02 Julho 2015
"Papas anteriores falaram corajosamente sobre a degradação ambiental, mas esta era principalmente uma questão secundária. Para Francisco ela é central. Ele é o primeiro papa vindo do sul global, e desde o início vem pedindo por uma “uma Igreja pobre para os pobres”.", escreve Paul Vallely, professor e autor do livro “Pope Francis — The Struggle for the Soul of Catholicism”, em artigo publicado pelo New York Times News Service, 26-06-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Nos dias imediatamente antes da sua publicação, os que se envolveram na elaboração da polêmica eco encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, estavam apreensivos sobre como o documento seria recebido pelos críticos conservadores. Mas o Papa Francisco, segundo me disseram algumas fontes vaticanas, não se preocupou. E assim permaneceu diante dos ataques que, de fato, se seguiram.
A aceitação do papa de que o aquecimento global se trata, quase certamente, de um efeito causado pela atividade humana irritou a minoria que defende visões mais céticas. Eles dizem que Francisco ignorou a capacidade da tecnologia em fornecer soluções para as mudanças climáticas. Eles já o haviam censurado por ignorar o papel dos livres mercados em tirar milhões da pobreza, e criticaram o seu repúdio ao controle de natalidade como uma resposta a um planeta superlotado.
A verdade é que Francisco previu tudo isso. À medida que a poeira vai baixando, após o vendaval que acompanhou a publicação da encíclica, um exame mais detalhado começa a revelar que o papa implantou dentro dela estratégias para rebater esses mesmos ataques. Laudato Si’ acaba por ser um dos documentos mais astutos emitidos pelo Vaticano durante o último século. Ele revelou Francisco como um político astuto e sofisticado de primeira ordem.
Francisco aprendeu uma lição com os conservadores americanos que chamaram a sua encíclica anterior, Evangelii Gaudium, de marxista. A Laudato Si’ contém uma série de defesas contra os críticos que a rejeitam como sendo obra de algum tipo de esquerdista dissidente.
A começar pelo seu nome, o documento se inspira nos escritos de Francisco de Assis. O santo do século XIII, assim como o seu xará do século XXI, reunia um amor pelos pobres, pela paz e pela natureza. Mas se a teologia do santo era nova, a do papa é tradicional. Além disso, ele tem tido o cuidado de localizar o seu texto com firmeza no corpo substancial de ensino estabelecido pelos papas anteriores, incluindo dois dos queridos pelos conservadores americanos, João Paulo II e Bento XVI.
Francisco também fez questão – altamente incomum – de fazer referência à pioneira ecoteologia da Igreja Ortodoxa, assim como citar nada menos que 18 documentos de Conferências Episcopais de todo o mundo. Tudo isso demonstra uma consciência aguda da importância da construção de alianças para uma questão tão importante. Com isso, ele estava dizendo aos críticos: “Vocês não estão lidando com apenas um homem aqui”.
Francisco teve um cuidado parecido no que diz respeito à ciência. O papa deveria se focar na religião e deixar a ciência para os cientistas, disse um conservador – o candidato presidencial republicano Rick Santorum – em uma de uma onda de críticas antes mesmo que a encíclica estivesse finalizada. Isso é exatamente o que Francisco fez ao aceitar o ponto de vista do 97% dos cientistas do clima, que dizem que a atividade humana é um dos principais fatores para o aquecimento global. A perspicácia política do papa também ficou clara pelo momento que ele escolheu para lançar o documento, de forma a atingir as três cúpulas das Nações Unidas relativa à cooperação financeira, ao desenvolvimento sustentável e às mudanças climáticas no final deste ano.
Mas há algo mais profundamente subversivo em Laudato Si’ do que o que ela diz sobre as alterações no clima. No dia em que foi publicada, em privado o papa falou a seus assessores mais próximos em Roma que a encíclica não era, na verdade, um documento ambiental. O aquecimento global é apenas um sintoma de um mal-estar mais profundo.
O verdadeiro problema, insiste ele, é a mentalidade (a lógica) míope que não foi capaz de enfrentar as mudanças climáticas até o momento. A indiferença dos países ricos para com a espoliação do meio ambiente em busca de ganho econômico de curto prazo tem origem num problema mais amplo. A economia de mercado tem-nos ensinado que o mundo é um recurso a ser manipulado para o nosso ganho financeiro.
Isto nos conduziu a sistemas econômicos injustos e exploradores que sustentam o que Francisco chama de “uma cultura descarte”, uma cultura que trata não apenas as coisas indesejáveis, mas também as pessoas indesejáveis – os pobres, os idosos e os nascituros – como resíduos.
O capitalismo pode maximizar as nossas escolhas, observa o pontífice, mas ele não oferece orientação sobre como devemos escolher. Este consumismo insaciável tem cegado a nossa visão, deixando-nos incapazes de distinguir entre o que precisamos e o que apenas queremos.
É nesta análise em que residem as respostas do papa a seus críticos conservadores. O capitalismo pode ter tirado milhões de pessoas da pobreza, mas o fez a um custo enorme. Isso fica demonstrado pela poluição catastrófica do ar na China, que substituiu os Estados Unidos como o maior emissor mundial de gases do efeito estufa. Pior do que isso: o capitalismo mal regulado no sul global tem deixado para trás milhões de pessoas – os mais fracos e os mais pobres.
As soluções tecnológicas muitas vezes apenas alteram o problema – sem realmente resolvê-lo, diz o papa. Seus críticos têm dito que o gás advindo do faturamento hidráulico é menos poluente do que a queima de carvão. Mas isso é como defender a dieta comendo biscoitos com gordura reduzida. O comércio de carbono, diz Francisco, pode apenas incentivar a especulação [financeira] – e o consumo excessivo.
A questão da população é também uma pista falsa, insiste o pontífice. As pessoas pobres quase não contribuem para o aquecimento global, de acordo com um dos principais assessores de ciência do papa, Hans Joachim Schellnhuber, do Instituto Potsdam para Pesquisa sobre o Impacto Climático. Um corte de 10% nas emissões de gases de efeito estufa dos países ricos, diz ele, seria muito mais eficaz no combate ao aquecimento global do que qualquer programa de controle de natalidade.
Em tudo isso, o mercado nos enganou confundindo avanço tecnológico com progresso. Ele reduziu a política à maximização de nossa liberdade e escolha individual. Nós nos esquecemos do bem comum assim como da nossa casa comum, a Terra.
Francisco está dizendo que a crise ambiental é realmente uma crise do capitalismo laissez-faire. Ele está dizendo que a resposta é uma profunda transformação em todos os níveis – político, econômico, social, comunitário, familiar e pessoal. Isto não é marxismo, pois carece de uma visão materialista da história. Mas é revolucionário – e profundamente perturbador para aqueles com um interesse no status quo.
Papas anteriores falaram corajosamente sobre a degradação ambiental, mas esta era principalmente uma questão secundária. Para Francisco ela é central. Ele é o primeiro papa vindo do sul global, e desde o início vem pedindo por uma “uma Igreja pobre para os pobres”. Ele não tem medo de repreender os políticos do mundo por estarem mantendo uma liderança “fraca”. Mas ele também entra no âmago da questão a ponto de dizer aos católicos comuns que usem menos aquecedores e aparelhos de ar-condicionado, classifiquem e reciclem o lixo, usem ônibus ou carros compartilhados e desliguem as luzes desnecessárias.
Os ecologistas vêm dizendo estas coisas há décadas, mas Francisco está indo a nível mais profundo da psique humana. Estes “simples gestos cotidianos”, diz ele, irá “[quebrar] a lógica da violência, da exploração, do egoísmo”. Ele pede a “cada pessoa que habita neste planeta” para se pôr diante de Deus, ou em nossas próprias consciências, e sermos honestos com nós mesmos sobre o estilo de vida consumista a que muitos de nós estão escravizados.
Francisco sabe que se as consciências dos católicos comuns puderem ser tocadas, eles talvez começarão a ajustar as suas escolhas de vida – e isso pode criar uma pressão para a ação política. Os céticos das mudanças climáticas poderão bem achar que, em Francisco, eles encontram o seu adversário mais formidável.
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O voto ecológico do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU