Por: André | 31 Agosto 2015
“A Renda Básica não deveria ser uma resposta ao hipotético desvanecimento do trabalho, fruto do avanço tecnológico, mas um elemento dentro de uma plataforma de políticas públicas que, diante da mudança tecnológica, insere-se no terreno conflitivo da valorização (salarial ou não). A luta trava-se sobre o valor, as formas de vida e suas diferentes alternativas para o seu governo.”
A análise é de Antón Fernández de Rota e publicada por Diagonal, 26-08-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
De acordo com uma concepção determinística da tecnologia, não muito distante do animismo, o progresso tecnológico está destinado a destruir o trabalho. Alguns partidários da Renda Básica acham tentador justificá-la desta maneira. Mas é um erro. No começo do século XIX, as lutas dos ludditas não eram apenas contra os teares automatizados que deixavam muitos sem emprego, mas contra algo de maior amplitude. As fábricas não apenas diminuíam o número de trabalhadores necessários para produzir determinada quantidade de bens. Acabavam com uma forma de vida e de trabalho (a das comunidades de tecelões, tão bem descritas por E. P. Thompson) para instaurar outras muito diferentes; já na sua época criticadas pelos Enciclopedistas, de quem Adam Smith tomará o seu famoso exemplo da fábrica de alfinetes, que Marx mais tarde utiliza para arremeter contra a alienação.
Evidentemente, também há quem defenda o contrário, que a tecnologia cria mais trabalho do que destrói. Mas voltamos a estar na mesma. Na verdade, não existe uma relação intrínseca entre a tecnologia e o número de empregos, por quanto o trabalho como categoria não é algo estável. O que significa que não deixou de se transformar. A tecnologia, em si, não cria nem destrói trabalho.
A decisão de contar como trabalho e regular como emprego os trabalhos domésticos aumentaria em milhões os postos de trabalho de um país de tamanho médio, sem importar os avanços nas tecnologias domésticas. Em muitos mais milhões se aumentariam se se considerasse e reconhecesse como trabalho a produção de conteúdos e a distribuição dos mesmos realizados pelos “usuários” (prossumidores = consumidores + produtores) nas redes sociais e outras empresas da internet, cuja atividade não deixa de ser a fonte de riqueza das empresas proprietárias (a este respeito, vejam-se os textos de Benkler, Terranova, Jenkins, Lazzarato). Este reconhecimento, tão somente em uma empresa como o Facebook, com um capital de mercado de 222 bilhões de dólares e que emprega pouco mais de 10 mil trabalhadores, implicaria na criação de cerca de um bilhão de postos de trabalho mundo afora.
A verdade é que não deixamos de criar empregos, alterando com isso o significado do trabalho. Um dia, não faz muito tempo, criar marcas e associá-las a mundos simbólicos passou a ser considerado trabalho, fazendo florescer a indústria do marketing, que mais tarde derivou no assédio ao cliente a partir dos call centers, e a espionagem e a apropriação mais ou menos indevida realizada pelos cool hunters (veja-se o artigo de David Graeber sobre a fenomenologia dos “bullshit jobs”). Nos últimos anos, a venda de clicks, “likes” e “retweets”, seguidores e amigos, deu lugar a novas empresas, em uma mistura de valoração da visibilidade e da auto-estima de seus clientes. Como também foi feito pela externalização do amor pelas redes sociais com serviços de coaching associados, que negociam legalmente com o erotismo, os sentimentos e o encontro sexual, enquanto a prostituição segue sem ser reconhecida formalmente como um trabalho.
Recentemente, Franco Berardi (Bifo) escreveu: “O Foreign Office, em seu relatório do ano passado, dizia que 45% dos trabalhos com os quais hoje as pessoas ganham a vida poderiam desaparecer amanhã, porque já não são necessários. [..] Já não precisamos de todos estes tristes personagens que querem nos convencer de que o emprego e o crescimento logo serão recuperados. Trabalhemos menos com uma renda de cidadania, preocupemo-nos com a saúda, vamos ao cinema, aprendamos matemática e façamos esse milhão de coisas úteis que não são trabalho e não têm necessidade de serem trocados por um salário. Porque, sabem o que lhes digo? O trabalho já não é necessário”.
E, talvez, esteja certo. Tudo depende de como seja conceituado. Mas, em todo caso, o que está em jogo é uma economia vital do valor. O que se valoriza e em que termos? A Renda Básica não deveria ser uma resposta ao hipotético desvanecimento do trabalho, fruto do avanço tecnológico, mas um elemento dentro de uma plataforma de políticas públicas que, diante da mudança tecnológica, insere-se no terreno conflitivo da valorização (salarial ou não). A luta trava-se sobre o valor, as formas de vida e suas diferentes alternativas para o seu governo.
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Da tecnologia, da Renda Básica e da extinção do trabalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU