08 Setembro 2015
Às margens da rodovia que corta o município de Antônio João, no Mato Grosso do Sul, cinco homens do Exército, armados, olhavam atentamente o interior dos veículos que passavam na última sexta-feira. Camionetes da Força Nacional e carros das Forças Armadas circulavam pela estrada e um helicóptero militar rondava no céu. O cenário, que parecia o prenúncio de uma guerra, dava pistas da gravidade a que chegou o conflito por terras no Estado. Seis dias antes, Semião Fernandes Vilhalva, um guarani-kaiowá de 24 anos, foi assassinado em plena luz do dia em uma fazenda. Levou um tiro na cabeça, ao procurar o filho de cinco anos na beira de um riacho.
A reportagem é de Talita Bedinelli, publicada por El País, 05-09-2015.
Carregado morro acima já sem vida pelos próprios indígenas, o rapaz se tornava a mais nova vítima de uma longa disputa por terras que opõe índios e fazendeiros. No mesmo dia, dezenas de outros indígenas, incluindo mulheres e crianças, ficaram feridos a pauladas ou por tiros de bala de borracha, que deixaram marcas pelo corpo, vistas pela reportagem. No centro da cidade chegaram boatos de que, como vingança, eles incendiariam diversas casas. A pacata Antônio João, de 8.612 habitantes, entrou em pânico.
Os índios reivindicam desde o final dos anos 1990 a ocupação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, de 9.317 hectares (o equivalente a nove mil campos de futebol), hoje dividida por cinco fazendas de criação de gado, três delas dos filhos de Pio Silva. Silva, segundo os guarani-kaiowá, os expulsou da área na década de 1950 ao lado de outros quatro homens, depois de comprarem os lotes do próprio Governo do Mato Grosso do Sul. Seus herdeiros dizem que só havia uma família de índios na área.
Segundo os indígenas, com a chegada dos novos donos, muitos índios passaram a trabalhar para os fazendeiros e receberam uma área perto das fazendas, chamada de Vila Campestre. No final da década de 90, com o espaço já pequeno para as famílias em crescimento, decidiram retomar o terreno das fazendas para fazer uma nova aldeia, e entraram em confronto com os fazendeiros.
Desde então, ao menos três índios já morreram, entre eles Durvalino Rocha, cunhado de Vilhalva, em 2005. A história que se repete em ao menos outras 80 áreas do Mato Grosso do Sul, um Estado com forte vocação agrícola e que é palco dos piores conflitos do tipo no Brasil. A espera de uma resolução para o conflito, muitos grupos improvisam aldeias na beira de estradas. Sem atendimento médico, 2.112 índios morreram nos últimos 13 anos por causas evitáveis no Estado, conforme mostrou levantamento do EL PAÍS sobre a saúde indígena.
No último dia 22, um sábado antes do da morte de Vilhalva, os guarani-kaiowá deram início ao maior processo de ocupação de todos esses anos. Primeiro entraram na fazenda Primavera, uma das cinco que reivindicam. Em seguida, ocuparam as outras quatro áreas.
No sábado seguinte, dia 29, cerca de sessenta camionetes deixaram a sede do sindicato rural de Antônio João. Seguiam os passos de Roseli Ruiz, presidente da associação e mulher dos filho mais velho de Pio Silva, herdeiro da fazenda Barra, uma das últimas ocupadas pelos índios. O grupo contava ainda com Dácio Queiroz, também filho de Pio, dono de outra fazenda invadida, a Fronteira, e com políticos, como o deputado federal pelo DEM Luiz Henrique Mandetta, um dos integrantes da comissão que discute a PEC 215, uma proposta de emenda à Constituição que quer mudar a forma como a demarcação de terras indígenas é feita no país.
O séquito de camionetes percorreu por cerca de 10 minutos a rodovia, entrou pela estrada de terra e parou em meio a freadas bruscas, que levantaram poeira, perto da casa principal da fazenda Barra. Foram recebidos por homens, mulheres, adolescentes e crianças aos gritos, com paus e arco e flecha nas mãos. Os índios relatam que, depois de alguma discussão, os homens dispararam tiros para o alto e armas com balas de borracha em direção a eles –o que os fazendeiros negam. Em meio a uma intensa correria, motos de indígenas acabaram incendiadas, outra delas foi furada por tiros. Um índio foi cercado e atacado com um pedaço de pau que abriu sua testa.
O confronto se estendeu para a fazenda Fronteira, logo ao lado. Crianças se perderam. Entre elas, o filho de Vilhalva. Não demorou muito e o rapaz apareceu morto. A Força Nacional, uma espécie de tropa de elite do Governo federal formada por policiais militares de vários estados, demorou uma hora para chegar, afirmam os índios.
"O que aconteceu foi um massacre, uma verdadeira guerra", diz uma liderança que não quis se identificar por medo de vingança. "Estava com meu neto de um ano no colo. Ele foi atingido por balas de borracha e chegou a desmaiar", conta Leni, outra das indígenas do movimento. Fazendeiros afirmam que foram atingidos por pauladas e que há marcas de bala em seus veículos.
O processo de demarcação da terra já foi autorizado pelo Governo federal, mas acabou barrado no Supremo Tribunal Federal em 2005. Desde então, o ministro Gilmar Mendes, relator do processo que afirma que o tema é "muito complexo", ainda avalia se a área deverá ir para os índios ou para os fazendeiros. “Nós esperamos pacientemente por dez anos a Justiça resolver a questão. Mas decidimos agir para não esperar a vida toda”, diz Kuña Poty, de 47 anos, que agora vive na sede da Primavera. Roseli e Dácio conseguiram recuperar suas casas após a confusão e suas famílias voltaram para as fazendas, onde foram alocados homens do Exército e da Força Nacional. Os índios continuam no restante da área.
Negociação
Após a morte de Vilhalva e toda a atenção que a questão ganhou na imprensa, deputados tentaram acelerar a aprovação da PEC 215 no Congresso. A proposta, que já ganhou um relatório final da comissão que a analisa e deve ser encaminhada para a votação ainda neste ano, dará à Câmara o poder de aprovar as demarcações de terra -uma prerrogativa hoje do Executivo- e permitirá a indenização de terras demarcadas. Em uma Casa lotada de parlamentares ruralistas, isso deverá dificultar que os índios consigam qualquer nova área que reivindicam.
O Governo, por sua vez, decidiu tentar negociar. Na semana passada, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, esteve na capital do Estado, onde se reuniu com fazendeiros e com indígenas. Em meio a uma discussão tensa, que teve até bate-boca com uma produtora rural, Cardozo propôs que os índios selecionem cinco áreas em litígio para a demarcação urgente e prevê como solução a indenização aos fazendeiros. Um problema, visto que pela legislação o Governo pode apenas pagar pelas benfeitorias feitas na terra e não pelo terreno, que já seriam dos índios e, portanto, da própria União. Os fazendeiros não aceitam receber menos, já que pagaram pelas terras de boa-fé.
A proposta de Cardozo é vista com ceticismo por ambas as partes. Há dois anos, após a morte em 2013 de um índio terena no município de Sidrolândia, também no Mato Grosso do Sul, uma mesa de negociação foi formada pelo ministério, com a mesma proposta. Depois de inúmeras negociações, não se chegou ao acordo esperado. “São mentiras, mentiras e mentiras. O Governo está sem credibilidade. A verdade é que, se eles quisessem resolver a questão já teriam resolvido”, reclama Roseli. Seu cunhado não quis falar com a reportagem.
Enquanto o impasse não é resolvido, os índios garantem que não sairão das áreas ocupadas. Nos próximos dias, pretendem começar a montar barracas e, num futuro próximo, criar uma roça em meio a área desmatada para o pasto do gado. O clima de guerra promete continuar.
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“Foi uma guerra, um massacre” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU