Por: André | 30 Junho 2015
“Carrego a esquerda tatuada nas entranhas com orgulho e me reconheço nela, mas, talvez por isso, conheço bem suas misérias e, sobretudo, suas incapacidades”, diz Pablo Iglesias em artigo publicado por El País, 28-06-2015. A tradução é de André Langer.
Pablo Iglesias é secretário-geral do Podemos e professor de Ciência Política.
Eis o artigo.
Cresci em uma família com memória, na qual a minha avó nunca deixou de me falar sobre o fuzilamento de seu irmão, socialista, em 1939. Sou neto de um condenado à morte, também socialista, cuja pena foi finalmente comutada por 30 anos de prisão, dos quais cumpriu cinco. Meus pais foram militantes comunistas quando na época em que isso era um crime na Espanha e meu pai conheceu Carabanchel por distribuir propaganda. Nas minhas primeiras lembranças de infância me vejo tomado pelas mãos de meus pais nas manifestações anti-OTAN e nos comícios da Esquerda Unida em Soria, em 1986, quando meu pai foi candidato ao Congresso por essa Província (pode-se imaginar o resultado).
Com 14 anos, entrei na juventude comunista e militei durante anos no movimento estudantil e nos movimentos contra a globalização e a guerra. Quando terminei o doutorado e ganhei um posto de professor fui um desses docentes heterodoxos que vão a manifestações com os estudantes e que incluem autores marxistas na bibliografia. Ao contrário da maioria dos cidadãos do meu país, sei de memória ‘A Internacional’. Carrego a esquerda tatuada nas entranhas com orgulho e me reconheço nela, mas, talvez por isso, conheço bem suas misérias e, sobretudo, suas incapacidades.
Na política, a forma e o tom contam tanto ou mais que o fundo, e numa recente entrevista me equivoquei na forma e no tom, ofendendo muitas pessoas. Peço-lhes perdão, mas peço-lhes também que atendam ao conteúdo que, com melhor tom e forma, exponho aqui.
Perry Anderson escreveu que o único ponto de partida concebível hoje para uma esquerda realista é tomar consciência de sua derrota histórica. Na Espanha, o fracasso da esquerda comunista foi constatado após a transição democrática. A realidade socioeconômica da época (tão bem antecipada por aquele “cabeça-oca” chamado Fernando Claudín), o peso cultural dos meios de comunicação e a conjuntura internacional já não revelavam a impossibilidade da revolução e do socialismo, mas enormes limites para as possibilidades de êxito eleitoral dessa esquerda. O fracasso de Mitterrand e seu programa comum na França, assim como o compromisso histórico com a Democracia Cristã do PCI na Itália, assinalaram bem os limites das referências que o nosso Partido Comunista tomou.
Muita água passou por debaixo da ponte desde aquela época e hoje assistimos à possibilidade de alterar o mapa político na Espanha em uma direção transformadora. Mas isso não tem nada a ver com a esquerda. A esquerda segue social e culturalmente escanteada. A chave do momento excepcional que vivemos está na politização da frustração de expectativas dos setores médios, diante do seu progressivo empobrecimento. Se o 15M serviu para algo foi para expressar esta frustração. O 15M assinalou os ingredientes de uma possibilidade impugnatória caracterizada pela recusa das elites políticas e econômicas dominantes, mas esse novo senso comum resultava inapreensível sob as categorias esquerda-direita; algo que os chefes da esquerda política não aceitaram.
Mesmos que o PP tenha ganhado as eleições de 2011, já naquela época ser percebiam elementos de crise no sistema partidário. Antes da nossa irrupção, as pesquisas assinalavam a diminuição dos apoios eleitorais do PP e do PSOE. Diante da nova conjuntura, a Esquerda Unida teve sua oportunidade; teria bastado simplesmente seguir o exemplo da AGE (Alternativa da Esquerda Galega) na Galícia. Mas não a aproveitou.
Quando decidimos lançar o Podemos pensávamos que devíamos colaborar com a esquerda. Por isso, propusemos à Esquerda Unida e a outras forças para fazer primárias abertas conjuntas. Acreditávamos que essa metodologia poderia ser um estimulante; tratava-se de que a esquerda se parecesse um pouquinho mais com as pessoas. Ignorávamos então que a arrogância com que a nossa proposta foi recebida nos daria a oportunidade de chegar muito longe. Seguimos em frente sozinhos e graças a isso não nos vimos obrigados a fazer concessões às formas conservadoras da esquerda. Graças ao fato de que a esquerda não quis nos ouvir pudemos colocar em prática a nossa hipótese: que a geografia que separa os campos políticos entre esquerda e direita fazia com que a mudança, em um sentido progressista, não fosse possível.
No terreno simbólico esquerda-direita, os que defendem, como nós, uma política de defesa dos direitos humanos, da soberania, dos direitos sociais e das políticas redistributivas, não têm nenhuma possibilidade de ganhar eleitoralmente. Quando o adversário, seja o PP ou o PSOE, nos chama de esquerda radical e nos identifica com seus símbolos, nos leva ao terreno no qual sua vitória é mais fácil. Na política, quem escolhe o terreno de disputa condiciona o resultado, e foi isso que procuramos fazer. Quando insistimos em falar de despejos, corrupção e desigualdade e resistimos entrar no debate Monarquia-República, por exemplo, não significa que nos tenhamos tornado moderados ou que abandonamos princípios, mas que assumimos que o tabuleiro político não é definido por nós.
As profundas mudanças políticas (que implicam sempre em ganhar o poder institucional) só são possíveis em momentos excepcionais como este que atravessamos, mas requerem estratégias precisas. Nós traçamos a nossa em Vistalegre. Respeitamos as estratégias de outros companheiros, mas não nos situaremos em terrenos que nos afastem de uma maioria popular que não é de “esquerda” (como, talvez, gostaríamos), mas que quer a mudança.
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Esquerda. Artigo de Pablo Iglesias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU