13 Julho 2015
O sistema de desenvolvimento que envolve a humanidade e o mundo não é sustentável. Pedir uma mudança não é utopia, mas puro realismo. Não é preciso sonhar com paraísos na terra, mas apenas remover os mecanismos perversos e autodestrutivos que impedem uma vida digna para todos. E o futuro da humanidade não está apenas nas mãos dos grandes líderes, das grandes potências e das elites, mas também daqueles que "semeiam nas periferias" e "vivem cada dia embebidos na nudez da tempestade humana".
A reportagem é de Gianni Valente, publicada no sítio Vatican Insider, 10-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No último ato público do seu segundo dia na Bolívia, Bergoglio encontra na Expo Feira de Santa Cruz de la Sierra mais de 1.500 delegados dos movimentos populares da América Latina e de outros continentes. Papeleiros, sem-terra, cooperativas agrícolas, movimentos de luta por moradia e direitos dos povos indígenas, das mulheres e de todas as inúmeras faces da marginalidade urbana e rural. Há alguns meses, ele recebeu no Vaticano alguns deles.
Na mesa, ao lado do presidente boliviano Evo Morales, o Papa Francisco ouve a leitura da "Carta de Santa Cruz", a síntese dos trabalhos da assembleia em que se expõem todos os pedidos e os desejos para uma "superação do modelo neocapitalista" e o advento da "economia popular, social e comunitária, em que prevaleça a solidariedade sobre a busca do lucro".
Depois, discursa Morales, que endossa uma jaqueta com a imagem de "Che" Guevara e se lança em uma longa apologia da sua "revolução indigenista", alternando diatribes contra o "imperialismo norte-americano", o Fundo Monetário Internacional e "a anarquia financeira" imposta ao mundo pelo capitalismo internacional.
Por fim, o papa toma a palavra, que, no início do seu discurso, se alegra com as portas que se abrem e com os novos espaços de encontro entre o magma caótico dos "movimentos populares" e a Igreja, disposta a entrar em campo, a "acompanhar" aqueles que buscam as melhores maneiras de "superar as graves situações de injustiça que sofrem os excluídos em todo o mundo".
No seu discurso, Bergoglio se defende, diz que não tem receitas prontas para propor, porque "nem o papa nem a Igreja tem o monopólio da interpretação da realidade social nem a proposta de soluções para os problemas contemporâneos". Mas seu discurso lúcido e apaixonado, cheio de calorosos sinais de entendimento lançados aos delegados dos movimentos, marca no campo social e político um dos momentos-chave da sua viagem.
Ele fala aos movimentos populares latino-americanos, mas olha para o mundo, varrendo o clichê do "papa dos pampas", em que os seus detratores tentam encerrá-lo. Porque os problemas que ele aborda dizem respeito à humanidade inteira e "têm uma matriz global". Ele também aplica às dinâmicas do mundo um olhar "global", diferente e incomparável em relação ao da homologação tecnocrático-liberal ou o das já acabadas utopias idealistas. Um olhar realista e cheio de esperança evangélica.
Bergoglio começou observando que "em um mundo onde há tantos agricultores sem terra, tantas famílias sem casa, tantos trabalhadores sem direitos", onde explodem "guerras insensatas" e a terra é devastada, isso significa que "as coisas não estão indo bem", e é preciso "uma mudança".
As dinâmicas de opressão, exclusão e devastação que transbordam o mundo não devem ser vistas como problemas isolados. Eles – observou o papa argentino – "respondem a um sistema que se tornou global". Um sistema que "impôs a lógica do lucro a todo o custo" e que agora "não se sustenta mais (…) não o aguentam os agricultores, os trabalhadores, as comunidades, os povos.... E também não o aguenta a Terra, a irmã Mãe Terra".
A raiz do mal é indicada pelo Papa Francisco na cobiça voraz que domina e faz mover todo o sistema. Por trás de "tanta morte e destruição", disse o bispo de Roma, ecoando a linguagem dos Padres da Igreja, "sente-se o fedor daquilo que Basílio de Cesareia chamava de 'esterco do diabo'" (aplausos na plateia).
Porque, "quando o capital se converte em ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez pelo dinheiro tutela todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, converte-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, enfrenta povo contra povo e, como vemos, põe em risco até esta nossa casa comum".l
Diante desse cenário, o Papa Francisco condenou "um certo excesso de diagnóstico que às vezes nos leva a um pessimismo charlatão ou a regozijar-nos no negativo". Ele também arquivou as receitas caras ao "conservadorismo compassivo", que pretende cobrir com alguns paliativos filantrópicos os efeitos devastadores do darwinismo social. "Não basta deixar cair algumas gotas quando os pobres agitam essa taça que nunca derrama por si só", disse o Papa Bergoglio, recordando que "os planos assistenciais que atendem certas urgências só deveriam ser pensados como respostas passageiras, conjunturais. Nunca poderiam substituir a verdadeira inclusão: a que dá o trabalho decente".
A "mudança" prefigurada como necessária e urgente pelo Papa Francisco não percorre os caminhos fracassados dos messianismos ideológicos. O Papa Francisco repete que "esta economia mata" e reconhece a urgência de "pôr a economia a serviço dos povos", porque os seres humanos e a natureza não devem estar a serviço do dinheiro.
E a economia "não deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a adequada administração da casa comum". Essa inversão de rota – insiste Bergoglio – "não é só desejável e necessária, mas também é possível. Não é uma utopia nem uma fantasia. É uma perspectiva extremamente realista".
Citando Paulo VI, ele repete que os recursos disponíveis no mundo são mais do que suficientes para o desenvolvimento integral "de todos os homens e de todo o homem". E, para uma vida digna, é necessário garantir a todos o acesso aos "três Ts" (teto, trabalho, terra) pelos quais lutam os movimentos populares latino-americanos. Objetivo mínimo e alcançável. Que deve ser buscado com paciência, confiando nos tempos longos dos processos, na "paixão por semear, por regar serenamente o que outros verão florescer".
Aos movimentos populares, que surgiram espontaneamente "de baixo", o Papa Francisco reconhece um papel importante no possível desencadeamento de processos de mudança global. Ele os define como "semeadores de mudança", "poetas sociais", "criadores de trabalho", "construtores de moradias".
"Vocês, os mais humildes, os explorados, os pobres e os excluídos", disse o Papa Francisco aos seus interlocutores, "podem fazer e fazem muito. Atrevo-me a lhes dizer que o futuro da humanidade está, em grande parte, nas suas mãos, na sua capacidade de se organizar e de promover alternativas criativas".
O que os torna fatores preciosos de renovação, segundo o Papa Francisco, é justamente a sua vida "embebida na nudez da tempestade humana", a sua imanência à vivência vivida que os imuniza do contágio da "teorização abstrata e da indignação elegante": "Esse apego ao bairro , à terra, ao ofício, ao sindicato, esse reconhecer-se no rosto do outro", disse o papa aos seus interlocutores, "é o que permite exercer o mandato do amor, não a partir de ideias ou conceitos, mas a partir do encontro genuíno entre pessoas, porque ninguém ama um conceito ou uma ideia; amam-se as pessoas. Das sementes de esperança semeadas pacientemente nas periferias esquecidas do planeta", acrescentou o papa, "crescerão árvores grandes, surgirão bosques repletos de esperança para oxigenar este mundo".
Na última parte do seu discurso-rio, articulado e denso como uma nova miniencíclica social, o Papa Francisco descreveu três "grandes tarefas" confiadas aos movimentos populares: o de "pôr a economia a serviço dos povos", a tarefa de favorecer a unidade entre os povos latino-americanos – perspectiva em que ele repropôs a sugestiva fórmula da "Pátria Grande", cara aos pais das nações latino-americanas – e o de defender a terra, casa comum, dos sistemas de exploração predatória.
Nesse contexto, o Papa Francisco repetiu, com toda a Tradição, que "a distribuição justa dos frutos da terra e o trabalho humano não é mera filantropia" e "o destino universal dos bens não é um adorno discursivo da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada".
Depois, delineou as diversas faces do "novo colonialismo", entre as quais também listou "alguns tratados denominados 'de livre comércio' e a imposição de medidas de 'austeridade' que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres".
"O colonialismo, novo e velho", disse o papa, "reduz os países pobres a meros provedores de matéria-prima e trabalho barato, gera violência, miséria, migrações forçadas e todos os males que podemos ver". Ele produz iniquidade, "e a iniquidade gera violência que não haverá recursos policiais, militares ou de inteligência capazes de deter".
Com uma breve e significativa digressão sobre o "velho" colonialismo, o Papa Francisco repetiu sem hesitação o pedido de perdão – já manifestado por João Paulo II – pelos "muitos e graves pecados contra os povos originários da América" cometidos por homens da Igreja no tempo da Conquista.
Ao mesmo tempo, também mencionou as figuras de sacerdotes, religiosos e religiosas que se puseram ao lado das populações indígenas, "acompanhando os movimentos populares até o martírio. A Igreja, seus filhos e filhas", disse o papa argentino com palavras objetivas e eloquentes, "são uma parte da identidade dos povos da América Latina. Identidade que, tanto aqui quanto em outros países, alguns poderes se empenham em apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro".
No fim, o papa concluiu o seu discurso com o costumeiro pedido dirigido aos presentes para rezarem por ele. "E se algum de vocês não pode rezar", acrescentou, de improviso, "com todo o respeito, peço que me pense bem e me mande 'buena onda'".
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As três tarefas indicadas pelo Papa Francisco aos movimentos populares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU