Por: Cesar Sanson | 07 Julho 2015
"A mistura explosiva entre o público e o privado, entre o Estado brasileiro e as grandes construtoras, ergueu um monumento à violência, à beira do Xingu, na Amazônia. Há algo de obsceno na arquitetura política e econômica de Belo Monte". O comentário é de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, em artigo no El País, 06-07-2015.
Eis o artigo.
A marca da corrupção no Brasil atual, assim como da relação explosiva entre o Estado e as empreiteiras, tem como símbolo a Operação Lava Jato e a Petrobras, para onde todos os olhos estão voltados. Sem ignorar a enorme importância dessa investigação, há elementos para suspeitar que o símbolo das ligações perigosas entre o público e o privado pode estar também em outro lugar: na construção da polêmica hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, na Amazônia.
É ela, um projeto acalentado ainda na ditadura, mas só executado na democracia, nos governos Lula-Dilma Rousseff, que une os fios desencapados da história recente do país, expõe a coleção de mazelas sociais do Brasil e nos obriga a compreender a corrupção também como um ato de extermínio. Belo Monte revela as vísceras de um modo de operação que se consolidou na ditadura, atravessou vários governos da democracia e permanece até hoje. A Amazônia, tanto como criadora de sentidos para o Brasil quanto como lugar concreto onde as disputas entre os vários atores se dá, não é a periferia do país, mas o centro. O que precisamos, talvez, seja deslocar o olhar para ajustar o foco.
Esse modo de operação, em que o público e o privado se misturam, é a chave para compreender o “Dossiê Belo Monte: Não há condições para a Licença de Operação”, documento publicado pelo Instituto Socioambiental no final de junho. Sabemos que o dinheiro que se esvai na corrupção no Brasil é também o dinheiro que falta para saneamento, educação e saúde, assim como para outros investimentos prioritários. Mas sempre fica um pouco abstrato. Em Belo Monte, é possível enxergar e quantificar o que a relação contaminada entre a concessionária Norte Energia e o governo federal já causou nos últimos anos, entre 2010 e 2015.
O anúncio recente de que o Tribunal de Contas da União (TCU) vai iniciar uma investigação sobre o uso de recursos públicos na construção da hidrelétrica de Belo Monte é uma boa notícia. Mas ainda é muito pouco e chega atrasada. A investigação do TCU atende a um pedido do Ministério Público Federal: as empreiteiras investigadas pela Lava Jato por desvios de recursos na Petrobras são as mesmas que constroem Belo Monte e, portanto, é importante investigar sua atuação juntou a outra estatal, a Eletrobras, esta do setor elétrico. Um dos delatores da Operação Lava Jato, Dalton Avancini, ex-presidente da construtora Camargo Corrêa, já afirmou, em um dos depoimentos, que a empreiteira se comprometeu a pagar ao PMDB uma propina de 20 milhões de reais para atuar na construção da usina.
O custo da hidrelétrica, segundo o TCU, é estimado hoje em 33 bilhões de reais. Na época do leilão estava orçado em 19 bilhões de reais, um aumento, portanto, mais do que considerável. A maior parte destes recursos vem do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Belo Monte é o mostruário – ou “monstruário”, como alguns preferem – de como o público e o privado se articulam na história recente do país. Mas, por atingir diretamente populações discriminadas, cujo modo de vida e o conhecimento têm sido desqualificados por séculos, caso dos indígenas e ribeirinhos, assim como uma região distante do centro político e econômico do país, suas violações foram toleradas enquanto a usina virava fato consumado à beira de um dos rios mais importantes da Amazônia.
Neste artigo, apresento a mais recente radiografia sobre o legado que a usina já deixou ao Brasil, antes mesmo de começar a funcionar, mas também busco compreender por que imaginários e caminhos históricos permitimos que algo assim aconteça no século 21 e na democracia. Este é um momento crucial, já que Belo Monte espera que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) dê a Licença de Operação.
1) Arquitetura da destruição
É preciso observar com atenção a trajetória de Belo Monte, para compreender a relação entre governos e empreiteiras. Em 2010, ainda no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, pouco antes do leilão da hidrelétrica, duas gigantes do setor de construção, Odebrecht e Camargo Corrêa, anunciaram que haviam se retirado do processo, por falta de “condições econômico-financeiras que permitissem sua participação na disputa”. Dito de outro modo: o lucro não estava garantido. Às pressas, o governo formou o consórcio Norte Energia, para assegurar a disputa, já que só havia um outro consórcio candidato, o Belo Monte Energia, do qual participavam a Andrade Gutierrez, Vale, Eletrosul, Furnas, Companhia Brasileira de Alumínio e Neoenergia.
O consórcio formado pelo governo foi o vencedor do leilão. Era composto por uma subsidiária da Eletrobrás, a Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco), e algumas construtoras de menor porte. Chegou a ser chamado na imprensa de “consórcio das desconhecidas”. Na ocasião, o então presidente do consórcio Norte Energia e diretor da Chesf, José Ailton de Lima afirmou, com toda a razão, que as condições de financiamento oferecidas pelo BNDES para a construção de Belo Monte “talvez sejam uma das melhores do mundo”.
O mais interessante vem agora: as construtoras que participavam do consórcio vencedor preferiram deixá-lo depois do leilão. Hoje, a Norte Energia é formada principalmente por estatais do setor, como Eletrobrás, Eletronorte e a própria Chesf, e por fundos de pensão (Petros e Funcef). Em resumo: em grande parte é pública. Cerca de 50% da composição acionária pertence a empresas controladas direta ou indiretamente pela União.
Para construir a hidrelétrica, a Norte Energia contratou o terceiro elemento da arquitetura política e econômica da usina: o Consórcio Construtor Belo Monte. E, adivinhem quem faz parte dele? Sim, as gigantes do setor de construção, Odebrecht e Camargo Corrêa, que desistiram de participar do leilão por falta de “condições econômico-financeiras”; a outra gigante, a Andrade Gutierrez, que participava do consórcio perdedor; e as construtoras que participavam do consórcio vencedor, mas o deixaram após vencer o leilão. Podemos concluir que construir Belo Monte, contratada pela Norte Energia, mostrou-se um negócio muito melhor para as empreiteiras.
Há ainda dois pontos importantes para entender o que vem a seguir. Diante das violações de direitos e da série de descumprimentos da Norte Energia, o Ministério Público Federal entrou com mais de 20 ações contra a empresa. Em algumas destas ações, quando o MPF conquistou uma decisão liminar que determinava a suspensão das obras da usina até que as medidas (condicionantes) acordadas para a construção da hidrelétrica fossem cumpridas, a Advocacia-Geral da União invocou um instrumento autoritário: “a suspensão de segurança”. Este instrumento é concedido pela presidência de um tribunal, que não analisa o mérito da questão, apenas se limita a mencionar razões como “ordem, saúde, segurança e economia públicas”. No caso, alegava-se que era preciso manter o cronograma da obra e, portanto, ela não poderia ser paralisada por uma decisão judicial provisória. O uso da “suspensão de segurança” garantiu que, quando o mérito da ação for finalmente julgado em última instância, o que levará anos, Belo Monte já será fato consumado, como testemunhamos acontecer.
Outro ponto que chama a atenção é a forma como foram tratados os protestos contra as arbitrariedades de Belo Monte, assim como as várias paralisações de operários. O governo usou a Força Nacional para reprimir tanto as manifestações de indígenas, ribeirinhos, agricultores e moradores urbanos atingidos pela hidrelétrica quanto as greves de trabalhadores nos canteiros da obra. Uma escolha surpreendente para um governo democrático.
A pergunta óbvia é: onde acaba o público e começa o privado? Belo Monte é, ao mesmo tempo, uma obra controlada em parte por estatais, financiada em grande parte por um banco público e cujas posições da empresa são defendidas pela Advocacia-Geral da União. Ao mesmo tempo, também é o governo o responsável, via órgãos como Ibama e Funai (Fundação Nacional do Índio), por fiscalizar o cumprimento dos acordos e o respeito aos direitos das populações atingidas.
É bastante visível que há algo de obsceno nessa arquitetura.
No dossiê sobre Belo Monte, a seguinte afirmação explicita a obscenidade: “Talvez o maior desafio de Belo Monte consista em superar o conflito de interesses e as contradições inerentes ao fato de se tratar de uma obra pertencente ao governo federal, que é, a um só tempo, executada, financiada e fiscalizada pelo mesmo”. O dossiê mostra também que o grosso das informações sobre as ações e o impacto da construção de Belo Monte vem dos relatórios feitos e enviados periodicamente pela Norte Energia. Em resumo: o Ibama fiscaliza com base no que é dito pelo objeto de sua fiscalização.
Ainda assim, ao longo do processo de licenciamento de Belo Monte, foram abertos diversos processos administrativos contra a Norte Energia, que culminaram em multas no valor total de 15 milhões de reais. Segundo o dossiê, nenhuma delas foi paga até hoje.
É difícil imaginar um mundo mais amoroso para a Norte Energia e para o Consórcio Construtor Belo Monte do que este que os governos Lula-Dilma Rousseff criaram. Também é difícil imaginar um mundo mais perverso para as populações atingidas e para o meio ambiente do que este que os mesmos governos criaram. Mas o que precisamos entender é que população atingida é também todo o conjunto de cidadãos brasileiros – e de várias maneiras.
Essa espantosa arquitetura é denunciada há anos por organizações socioambientais, lideranças do movimento social do Xingu e especialistas do setor. Em 2011, Célio Bermann, pesquisador da área energética e professor da Universidade de São Paulo, fez uma análise profunda sobre o que afirmou serem as razões reais pela qual se atropelava a lei para construir Belo Monte (leia aqui). Mais tarde, Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu que há uma década é obrigado a andar com escolta policial por estar ameaçado de morte pela sua defesa dos povos da floresta, deu um testemunho impactante sobre como os movimentos sociais foram atropelados no processo (leia aqui). Dom Erwin auxiliou o Papa em sua recente encíclica sobre a mudança climática, ao relatar a situação da Amazônia. O procurador da República no Pará Felício Pontes foi um dos membros do Ministério Público Federal que chamaram repetidamente a atenção para a tragédia anunciada, na esperança de evitá-la (leia aqui).
A pergunta é: por que não foram escutados?
2) Os espelhinhos do século 21
Se o Ibama der a Licença de Operação à Belo Monte, há poucas dúvidas de que, no momento em que se iniciar o enchimento do reservatório da hidrelétrica, tudo o que foi violado e descumprido pela Norte Energia e pelo atual governo também será tão fato consumado – e impune – quanto a usina gigantesca. Desta vez, não dá para empurrar o cumprimento do que não foi cumprido para a próxima etapa, porque não haverá próxima etapa.
Tornou-se uma alegoria do “descobrimento” do Brasil a troca com os indígenas de bens de valor para os europeus por espelhinhos, objetos que a população originária nunca tinha visto. Em Belo Monte, essa prática foi adaptada ao momento histórico, alterando-se a lista de mercadorias, e reeditada, consumando um processo de extermínio cultural e criando uma situação de insegurança alimentar em aldeias afetadas pela hidrelétrica. Para se ter um quadro mais amplo do ovo da serpente, leia “A anatomia de um etnocídio”, em que Thais Santi, procuradora da República em Altamira, faz a relação entre conceitos da filósofa Hannah Arendt e Belo Monte, com ênfase na eliminação da cultura dos povos indígenas no raio de ação da maior obra em andamento no país.
O dossiê do Instituto Socioambiental mostra que, durante dois anos, a Norte Energia deu uma espécie de “mesada” para as aldeias atingidas, no valor de 30.000 reais. Funcionava assim: os caciques enviavam a lista de mercadorias e a empresa as entregava. Segundo a Norte Energia, 212 milhões de reais foram gastos com os povos indígenas. Mas, em vez de o dinheiro ser investido na redução e na compensação dos impactos, foi usado na compra dos espelhinhos deste milênio: barcos e voadeiras, motores para barcos e voadeiras, milhões de litros de gasolina, caminhonetes (mesmo em aldeias onde não havia estradas), camas boxer, TVs de plasma, açúcar, refrigerantes, bolachas e salgadinhos, entre outros.
Essa operação deflagrou, segundo técnicos que a testemunharam, “um dos processos mais perversos de cooptação de lideranças indígenas e desestruturação social promovidos por Belo Monte”. Em documento, o Distrito Sanitário Especial Indígena de Altamira (DSEI), subordinado ao Ministério da Saúde, assim se manifesta:
“A partir de setembro de 2010, com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, os indígenas passaram a receber cestas de alimentos, composta por alimentos não perecíveis e industrializados. Com isso os indígenas deixaram de fazer suas roças, de plantar e produzir seus próprios alimentos. Porém, em setembro de 2012, tal ‘benefício’ foi cortado, os indígenas ficaram sem o fornecimento de alimentos e já não tinham mais roças para colher o que comer, o que levou ao aumento do número de casos de crianças com Peso Baixo ou Peso Muito Baixo Para a Idade, chegando a 97 casos ou 14,3%”.
Em outro ponto do documento, o DSEI de Altamira relaciona o aumento dos casos de “doença diarreica aguda” em 2010 à atuação da Norte Energia nas aldeias:
“Em 2010 registramos um aumento considerável, já que numa população de 557 crianças menores de 5 anos ocorreram 878 casos, o equivalente a 157% dessa população ou 1.576,3 para cada 1.000 crianças. (…) Mudanças nos hábitos alimentares com a introdução de alimentos industrializados oriundos de recursos financeiros das condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte é outro fator contribuinte para o alto índice existente”.
A desnutrição infantil nas aldeias da região, conforme dados do dossiê, aumentou 127% entre 2010 e 2012. Um quarto das crianças está desnutrida. No mesmo período, ainda segundo o dossiê, o atendimento de saúde a indígenas cresceu 2.000% (dois mil por cento) nas cidades do raio de impacto de Belo Monte. A situação é tão aterradora que, em 2014, técnicos da Funai recomendaram a aquisição de cestas básicas para enfrentar a vulnerabilidade alimentar das comunidades. Dito de outro modo: cestas básicas para impedir que indígenas, que antes de Belo Monte tinham autonomia alimentar, hoje morram de fome ou de doenças causadas pelo consumo repentino e indiscriminado de produtos industrializados, assim como pela interrupção do plantio, pesca e coleta de alimentos, causado pelo ingresso dos mesmo produtos.
O dossiê também mostra que a hidrelétrica já deixou um “rastro de degradação ambiental e social dificilmente reversível”. Segundo técnicos do Ibama ouvidos para a elaboração do documento, Belo Monte se transformou num “sumidouro de madeira”. Boa parte da madeira gerada pela obra apodreceu. As toras não foram sequer reaproveitadas na construção da usina, como era exigido. Ao mesmo tempo, a Norte Energia comprou enormes quantidades de madeira – 17.000 metros cúbicos só até dezembro de 2012 – de fornecedores externos. Essa demanda repentina é justamente o que os programas ambientais lutam para evitar, já que a madeira comercializada na região é quase toda ela obtida na ilegalidade.
Os índices de exploração ilegal de madeira dispararam na área de influência da obra. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela usina, foram extraídos 200.000 metros cúbicos de madeira só em 2014. Essa quantidade é suficiente para encher mais de 13.000 caminhões madeireiros. Em 2013, a TI Cachoeira Seca foi a mais desmatada do Brasil.
Qual é a troca, de fato, entre a Norte Energia e os povos indígenas?
A resposta talvez esteja na conclusão de uma indígena Araweté, ao testemunhar as mercadorias entrando em sua aldeia. Ela disse ao antropólogo Guilherme Heurich: “As mercadorias são a contrapartida de nossa morte futura”.
3) Somos filhos de quem?
Para além do engendramento concreto de uma operação política e econômica como a de Belo Monte, é preciso compreender como a população brasileira foi alertada para o que aconteceria, ainda que bem menos do que deveria, e mesmo assim a indignação ficou circunscrita a setores da sociedade, sem alcançar o conjunto dos brasileiros. Belo Monte é um escândalo que não foi decodificado pelo senso comum como escândalo. Em parte, porque uma parcela significativa da imprensa não o tratou assim. Mas, se não nos compreendermos na História, há poucas chances de que essa história, a de Belo Monte, não volte a se repetir em outras regiões amazônicas.
A ideia que o senso comum ainda hoje tem da Amazônia é a de uma propaganda, a da ditadura militar. Uma propaganda muito eficaz e que, combinada à ignorância da maioria sobre a região, persiste até hoje. É na ditadura que a Amazônia se torna uma imagem para consumo de massa.
Até então, as notícias chegavam à população na forma de informações vindas de uma geografia nebulosa, tão fascinante quanto assustadora, em que se misturavam eldorado, aventura e perigo. Soldados da borracha, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, Fordlândia, Marcha para o Oeste, assim como os nomes do Marechal Cândido Rondon e dos Irmãos Villas-Bôas, eram, entre outros, capítulos de uma história fragmentada para a maioria dos brasileiros.
A ditadura dá uma imagem coesa à Amazônia. E a dá como propaganda. A Amazônia torna-se então “o deserto verde” ou “o deserto humano”. Torna-se também “a terra sem homens para homens sem terra”. O imperativo de “integrar para não entregar” é um slogan publicitário, invocando uma ameaça externa reeditada até hoje, sempre que convém, para garantir a adesão da população. Como já se provou, a maioria adora um nacionalismo de ocasião, mesmo que falso. Assim, a Amazônia se torna a expressão de um vazio de gente e de uma riqueza incalculável a ser tomada, garantida e explorada. Primeiro a terra, depois o subsolo. E, como é um regime de exceção, as vozes de resistência que conflitam com essa narrativa são abafadas ou mesmo silenciadas.
Nessa propaganda há falsificações muito atuais, apesar de todos os avanços alcançados na redemocratização e apesar da garantia de direitos aos povos indígenas e às comunidades tradicionais na Constituição de 1988. A primeira ideia é de que não há gente na Amazônia. É preciso, portanto, levar gente para lá, para ocupar o território, garantir a soberania nacional e gerar riqueza. E como? Abrindo estradas como a Transamazônica, criando projetos de colonização com agricultores do sul e nordeste, aumentando a presença do Exército nas fronteiras.
Na propaganda da ditadura, povos indígenas e populações ribeirinhas não são gente, ou pelo menos não são “a gente certa”. Quando a admissão de sua existência é obrigatória, são gente primitiva que precisa ser assimilada e salva pelo progresso. Já que, se não fossem assim considerados, a Amazônia não poderia ser vendida à população como um vazio ou um deserto humano. Nem poderia ser ocupada. O que a ditadura fez com os povos da floresta, em especial com os indígenas, é uma história que ainda precisa ser melhor contada. A Comissão da Verdade que apurou os crimes da ditadura estima que mais de 8 mil indígenas foram assassinados no período. É também nos anos do regime de exceção que a imagem dos indígenas como “entraves ao progresso” é incrustrada no senso comum.
A Realidade, a mais celebrada revista de grandes reportagens do jornalismo brasileiro, fez, em 1971, uma edição antológica, toda ela dedicada à Amazônia. Se as reportagens realizadas por alguns dos maiores repórteres e fotógrafos brasileiros do século 20 continuam impressionantes, há duas outras partes desta revista que também se tornaram um documento de grande relevância: a parte de opinião, com a fala de ministros, generais e coronéis da ditadura, e a parte dos anúncios publicitários. Estes são uma preciosidade para compreender o imaginário da época e, assim, entender de onde viemos nós, que berramos que “a Amazônia é nossa!”, mas nem por isso nos responsabilizamos por ela.
Como já destaquei neste espaço, há um entre os tantos discursos da página de opinião da Realidade Amazônia que ilustra com total clareza a mentalidade vigente. É o do gaúcho Carlos Aloysio Weber, então coronel e ex-comandante do 5o Batalhão de Engenharia e Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura civil-militar. Até hoje ele é nome de escolas em Rondônia, entre outras homenagens públicas. O coronel é apresentado como “lendário” naquele estado, afirmação que suscita arrepios. A pergunta do jornalista é a seguinte: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu:
- Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se.
E continua:
- Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho.
Pois é. Se os crimes da ditadura tivessem sido apurados e punidos, é possível que militares como este tivessem sido colocados na cadeia.
Se falas como a desse coronel podem soar absurdas hoje, ao acompanharmos grandes obras como a hidrelétrica de Belo Monte é possível perceber que essa ideia continua muito presente. Continua ainda muito atual, apenas com alguns disfarces, já que estamos num período democrático. Neste momento, os direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição de 1988 estão sendo atacados pelo atual Congresso, graças ao tamanho e ao poder da bancada ruralista, aliada às bancadas da bala e da bíblia. Há vários projetos de emenda constitucional que buscam esvaziar os direitos dos povos da floresta, como a PEC-215. Como não é mais possível tratar os indígenas como “não gente”, agora o que se diz deles é que “têm terra demais” ou que “não são índios de verdade”.
Como os indígenas se tornaram o que se chama de “sujeitos de direitos”, é preciso tirar deles tanto o “sujeito” – razão da frase “não são índios de verdade” – quanto o “direito” – “têm terra demais”. Essa parte está contada de forma aprofundada em outros dois artigos: “Os índios e o golpe na Constituição” e “Índios, os estrangeiros nativos”.
O indígena tem um lugar como alegoria no imaginário nacional, como um componente de formação cristalizado no passado, quase uma gravura. Mas sua existência concreta, sua história em movimento, e, principalmente, sua resistência como protagonista histórico, o torna perturbador. A ideia dos povos indígenas como “entraves”, agora não mais ao progresso, mas ao “desenvolvimento”, persiste no senso comum. E “entraves” precisam ser “removidos”. Seja pelo extermínio direto, o que já não é possível numa democracia, seja pelo extermínio cultural, como a Norte Energia e o governo fizeram – e estão fazendo – em Belo Monte.
A aposta de setores da sociedade, como os representantes do agronegócio e da mineração, ainda hoje, como costuma afirmar o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (leia aqui), é “na conversão do índio em pobre”, da floresta para as favelas. Devidamente transferidos para as periferias urbanas, abre-se caminho para a exploração privada de suas terras ancestrais.
O imaginário sobre a Amazônia e os povos da floresta tem sido construído ao longo de décadas. Esta é uma das explicações possíveis para a evidência de que uma parcela significativa dos brasileiros assimila o extermínio cultural dos indígenas em Belo Monte com pouco ou nenhum escândalo. Somos tanto herdeiros quanto reprodutores desta propaganda, e a maioria continua ainda agora confundindo propaganda com verdade. Tanto sobre o imaginário da Amazônia quanto sobre outras duas fraudes: a de que hidrelétrica na floresta é “energia limpa” e a de que, se Belo Monte não fosse construída, assim como as grandes hidrelétricas da Amazônia, não teríamos eletricidade para assistir à novela. Essa simplificação da complexa questão das fontes e do consumo de energia, num planeta assolado pela mudança climática, está a serviço de interesses poderosos que pouco têm a ver com as necessidades concretas da população.
A ignorância, porém, de modo algum nos absolve. Neste momento, isso nos faz cúmplices de etnocídio. Hoje, nem a imprensa nem nenhum brasileiro pode usar a desculpa de que está amordaçado pela censura de um regime de exceção.
4) Empreiteiras e Estado, uma longa lua de mel à brasileira
A outra falsificação da propaganda da ditadura sobre a Amazônia que persiste até hoje é a da Amazônia como um corpo a ser violado e ocupado. Esse corpo é esvaziado de sujeito e, assim convertido, torna-se um objeto. E, como objeto, é um objeto de exploração.
Neste sentido, talvez a imagem mais emblemática é a do general Emílio Garrastazu Médici, presidente durante o período mais sangrento da ditadura, entre 1969 e 1974. Em entrevista já citada, Dom Erwin Kräutler conta do dia em que testemunhou o general celebrar a Transamazônica, no início dos anos 70. O ato simbólico de Médici para marcar o poder do homem sobre a natureza, tão típico da modernidade, foi a derrubada de uma castanheira gigantesca. Neste gesto, podemos pensar numa alusão ao poder do regime sobre os corpos torturados nos porões da ditadura até serem esvaziados também eles de sujeito:
- Ele (Médici) deu início às obras. Todo o pessoal delirando no palanque... delirando mesmo! Batendo palmas! Gente, derrubando uma árvore daquelas! E dizendo que era o progresso que estava chegando. Cortou-me o coração... Como é que pode? Aplaudir que a rainha das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com um estrondo tremendo. Como é possível? Está escrito na placa que roubaram: "O presidente da República dá início à conquista deste gigantesco mundo verde".
A conquista da Amazônia era então representada pela derrubada da castanheira, a árvore torturada até a morte por ordem do general. O lugar que marca esse evento em Altamira é conhecido como “Pau do Presidente”. O que é muito significativo. O presidente fálico, potente, por um lado. Mas, por outro, de quem é o pau que ele cortou?
Essa ideia, a da Amazônia como corpo para exploração, corpo sem sujeito, a ser dominado, submetido e violado, que ganha uma forma na ditadura e símbolos como este, continua bastante hegemônica no senso comum. É essa visão que prevalece hoje na política de grandes hidrelétricas na Amazônia dos governos Lula-Dilma Rousseff. O que é a imagem da hidrelétrica de Belo Monte, aquela monstruosidade humana imposta sobre a floresta lá no meio do Xingu? Não seria ela também uma espécie de falo, mas agora deslocado, já que os tempos são outros? O que significa uma obra como esta no momento em que o mundo teme a mudança climática causada pela ação do homem?
As empreiteiras da Transamazônica e das grandes obras da ditadura são em grande parte as mesmas que construíram Belo Monte na democracia. Hoje, algumas delas têm diretores e donos na cadeia. A ditadura foi a lua de mel das empreiteiras com o poder e, desde então, o Planalto e as empreiteiras são íntimos. Os governos Lula-Dilma marcam um momento de muita sintonia nessa relação, mas estão longe de ser os únicos. A “conquista” da Amazônia é um projeto do Estado brasileiro com as grandes empreiteiras que atravessa governos da ditadura e da democracia. É algo, portanto, que precisa ser entendido dentro de um contexto amplo sobre como o público e o privado foram se articulando na história brasileira.
O historiador Pedro Henrique Pedreira Campos disseca essa relação numa tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense (disponível para leitura aqui). A tese virou o livro “Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar”, lançado em 2014 pela editora da UFF. As grandes empreiteiras se nacionalizaram justamente nos anos JK (governo de Juscelino Kubitschek, 1955-1960), com a construção de Brasília. Antes, as empreiteiras eram regionais. Elas construíram concretamente Brasília e, simbólica e concretamente, nunca mais saíram de Brasília.
Alguns exemplos: a ponte Rio-Niterói foi feita por um consórcio que envolveu Camargo Corrêa e Mendes Júnior. Itaipu foi feita pela Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Mendes Júnior. A Transamazônica envolveu Mendes Júnior e Camargo Corrêa. Belo Monte é construída por um consórcio de várias empreiteiras, entre elas Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa.
As empreiteiras, portanto, são as mesmas antes da ditadura, durante a ditadura e na redemocratização do país. O país mudou de regime, ganhou nova Constituição, mas as empreiteiras continuaram as mesmas. Há uma frase sobre essa relação, no livro de memórias de Samuel Wainer, polêmico homem de imprensa: “Naquele momento, eu conheci uma figura indispensável à decifração dos segredos do jogo do poder no Brasil: o empreiteiro”. Nada mais atual.
Uma história interessante da relação entre empreiteiras, Estado e Amazônia pode ser contada pela figura de Cecílio do Rego Almeida, falecido em 2008, que era simultaneamente dono da construtora CR Almeida e “o maior grileiro do mundo”. Ele havia ocupado na Amazônia uma área de cerca de 6 milhões de hectares, composta por terras indígenas, terras públicas e assentamentos do Incra, que ficou conhecida como “Ceciliolândia”.
A área que ele se apropriou ilegalmente era equivalente à soma dos territórios da Bélgica e da Holanda, em plena Terra do Meio, no Pará. O empreiteiro tornou-se conhecido como “Dom Ciccillo” durante a ditadura, quando a CR Almeida abocanhou 37 grandes obras federais e se tornou uma potência. Até morrer ele costumava se referir ao regime de exceção como “a mais leve das ditaduras”.
Quando Marina Silva era ministra do Meio Ambiente, Dom Ciccillo a chamava de aquela “indiazinha totalmente doente e analfabeta”. A Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro de Lula, coube o epíteto de “viado”. Ao se referir a Chico Mendes, era nos seguintes termos: “Aquele seringueiro que se fodeu”. Esta era a pessoa. E o personagem. Para conhecê-lo melhor, sugiro uma reportagem da revista Caros Amigos, feita pelo jornalista João de Barros, em 2005 (reproduzida aqui).
O mais curioso, porém, aconteceu dois anos atrás, em 2013. Naquele ano, o então deputado federal André Vargas conseguiu aprovar na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados um projeto homenageando Cecílio do Rego Almeida. Vargas pretendia dar o nome do empreiteiro a um trecho da BR-277, entre Paranaguá e Curitiba, um dos principais do sul do País. Em 2014, como se sabe, André Vargas foi expulso do PT e cassado pela Câmara. Em 2015, foi preso pela Operação Lava Jato.
Dois anos atrás, porém, ele ainda era o vice-presidente da Câmara, bastante influente no PT e no Congresso. O projeto de lei era de 2009 e, no texto de justificativa, o deputado dizia o seguinte: “Seu trabalho, o do Cecílio do Rego Almeida, foi perseverante em seu objetivo, e agora, após a sua morte (...), este benemérito cidadão poderá receber a merecida homenagem”.
“Perseverante” é uma palavra e tanto para definir a vida pública de Dom Ciccillo, homenageado após sua morte por um deputado do Partido dos Trabalhadores. Em 2015, com o autor preso, o projeto foi arquivado no Senado.
A relação entre os governos Lula-Dilma, Norte Energia e o consórcio de construtoras na obra de Belo Monte deve ser desvendada a partir desse contexto mais amplo. Se ela tem suas especificidades – e de fato tem –, também não pode ser descolada de um modo de operação que ultrapassa este ou aquele governo e que está profundamente infiltrado no Estado brasileiro.
A “conquista” da Amazônia e todo o rastro de violências deixado por essa experiência não poderiam ter sido consumados ao longo da história do Brasil sem este outro tipo de “conquistador”. Em nossos dias, ele ganha o nome de “empreendedor”.
6) Altamira, o inferno sem verde
O Dossiê Belo Monte, lançado pelo Instituto Socioambiental, com a colaboração de técnicos que testemunham no cotidiano o impacto da hidrelétrica, mostra o que aconteceu com Altamira e os municípios da região atingida pelas obras. Entre 2011 e 2014, o número de assassinatos por ano em Altamira saltou de 48 para 86 casos, um aumento de 80%. A taxa é hoje de 57 por 100.000 habitantes, cinco vezes superior ao índice de homicídios considerado pela organização mundial da saúde como “não epidêmico”.
O número de acidentes de trânsito nos últimos quatro anos saltou de 456 anuais para 1.169: um aumento de 144%. Só em 2014, o número de pacientes vítimas de acidentes de trânsito registrados no Hospital Regional de Altamira aumentou 213% com relação a 2013.
A situação do saneamento é aterradora. Foram construídos 220 quilômetros de redes de esgoto e 170 quilômetros de redes de abastecimento de água, mas nenhuma casa foi ligada ao sistema. Depois de mais de um ano discutindo de quem é a responsabilidade, a prefeitura de Altamira anunciou no fim de junho a disposição de criar uma empresa municipal para gerenciar o saneamento básico e realizar as ligações. A Norte Energia pagará o custo dessas obras. A iniciativa, porém, depende da aprovação do projeto pela Câmara de Vereadores.
As taxas de reprovação escolar nos cinco municípios afetados diretamente por Belo Monte cresceram 40,5% no ensino fundamental, entre 2011 e 2013, e 73,5% no ensino médio, entre 2010 e 2013. Em Altamira, o abandono da escola no ensino fundamental aumentou 57%, de 2011 para 2013. Professores da rede pública relatam que um grande número de adolescentes trocou a escola pelos canteiros de obras da usina.
Vale a pena botar uma lupa sobre o que se chama de “remoções”. Palavra “técnica” para o que na prática significa expulsão, o termo se tornou popular nas obras da Copa do Mundo de 2014. É curioso como aceitamos fácil as palavras e passamos a reproduzi-las. Aqui, “remoção” será usada sempre entre aspas, para manter o estranhamento que a palavra deveria nos provocar. Isso caso fosse eu ou aquele que lê este texto o “removido” de sua casa e do seu mundo em nome do “desenvolvimento”.
No caso de Belo Monte, mais de 8.000 famílias – cerca de 40.000 pessoas – foram arrancadas – ou ainda serão – do lugar onde vivem, trabalham, têm laços de parentesco e vizinhança, memória e cotidiano. Mas, se a palavra “remover” é o primeiro estranhamento, a brutalidade maior é na forma como isso se deu. A população atingida, parte dela analfabeta, só teve assistência jurídica federal no início de 2015, quando a usina já se preparava para pedir ao Ibama a licença de operação. Em todos os anos de obra, ficou a mercê da Norte Energia e de sua equipe de dezenas de advogados. Depois de uma audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal em novembro de 2014, a Defensoria Pública da União fez um enorme esforço, já que faltam defensores em todo o Brasil sem que o governo se esforce para suprir essa falha, e formou uma força-tarefa.
O governo federal não se moveu para garantir acesso à justiça numa das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ao contrário, deixou a população abandonada. Mesmo quem mora nas grandes cidades e têm curso superior sabe o quanto a justiça e sua linguagem são capazes de tornar analfabeto até mesmo quem é pós-graduado. É fácil imaginar o impacto dessa realidade sobre agricultores e pescadores, assim como a população urbana e pobre dos baixões de Altamira, diante do poder da empresa concessionária.
O “empreendedor”, a nova roupagem, muito mais palatável, do conquistador ou colonizador, reproduz a lógica da dominação: para conquistar ou para colonizar é preciso impor ao outro a sua visão de mundo. Para conquistar e colonizar – ou para “empreender” – é preciso partir do princípio de que o outro que está lá não tem conhecimento nenhum. Ele, o “empreendedor”, é o sujeito do corpo que domina. Primeiro ao esvaziá-lo: no passado, de humanidade; no presente, de identidade. Depois, há o domínio concreto, ao tornar esse corpo aquilo que ele faz dele. Altamira vive essa realidade.
As histórias das “remoções” lotam páginas e páginas com relatos de violências. Houve quem tivesse saído e ao voltar para casa não encontrou nada no lugar. Houve quem assinou com o dedo um papel que não sabia ler. O que atravessou o processo, além da completa omissão do governo e do abuso de poder da Norte Energia, foi o total desinteresse em compreender qual era o modo de vida das famílias que arrancavam do lugar. Entender, para começar, o que era uma “casa” para elas. Para quem fez o cadastro, a ideia de casa e de cotidiano era aquela que traziam com eles de seus lugares de origem, tanto geográficos quanto de classe. É possível perceber em vários textos e discursos, inclusive da imprensa, o desprezo pelo que se chama de “casebres” ou mesmo “palafitas”.
Em uma reportagem que publiquei neste espaço, chamada “O pescador sem rio e sem letras”, contei uma destas histórias em que um Brasil apaga outro Brasil, o mais frágil e desamparado. Ao escutar a história de Otávio das Chagas e de sua família (leia aqui) fica claro o alcance do que lhes foi arrancado, quando toda a vida que conheciam, assim como as marcas que provam essa vida, viraram literalmente água. Ao me contarem sua história, sem nada para provar que existiram sobre uma ilha que já não mais existe, eles apontavam em total desespero as cicatrizes na única geografia que lhes restou: o próprio corpo.
Por esforço da Defensoria Pública da União, Otávio das Chagas conseguiu garantir uma casa num dos bairros construídos pela Norte Energia. Isso o tornou um privilegiado entre as vítimas de Belo Monte. Apenas 4% dos “removidos”, segundo o dossiê, receberam uma casa, por total falta de informação e de orientação na realização do cadastro e na negociação simulada que marcou o processo. Outros 75% receberam uma indenização que não lhes permite comprar uma moradia, já que os preços em Altamira explodiram desde o início da obra. E outros 21% tiveram uma indenização em forma de carta de crédito.
Aqueles que foram “realocados” ou “reassentados” estão distantes de seu modo de vida, de seu trabalho, de seus laços de afeto e de solidariedade, da única vida que conheciam. Muitos deles são, como Otávio das Chagas, pescadores sem rio e sem peixe, arrancados de suas ilhas e jogados num conjunto habitacional distante de tudo e no qual não se reconhecem. A imagem de Otávio das Chagas e de sua família diante desta casa, deslocados de seu mundo e também de si mesmos, mostra que o seu final apenas foi menos infeliz. Aqui, é a conversão de pescadores e agricultores em pobres que testemunhamos. Diz Otávio das Chagas, o transplantado de raízes decepadas e submersas:
- Eu só sei viver na beira do rio. Meus meninos também só conhecem trabalho de rio. É tão triste.
Em uma entrevista à repórter Letícia Leite, do Instituto Socioambiental, a conselheira tutelar de Altamira Edizângela Barros contou que a “remoção” de sua casa causou a primeira separação de dois dos seus filhos. Mesmo quando teve de passar uma noite nas ruas de Altamira, Edizângela conseguiu manter os filhos com ela. Com a “remoção”, longe de tudo e sem transporte público, não foi mais possível. O corte simbólico entre o que há de mais visceral, a relação entre uma mãe e seus filhos pequenos, sintetiza a lâmina de Belo Monte sobre dezenas de milhares de vidas humanas.
É neste ponto que a história está.
7) A guerreira Antonia Melo despede-se de sua casa com a espinha ereta
No sábado (4/7), houve uma festa de despedida para a casa de Antonia Melo, anunciada como uma celebração “das histórias de vida e da identidade amazônica”, assim como a “reafirmação da resistência aos grandes projetos do governo, como Belo Monte”.
Coordenadora do Movimento Xingu Vivo, aos 65 anos Antonia Melo é o símbolo da luta contra Belo Monte e uma das mais importantes lideranças da história do Xingu. Na defesa dos povos da floresta, dos agricultores, mulheres e crianças, Antonia viu companheiros tombarem por tiro de pistoleiro. Também ela frequentou listas de ameaçados de morte. Ao longo da batalha contra a hidrelétrica, deixou o PT e tornou-se uma crítica de Lula e de Dilma Rousseff.
Quando conta as humilhações sofridas por um e por outro em encontros no Planalto para discutir Belo Monte, seus olhos salgam-se. Em 2014, seu coração, ferido de tantas maneiras simbólicas, quase soçobrou. Apenas quase. Antonia fez uma cirurgia e se recuperou para voltar a denunciar as violências infligidas por aquela que só chama de “Belo Monstro”. Também ela, que já vive entre escombros dos vizinhos, será obrigada a deixar a casa na zona urbana de Altamira, em que vive há 30 anos, nas próximas semanas. Perguntei à Antonia Melo se sentia-se derrotada. Ela respondeu:
- Não. Eu nunca me curvei. Ainda não é o fim.
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Belo Monte, empreiteiras e espelhinhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU