração, assassinatos em massa, fuzilamentos e sequestro de crianças. Julio Argentino Roca, o papel do Estado, a sociedade e os intelectuais.
Fonte: http://goo.gl/ikYsNX |
A entrevista é de Darío Aranda, publicada por Pressenza, 12-09-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Por que afirma que o Estado argentino se funda sobre um genocídio?
O Estado moderno constitui uma forma de entender as relações entre Estado e sociedade, e constrói todo um modo político de acionar, uma normativa, instituições que se fundam no mesmo momento em que se realiza o genocídio. E não fazemos esta relação só porque é contemporâneo ao genocídio, mas porque essa estrutura de Estado demandou que não houvesse mais diversidade interna no Estado. São anulados os tratados com os indígenas, o Estado se assegurou de que não iriam interferir na constituição desse Estado. É o que se chama genocídio constituinte, são genocídios que dão origem a um Estado.
Existem setores que ainda negam que tenha sido um genocídio. Que provas dão conta de que realmente foi?
As ciências sociais não têm um conceito analítico acabado. Do campo jurídico internacional sim, é previsto pelas Nações Unidas, em 1948, para julgar os crimes do nazismo. Essa definição fala de diferentes elementos. É genocídio quando se pode estabelecer a intencionalidade de destruir um povo. Outra característica é impedir a reprodução desse grupo e também o roubo de crianças, quando são sequestrados e entregues a famílias de grupos dominantes e seus nomes são substituídos, porque assim se atenta contra a continuidade desse povo, pois se rouba a sua memória.
Que fatos concretos houve?
Matança da população civil. Alguns têm a imagem de batalhas ao estilo romântico de um exército contra outro. A característica da campanha de Roca é que, principalmente, é dirigida à população civil. As memórias do comandante Prado dizem claramente que o ataque às habitações é para cair sobre as mulheres e crianças que ficaram quando os homens não estavam. Era planejado assim para conduzir à pilhagem, especialmente do gado e das famílias, porque essa era a operação que faria os índios se render. São operações contra a população civil, onde morrem mulheres e crianças ou eram enviados como mão-de-obra escrava para o trabalho doméstico urbano ou para a agroindústria, cana-de-açúcar e vinhedos. Também se dão outros elementos de genocídio, a submissão da população a condições que acarretem em dano a sua subsistência, que possa provocar enfermidade ou morte, e isso envolveu as transferências da população submetida para campos de concentração.
Vocês verificam que o jornal La Nación chamou isto de crimes contra a humanidade.
Mitre dizia que as ações de Rudecindo Roca, irmão de Julio Argentino, eram crimes contra a humanidade porque fuzilavam prisioneiros desarmados e tornavam mulheres e crianças prisioneiras. Para um setor do espectro político não era o correto. Inclusive Mitre, que não era bebê de peito, que teve responsabilidade na guerra do Paraguai com episódios espantosos, estava assombrado, não criticava que a Campanha fosse feita, mas, sim, questionava que um Governo estivesse minando sua própria legitimidade ao desconsiderar os avanços da civilização.
Também houve campos de concentração.
Houve campos de concentração em Valcheta, Martín García, Chichinales, Rincón del Medio, Malargüe, entre outros. São todos lugares onde se colocam as pessoas prisioneiras sem destino fixo. A autoridade militar era a dona da vida e morte deles. A ideia era de depósito porque seriam distribuídos. Eram prisioneiros e escravos. Eram recebidos pedidos de Tucumán, engenhos, de Misiones, estâncias. Chegavam como famílias e eram separados. Há provas da violência, cartas entre padres e arcebispos. Ocorriam mortes em razão das condições nas quais estavam submetidos, aí também está o genocídio. E também aconteciam suicídios pelo trauma social ao qual estavam submetidos. Os pais sabiam que lhes tiravam seus filhos, viam e decidiam se matar. Ou mulheres que se jogavam na água com seus filhos. Em Valcheta, há documentos onde se descreve que não lhes eram oferecidos alimentos e morriam de fome.
Que documentos existem?
Existe muita documentação oficial para discutir a história imposta. Os arquivos oficiais, Arquivo Geral da Nação, a Marinha, os arquivos das províncias. E arquivos particulares de pessoas, de militares que escreveram cartas. Também documentos da Igreja: daí, surgem dados de centenas de garotos destinados a Jujuy e Tucumán. Ficam claras as idades de serviço doméstico, garotos de 2 a 3 anos e até os 8. Os adultos que eram destinados ao canavial e morriam com suas famílias, isso também é parte do genocídio.
Há números?
O Poder Executivo dizia, em 1879, que haviam transferido 10.000 prisioneiros do que era a fronteira, estava fazia pouco na zona norte da Patagônia, para trabalhar ao Norte e Mendoza, indústrias, serviços domésticos e Martín García. Em 1883, um relatório oficial já apontava 20.000. No Chaco são números muito maiores.
Por que a campanha militar ao Norte não é tão conhecida?
Não houve uma maneira sistemática de apresentar a história e menos a história dos povos indígenas. Chegaram-nos imagens, aprendemos que o Estado e território atual se completa com Roca, e ele estava no Sul.
Costuma se justificar a violência com o fato de que “é preciso se situar na época”, como se fossem normais essas campanhas militares.
Alguns senadores como Aristóbulo del Valle, talvez a voz mais clara contra a Campanha, perguntavam quais tinham sido os resultados da campanha ao Sul e dizia que esses territórios não estão incorporados ao trabalho. Era o momento no qual o território estava sendo rifado, como disseram, naquela época, observadores militares, não era para os pioneiros e nem para os agricultores, como havia sido prometido, mas para latifundiários. Aristóbulo del Valle denunciava que o homem havia sido escravizado, a mulher prostituída, as crianças utilizadas para o trabalho escravo. Não havia, dizia, nem avanço econômico, nem cívico. Inclusive, houve oposição de setores das elites.
Assim mesmo se realiza.
Faz-se e é um fracasso do ponto de vista militar. Em 1884, o que consegue o general Victorica, que estava à frente como ministro de Guerra, é derrotar os principais chefes, mas não consegue ocupar o território. Isso ocorrerá em 1911. Não consegue ocupar porque o Chaco estava muito mais densamente povoado por povos indígenas e com uma variedade de povos, de línguas e culturas distintas.
Foi tão sangrenta como a do Sul?
Sim, não apenas foi igual, como também essa operação de sequestrar garotos, atacar mulheres, estendeu-se avançado até o século XX. Ainda hoje, todas as comunidades têm lembranças dos garotos sequestrados pelo Exército.
Números?
Não os temos, estamos trabalhando, mas as vítimas superam vastamente os números da Patagônia. E há outros setores do país onde também não se sabe muito.
Por exemplo?
Cuyo e a Puna. Estamos começando a trabalhar no que foi a Campanha em Puna, que ficou conhecida como Campanha ao Susques, que se dá por encerrada em 1874, com a batalha de Quera. Aparentemente, o que mais houve foram fuzilamentos em massa que acabaram com a resistência, o que se chamou de Pacificação de Puna, fuzilamentos em massa durante 1874 e 1875.
Em Cuyo houve campos de concentração...
Sim, pela campanha ao sul de Mendoza e norte de Neuquén, onde fizeram grande quantidade de famílias prisioneiras, que foram utilizadas nas indústrias da vindima no que hoje é Malargüe. A pessoa que mais sabe é Diego Escolar, que vive lá, tem isso muito bem documentado e quantificado, não apenas os prisioneiros como também a quantidade de garotos que eram enviados sozinhos à vindima para trabalhar para sempre, não iam e vinham.
Roca é apenas um símbolo ou o responsável?
Roca foi responsável pelo genocídio. Teve possibilidades de outro tipo de política. Há provas de que ele se informou com um enviado de sua confiança aos Estados Unidos para ver como funcionavam as reservas. E estudou também os franceses na Argélia. Decidiu o modelo francês porque dizia que o modelo de reservas era muito custoso. Houve campanhas militares anteriores, mas a de Roca foi a mais sistemática e a que teve um objetivo mais declaradamente genocida. Há declarações de Roca sobre destruir até o último indígena. Seu discurso de assunção à presidência festeja que nem mesmo um índio cruza os pampas.
É conhecida a postura dos intelectuais da direita sobre Roca e os povos originários. E o olhar dos intelectuais de esquerda ou progressistas?
Há certo progressismo que se construiu sobre o paradigma que deu lugar ao genocídio e a uma noção da Argentina sem indígenas. Para grande parte dos intelectuais, os povos originários não importam. Construiu-se uma ideia de progressismo que pode ignorar os povos originários como se não existissem e temos uma esquerda que ignorou as lutas indígenas, por isso tudo é muito mais difícil.
Por que o genocídio continua parecendo algo apenas da ditadura e não também algo que atingiu os povos originários?
Porque é difícil para grande parte dos argentinos considerar a história dos povos indígenas como parte da história argentina. Tem relação direta com o assumir se é algo que ocorreu com eles e ocorre com os argentinos ou ocorreu com eles e ocorre com outros.
O juiz da Corte Suprema, Eugenio Zaffaroni, acrescenta o fator da classe social afetada.
Sem dúvida, tem a ver com a classe social vítima, mas, sobretudo, há um olhar racista dentro do que é o senso comum argentino. A sociedade argentina é racista a respeito dos povos originários. Pensa-se que o que acontece com outras pessoas não é tão importante, por isso há dores que não nos comovem e outras que sim. Para muitas pessoas, um campo de concentração se define como tal quando em seu interior há gente que se parece com elas, caso contrário, não é um campo de concentração.
Daí, a negação do genocídio?
Temos um paradigma onde a palavra “genocídio” pode ser aplicada quando tem importância para mim, quando meu grupo de pertença é o afetado. E a maior parte da intelectualidade, das pessoas que constroem teoria e constroem consenso social nestas situações, compartilham um sistema cultural de pertença. Enquanto não podermos sequer entender a dor dos outros ou senti-la como própria, não há interculturalidade possível. Não há forma de dialogar.
Você interpreta continuidades das campanhas militares de fins do século XIX e a situação atual de morte por desnutrição em Chaco, Misiones e Salta, ou pela repressão em Formosa?
Os povos originários são vítimas de um genocídio que ainda não terminou. Por isso, como Rede falamos de que na Argentina existe um processo genocida dos povos indígenas porque não podemos encontrar a sua data de finalização. Não apenas o Estado se constrói sobre um genocídio, mas também nosso marco de pensamento se constrói sobre o genocídio, de tal maneira que não saímos ainda dele. O genocídio realizado pelo nazismo tem data de finalização. O fim da guerra, o suicídio de Hitler, os tribunais de Nuremberg. O genocídio da ditadura teve uma Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), julgamentos. O genocídio indígena não tem data de finalização e não há julgamentos.
Não existiu um “Nunca mais” para os povos originários.
Não houve data de finalização. Não há e nem houve uma instância de reparação. Qual seria a instância autorizada, caso queiramos fazer julgamentos? Porque o Estado é o mesmo Estado genocida. A única maneira para poder realizar algo semelhante aos julgamentos da ditadura é que também esteja integrado pelos povos originários.
Acredita que é possível?
Hoje em dia, há um movimento importante de povos originários que não havia há dez anos, e em algum momento ocorrerá. Não pode ser a mesma sociedade genocida a que leve a acusação; o que, sim, a mesma sociedade genocida pode fazer é mobilizar a possibilidade de gerar uma mudança interna.
Por que “sociedade genocida”?
Porque existem processos que continuam sendo produzidos. Embora haja uma abertura muito importante para a inclusão dos direitos específicos dos povos indígenas dentro dos direitos humanos, a atitude do Estado hoje em dia não é a mesma que existia há dez anos, há uma mudança positiva. Contudo, quando esses direitos reconhecidos dos povos originários entram em choque com os interesses econômicos, seja do Estado ou de particulares, sempre se atenta contra os povos originários.
Por exemplo?
O Estado sustenta boa parte de seu modelo em atividades como a soja, o petróleo e a mineração, então, o direito indígena cai. O mesmo Estado que habilita os povos originários a fazer determinadas reivindicações, por outro lado, faz com que se calem com a violência que for necessária quando está em jogo uma atividade econômica que o Governo impulsiona.
Como se entende essa contradição?
É por isso que digo que a sociedade ainda não deixou de ser genocida com os povos originários. Porque frente a estes dois parâmetros em conflito, automaticamente dá razão ao paradigma econômico.
A sociedade ou o Governo?
Seguem juntos, é um vai e vem. O paradigma econômico é o que se constituiu junto com o Estado e hoje se desenvolve a continuidade desse paradigma. Embora haja espaços de abertura interessantes, quando entram em choque paradigmas, o que sai vencedor é o paradigma racista, onde você tem direito a dizer o que quiser, mas caso haja petróleo em sua comunidade, o organismo que decide não é o INAI (Ministério de Desenvolvimento Social), o Inadi (Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo), nem um escritório de interculturalidade, mas, ao contrário, a Secretaria de Energia. E ponto, não há discussão possível.
É a economia...
Quando o que está em jogo são interesses econômicos, sempre se atenta contra os direitos indígenas, com leis que devem ser respeitadas.
As campanhas militares tiveram uma matriz econômica, uma decisão política e uma cumplicidade ou ao menos uma indiferença da sociedade. Observa paralelos?
É muito semelhante. Como se definiu o avanço econômico em fins do século XIX? Decidiu-se pela abertura de novos espaços para a exploração intensiva, junto a novas tecnologias que tinham a ver com o manejo da pecuária, cercas, novas técnicas que acompanhavam a inclusão de territórios para o mercado exportador. E agora estamos vivendo o mesmo, a soja é exatamente isso. A nova tecnologia e a incorporação de novos territórios que antes estavam livres, onde havia comunidades que podiam viver.
O petróleo e a mineração repetem a mesma lógica.
Estão padecendo, entre outros, os mapuches na região de planalto. Quando as comunidades haviam se estabelecido no planalto, esse lugar não era objetivo de exploração; agora sim. Hoje, sofrem um assédio tremendo e ilegítimo por parte das mineradoras e petroleiras.
Há um argumento legitimador que se repete: o progresso.
Sim, hoje é o desenvolvimento, como uma utopia da sociedade ocidental, mas o problema é que se estabelecem como se fossem características que somente a sociedade ocidental pudesse ter e os outros não, e que, além disso, dão-se à custa do viver dos outros. O problema deste conceito de desenvolvimento e progresso, hoje encarnado na política econômica extrativa, é que recebem uma centralidade mais importante que a vida e a dignidade humanas. O desenvolvimento é importante, mas é tão importante a ponto de legitimar que o avanço petroleiro, mineiro e sojeiro ocasionem contaminação e morte? E, não é por acaso, sempre esse “progresso” é à custa do “outro”, nunca é à custa do grupo de pertença dominante.
Você afirma que o genocídio ainda não tem data de finalização, enquanto os povos originários se organizam e lutam.
Sem dúvidas, hoje ganharam visibilidade como nunca antes, o que tem direta relação com a organização e os conflitos que enfrentam nos territórios. Por isso, sinto muito respeito pelos dirigentes e intelectuais indígenas, sei que há diferenças como em qualquer espectro político, mas tenho um grande respeito porque é preciso muita decisão e coragem, já que estão fazendo um trabalho de conscientização, de educação política para todo o restante da sociedade. Ser dirigente indígena continua sendo profissão de risco, sobretudo em algumas províncias, porque é muito provável que você vá preso ou que seja morto por defender o território. Nunca se deve esquecer que são povos que sofreram um genocídio, mas se mantêm vivos.
Desentranhando o racismo
Diana Lenton é doutora em Antropologia Social pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e docente na mesma universidade. Sua tese analisou os discursos circulantes entre 1880 e 1970 sobre os povos indígenas e o esboço de políticas nacionais a esse respeito. É pesquisadora adjunta do Conicet com um projeto sobre a emergência de organizações representativas dos povos originários a partir da década de 1970 e sua articulação com outros movimentos sociais. Dirige um projeto de pesquisa radicado no Instituto de Ciências Antropológicas da Faculdade de Filosofia e Letras da UBA, do qual participam outros docentes-pesquisadores, doutorandos e bolsistas sobre a temática. Desde 2005, é cofundadora, junto ao historiador Walter Delrio, da Rede de Pesquisadores em Genocídio e Política Indígena, um espaço interdisciplinar de pesquisa acadêmica e de “transferência à sociedade”, com o objetivo de reunir os esforços de antropólogos, sociólogos, historiadores, educadores e comunicadores que trabalham pelo esclarecimento das modalidades históricas de relação entre o Estado e os povos originários. O coletivo de jovens pesquisadores conseguiu apresentar provas concretas e documentadas sobre o genocídio executado sobre os povos originários. Seu último livro é o indispensável ‘Historia de la crueldad argentina’.
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“A sociedade ainda não deixou de ser genocida com os povos originários”, afirma antropóloga argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU