Por: André | 09 Julho 2015
Pouco antes das 10h desta segunda-feira, o Papa Francisco foi de Quito a Guayaquil e dirigiu-se ao Santuário do Senhor da Divina Misericórdia, onde teve o seu encontro com os doentes e pessoas acometidas por diversos graus de deficiências.
A reportagem é de Xabier Villaverde e publicada por Religión Digital, 07-07-2015. A tradução é de André Langer.
Este santuário é o segundo maior de Guayaquil, iniciado em 2009 e concluído em 2013 com o financiamento de empresários e da Associação da Divina Misericórdia. Este era o santuário onde, inicialmente, seria celebrada a missa campal do Papa Francisco em Guayaquil. No entanto, o Governo questionou a idoneidade do lugar pelas condições e a falta de segurança que oferecia.
Este santuário é um símbolo do tipo de espiritualidade que predominou na Igreja nos últimos anos. Diante da oposição do governo, foi escolhido como alternativa o Parque dos Samanes, mas ficou na agenda este breve encontro com os doentes no Santuário da Divina Misericórdia.
No templo, Francisco recebeu o carinho dos fiéis. Antes de chegar perto do altar para rezar diante da imagem, o Papa deteve-se para abençoar uma pessoa doente que estava prostrada em uma maca. Depois convidou todas as pessoas para rezarem a Ave-Maria e dirigiu-lhes estas palavras: “Levo todos vocês no coração. Digo a Jesus Cristo: vós conheceis o nome dos que estão aqui e peço-vos que tenhais muita Misericórdia, que nos cubrais com sua misericórdia e Nossa Senhora esteja sempre ao lado de vocês”.
Depois, permitiu-se fazer uma brincadeira: “Vou dar a bênção a todos vocês. Não, não vou cobrar nada, mas peço-lhes, por favor, que rezem por mim. Prometem? Que vos abençoe o Deus Todo-poderoso, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Obrigado pelo testemunho cristão”.
Uma vez mais quebrou todo tipo de protocolo e, apesar dos controles que os encarregados pela segurança queriam impor, aproximou-se das pessoas e das crianças.
A missa campal nos Samanes
Em um carro simples, um Fiat, que é utilizado para os seus deslocamentos quando não usa o papa-móvel, chegou ao Parque dos Samanes, onde já estava reunida uma multidão de cerca de um milhão de pessoas. O Papa usou nesta cerimônia um báculo simples de madeira e presidiu a eucaristia dedicada à família.
O texto do Evangelho das Bodas de Caná (Jo 2, 1-11) foi o que ofereceu os elementos para a sua homilia, onde, empregando uma linguagem simples, assinalou: “As bodas de Caná repetem-se em cada geração, em cada família, em cada um de nós e nossas tentativas de fazer com que o nosso coração consiga apoiar-se em amores duradouros, fecundos e alegres. Demos um lugar a Maria, ‘a mãe’, como diz o evangelista. Façamos com ela, agora, o itinerário de Caná.
Maria está atenta àquelas bodas já iniciadas, é solícita às necessidades dos noivos. Não se fecha em si mesma, não se encerra em seu mundo; seu amor a faz ‘ser para os outros’. Também não busca as amigas para comentar sobre o que está acontecendo e criticar a má preparação das bodas e como está atenta com sua discrição se dá conta de que falta vinho.
O vinho é sinal de alegria, de amor, de abundância. Quantos de nossos adolescentes e jovens percebem que em suas casas, há muito que já não tem desse vinho. Quantas mulheres, sozinhas e entristecidas, se perguntam quando o amor foi embora, quando o amor se escorreu da sua vida!
Quantos idosos se sentem excluídos da festa das suas famílias, abandonados num canto e já sem beber do amor cotidiano de seus filhos, de seus netos, de seus bisnetos. Também a falta desse vinho pode ser o efeito da falta de trabalho, das doenças, de situações problemáticas que as nossas famílias em todo o mundo atravessam. Maria não é uma mãe ‘reclamona’, também não é uma sogra que espia para se consolar com as nossas inexperiências, com os nossos erros ou descuidos. Maria simplesmente é mãe! Permanece ao nosso lado atenta e solícita.”
Nesse momento convidou todas as pessoas presentes para gritarem: Maria é mãe! Grito que foi repetido várias vezes pelos participantes. “Maria, no momento em que percebe que falta o vinho, vai com confiança ao encontro de Jesus; isto significa que Maria reza. Vai a Jesus, reza. Não vai ao chefe da mesa; apresenta a dificuldade dos esposos diretamente ao seu Filho.
A resposta que recebe parece desalentadora: ‘O que podemos você e eu fazer? Ainda não chegou a minha hora’ (Jo 2, 4). Mas, entretanto, já deixou o problema nas mãos de Deus. A sua solicitude pelas necessidades dos outros apressa a ‘hora’ de Jesus. E Maria é parte dessa hora, desde o presépio até a cruz.
Ela soube ‘transformar um curral de animais na casa de Jesus, com alguns pobres panos e uma montanha de ternura’ (Evangelii Gaudium, 286) e recebeu-nos como filhos quando uma espada atravessava o coração de seu Filho. Ela nos ensina a deixar as nossas famílias nas mãos de Deus; ensina-nos a rezar, acendendo a esperança que nos indica que nossas preocupações também são preocupações de Deus.
E rezar sempre nos arranca do perímetro das nossas preocupações, fazendo-nos transcender aquilo que nos magoa, aquilo que nos agita ou que falta a nós mesmos e nos ajuda a nos colocarmos na pele dos outros, a nos colocar em seus calçados. A família é uma escola onde a oração também nos recorda que há um nós, que há um próximo vizinho, parente, que vive sob o mesmo teto, compartilha a vida e está necessitado.
E, finalmente, Maria age. As palavras ‘façam o que Ele lhes disser’ (v. 5), dirigidas aos que serviam, são um convite também para nós, para nos colocarmos à disposição de Jesus, que veio para servir e não para ser servido. O serviço é o critério do verdadeiro amor. Quem ama serve, coloca-se a serviço dos outros. E isto se aprende especialmente na família, onde nos tornamos servidores uns dos outros por amor.
Dentro da família, ninguém é descartado, todos têm o mesmo valor. Lembro-me que certa vez perguntaram à minha mãe: a qual dos seus cinco filhos (nós somos cinco irmãos), a qual dos seus cinco filhos quer mais? E ela disse: ‘como os dedos, se me machucam este, dói o mesmo que se me machucarem este’. Uma mãe quer os seus filhos como são e em uma família os irmãos se querem como são, ninguém é descartado, ali na família ‘aprende-se a pedir licença sem servilismo, a dizer obrigado como expressão duma sentida avaliação das coisas que recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância, e a pedir desculpa quando fazemos algo de mal. Estes pequenos gestos de sincera cortesia ajudam a construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia’ (Laudato si’).
A família é o hospital mais próximo – quando uma pessoa está doente é cuidada ali enquanto é possível –, a família é a primeira escola das crianças, é o grupo de referência imprescindível para os jovens, é o melhor asilo para os idosos. A família constitui a grande ‘riqueza social’, que outras instituições não podem substituir, devendo ser ajudada e reforçada para não perder nunca o justo sentido dos serviços que a sociedade presta aos seus cidadãos.
Com efeito, estes serviços que a sociedade presta aos cidadãos não são uma forma de esmola, mas uma verdadeira ‘dívida social’ para com a instituição familiar, que é a base e que tanto contribui para o bem comum de todos. A família também forma uma pequena Igreja, a chamada ‘Igreja doméstica’ que, junto com a vida, canaliza a ternura e a misericórdia divina.
Na família a fé se mistura com o leite materno: experimentamos o amor dos pais, sentimos mais próximo o amor de Deus. E na família, e disto todos somos testemunhas, os milagres se fazem com o que há, com o que somos, com o que se tem à mão. Muitas vezes não é o ideal, não é o que sonhamos nem o que ‘deveria ser’.
Há um detalhe que nos deve fazer pensar: o vinho novo, esse vinho tão novo como diz o chefe da mesa nas bodas de Caná, nasce das talhas de purificação, isto é, do lugar onde todos haviam deixado seu pecado; nascem do pior, porque ‘onde abundou o pecado, superabundou a graça’ (Rm 5, 20).
E na família de cada um de nós e na família comum que todos formamos, nada é descartado, nada é inútil. Pouco antes de começar o Ano Jubilar da Misericórdia, a Igreja realizará o Sínodo Ordinário dedicado às famílias, para amadurecer um verdadeiro discernimento espiritual e encontrar soluções e ajudas concretas para muitas dificuldades e importantes desafios que a família hoje deve enfrentar. Convido-os para intensificar a oração por esta intenção, para que mesmo aquilo que nos parece impuro, a água das talhas, que nos escandaliza ou espanta, Deus – fazendo-o passar por sua ‘hora’ – possa milagrosamente transformá-lo.
A família hoje necessita deste milagre. E toda esta história começou porque ‘não tinham vinho’, e tudo se pôde fazer porque uma mulher – Nossa Senhora – esteve atenta, soube colocar nas mãos de Deus suas preocupações e agiu com sensatez e coragem. Mas, não é menos significativo o detalhe final: saborearam o melhor dos vinhos. E essa é a boa notícia: o melhor dos vinhos ainda não foi bebido, o gracioso, o mais profundo e o mais belo para a família está por vir.
Está por vir o tempo em que vamos saborear o amor cotidiano, onde nossos filhos redescobrem o espaço que partilhamos, e os mais velhos estão presentes no gozo de cada dia. O melhor dos vinhos está na esperança, está por vir para cada pessoa que aposta no amor. E a família deve arriscar-se no amor, deve arriscar-se a amar. E o melhor dos vinhos está por vir, embora todas as variáveis e estatísticas digam o contrário; o melhor vinho está por vir naqueles que hoje veem desmoronar-se tudo.
Murmurem até acreditar nisso: o melhor vinho ainda está por vir. Murmure cada um em seu coração: o melhor vinho ainda está por vir. E sussurrem aos desesperados ou que desistiram do amor. Tenham paciência e tenham esperança, assim como Maria – rezem, atuem, abram seu coração – porque o melhor vinho está por vir.
Deus sempre se aproxima das periferias de quantos ficaram sem vinho, daqueles que só têm desânimos para beber; Jesus sente-se inclinado a desperdiçar o melhor dos vinhos com aqueles que, por uma razão ou outra, sentem que já se lhes romperam todas as talhas. Como Maria nos convida, façamos ‘o que Ele nos disser’ e agradeçamos, neste nosso tempo e nossa hora, pelo vinho novo, pelo melhor, nos faça recuperar a alegria de ser família, a alegria de viver em família. Que assim seja.”
Desta simples, mas ao mesmo tempo rica e profunda homilia vale a pena destacar alguns aspectos:
– O Papa destaca os aspectos positivos e “milagrosos” do amor. É serviço, é inclusivo e aberto aos outros. Ninguém pode ser marginalizado ou excluído na família. É a grande riqueza social.
– Estivemos acostumados a escutar mensagens onde fundamentalmente em muitos setores da Igreja se ressaltaram os perigos contra a família: o adultério, o divórcio, a contracepção, etc. No entanto, Francisco nos dá uma mensagem na qual aposta na alegria, na alegria cotidiana, na esperança e em arriscar-se a viver no amor: “a família deve arriscar-se no amor, deve arriscar-se a amar. E o melhor dos vinhos está por vir, embora todas as variáveis e estatísticas digam o contrário; o melhor vinho está por vir naqueles que hoje veem desmoronar-se tudo”.
– Uma mensagem sutil se expressa quando pede que se reze pelo Sínodo sobre a Família, que acontecerá em outubro próximo, “para amadurecer um verdadeiro discernimento espiritual e encontrar soluções e ajudas concretas para muitas dificuldades e importantes desafios que a família hoje deve enfrentar”. O Papa está consciente de que a Igreja não pode manter por mais tempo posições já caducas e que não respondem aos problemas e angústias das mulheres e homens de hoje. A mensagem de inclusão é e representa um programa do Papa. Mais que a moral, mais que as normas, a preocupação do Papa centra-se na dor e no sofrimento que as pessoas podem sofrer pela falta de amor.
– No parágrafo final ressalta essa mesma ideia: é preciso aproximar-se das “periferias de quantos ficaram sem vinho, daqueles que só têm desânimos para beber; Jesus sente-se inclinado a desperdiçar o melhor dos vinhos com aqueles que, por uma razão ou outra, sentem que já se lhes romperam todas as talhas” e convida para recuperar a alegria de ser e de viver em família.
Uma mensagem cheia de esperança e de confiança no poder do amor. Obrigado, Padre Francisco.
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O Papa às Famílias: “Tenham paciência, tenham esperança” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU