10 Julho 2015
"Os economistas e autoridades estão sempre de volta aos dias pré-crise", escreve o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em artigo publicado por Carta Maior, 08-07-2015.
Eis o artigo.
Nos tempos de certezas tão peremptórias quanto enredadas em suas tolices, é alentador ler o Relatório Anual do Bank of International Settlements- 2014/2015 (BIS). Ao longo de seis capítulos, sem transgredir os limites do "economicamente correto", o Relatório ousa reabilitar questões expurgadas do receituário consagrado pelo establishment político-econômico, antes e depois da crise financeira.
Quando a crise eclodiu, sugerem os economistas do BIS, generalizou-se a convicção a respeito do fracasso das "perspectivas macroeconômicas dominantes". Empenhadas em negar a possibilidade da ocorrência de "eventos extremos", as teorias macroeconômicas ficaram agrilhoadas às artimanhas do consenso pré-crise: senta que o leão é manso.
O consenso pré-crise presumia que a estabilidade do nível geral de preços era suficiente para garantir a estabilidade macroeconômica. Essa certeza apoiava-se em dois outros supostos: o primeiro afirmava a "eficiência forte" dos sistemas financeiros, ou seja, sua capacidade auto-estabilizadora; e o segundo sustentava que os efeitos das "falhas de mercado" na esfera financeira teriam impacto desprezível na estabilidade macroeconômica.
Prossegue o relatório: "Se expurgamos a visão analítica prevalecente de suas nuances e nos fixamos em sua influência no debate a respeito das políticas econômicas, nos deparamos com uma lógica simples. Há um excesso ou deficiência de demanda para a produção doméstica (hiato do produto), o que determina a inflação, ou pelo menos suporta as expectativas inflacionárias.
As políticas de demanda agregada devem ser utilizadas, portanto, para eliminar o hiato de produto e assim alcançar o pleno emprego e a estabilidade do nível geral de preços; as políticas fiscais afetam diretamente o gasto e a política monetária afeta indiretamente o dispêndio agregado mediante o manejo da taxa real de juro. A taxa de câmbio flutuante permite às autoridades liberdade para fixar os objetivos da política monetária. Se cada país ajusta as políticas fiscal e a monetária de modo a fechar o hiato do produto, período após período, tudo anda no melhor dos mundos". (Devemos ressuscitar Voltaire para reapresentar as ideias do Dr Pangloss?)
O relatório desqualifica as políticas econômicas que ignoram a globalização financeira e seus fluxos de capitais, ações sempre voltadas para o curto prazo e destinadas a "colocar a casa em ordem" (sic).
Desgraçadamente, lamentam os economistas do BIS, "os fatores financeiros ainda flutuam na periferia do pensamento macroeconômico". A falha de inteligência perdurou na posteridade da crise, a despeito dos esforços desesperados dos "economistas sérios" para enfiar nos modelos canônicos os bancos e as perturbadoras relações crédito-débito, fontes dos ciclos de valorização-desvalorização de ativos.
A função reserva de valor do dinheiro é sobremaneira incômoda e intratável nos modelitos de equilíbrio. A eliminação desse incômodo personagem permite às hipóteses "predominantes" ignorar os movimentos extremos de preços dos ativos impulsionados pela excessiva elasticidade do sistema de crédito. Nos modelos estocásticos gaussianos esses episódios estariam na cauda da distribuição de probabilidades. Os chamados "eventos de cauda" - como por exemplo, a valorização (e o colapso) dos preços dos ativos lastreados em hipotecas ("asset backed securities") - não podem ser considerados versões ampliadas das pequenas flutuações. Isto porque os episódios de euforia contagiosa deformam a própria distribuição de probabilidades.
Quando a euforia alavancada se transmuta no medo e na incerteza, os agentes racionais se transformam num tropel de búfalos enfurecidos na busca da "liquidez". Assassinada pelos modelos, a realidade do dinheiro faz aparições no mundo abstrato da racionalidade e do equilíbrio, como o fantasma de Banquo assombrava Macbeth.
Depois de piruetas e salamaleques, "no final do dia, as conclusões não mudam", dispara o relatório. Os autores do trabalho do BIS imaginam tratar-se de uma adaptação de "Groundhog Day", o Dia da Marmota. O filme de Harold Ramis conta a história de um jornalista capturado pelo "feitiço do tempo", condenado a repetir, dia após dia, o mesmo Dia da Marmota. "Os economistas e autoridades estão sempre de volta aos dias pré-crise".
Para escapar dos grilhões da mesmice dos Dias da Marmota, o relatório sugere a apreciação de embaraçosas questões. O comportamento da inflação não pode ser considerado um guia seguro para um trajetória sustentável do produto potencial. Isto porque os desequilíbrios financeiros nos balanços de bancos, empresas e famílias são construídos sobretudo quando a inflação é baixa e estável".
As marcas registradas desses desequilíbrios são as explosões de crédito e de preços dos ativos e a agressiva desconsideração dos solavancos dos mercados financeiros. Mais adiante, o relatório vai insistir nos riscos embutidos no comportamemto dos mercados financeiros pós-crise, empurrados para outra bolha nas bolsas e nos preços elevados (e rendimentos baixos) dos bônus privados e públicos. Enquanto a bolha cresce, o desempenho da "economia real" patina. "Isso tem tudo a ver com a forma de expansão do crédito. Ao invés de financiar a aquisição de bens e serviços, o que eleva os gastos e o produto, a expansão do crédito está simplesmente financiando a aquisição de ativos já existentes, sejam eles 'reais' (imóveis ou empresas) ou financeiros".
No pós-crise, na onda do "Quantitative Easing", "mercados" se dedicam, mais uma vez, ao esporte radical de formação de novas bolhas: as bolsas americanas e os rendimentos nanicos dos bônus do Tesouro fumegam os vapores que sopram às alturas os preços dos ativos. Nas horas vagas (nas outras também), os JP Morgan da vida se entregam à bulha da recompra das próprias ações e mandam bala na distribuição de dividendos com a grana do Federal Reserve.