30 Junho 2015
A publicação da encíclica do papa Francisco repercutiu no mundo inteiro. Não por acaso: é a primeira vez que um papa dedica um documento dessa importância ao tema da ecologia. Para escrever as 190 páginas de Laudato Si, o papa se consultou com cientistas, ativistas e movimentos sociais do mundo inteiro. Uma das pessoas que contribuíram é o bispo do Xingu, Dom Erwin Kräutler. Dom Erwin atua na Amazônia, com sede em Altamira (PA), na defesa de povos indígenas e comunidades locais. Sua militância social e ecológica fizeram dele alvo de ameaças de pistoleiros da região. "Descrevi ao Papa Francisco a realidade da Amazônia e as condições em que vivem os seus povos", disse o bispo. Em entrevista por e-mail, dom Erwin falou sobre a encíclica e sobre como a defesa do meio ambiente passará a ser parte do engajamento da vida dos católicos.
A entrevista é de Bruno Calixto, publicada pela revista Época, 26-06-2015.
Eis a entrevista.
Como a Igreja no Brasil vai trabalhar a nova encíclica do papa?
Sem dúvida haverá uma série de seminários e encontros em todos os níveis para estudar a encíclica e analisar como essa carta do papa pode ser aplicada no chão concreto de nossa realidade. Já está sendo divulgado todo tipo de subsídio, guia de leitura, vídeo do Youtube e outros auxílios didáticos para uma leitura proveitosa do documento papal. Aliás, o estilo literário da encíclica é de fácil “digestão”. Para ler Laudato Si não precisa ser universitário ou doutor. Também o povo simples e de grau mais modesto de escolaridade conseguirá entender o que o papa quer dizer.
O senhor acredita que essa encíclica poderá influenciar no trabalho do dia a dia nas comunidades da Amazônia?
Tenho certeza de que as comunidades da Amazônia são muito gratas ao papa. Já no primeiro capítulo ele se refere aos problemas da região e exige um cuidado todo especial com esse gigantesco bioma. Creio que as palavras de Francisco se tornarão referência especial nos encontros comunitários e devem incentivar os movimentos que lutam em defesa da Amazônia. Penso nas diversas organizações no âmbito da Igreja, mas também em outros movimentos e iniciativas fora da Igreja Católica que há décadas lutam contra a destruição da floresta tropical e o inescrupuloso assalto às riquezas naturais sem preocupar-se minimamente com as futuras gerações. Quem não se sente apoiado no seu engajamento em favor da Amazônia quando lê as palavras do papa? “É louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais".
O texto da encíclica indica que o papa busca colocar o homem em harmonia com a natureza e rejeita a ideia de que o homem deve "dominar a Terra" (uma interpretação que algumas pessoas fazem do livro do Gênesis). O senhor acha que é possível colocar em prática essa nova interpretação?
Deus não concedeu aos homens um poder absoluto sobre a criação, um alvará irrestrito para agredir e explorar a natureza. A tradução do versículo do Gênesis que fala em "dominar a terra" é equivocada e deu origem a interpretações distorcidas. O texto original em hebraico, traduzido ao pé da letra, é "colocar o pé sobre a terra". Isso quer dizer que Deus confia toda a criação à responsabilidade humana para ser cuidada, zelada, protegida. No parágrafo 66 da encíclica o papa explica que Deus deu um preceito de “cultivar e guardar” a Terra, como aliás menciona o Gênesis: “O Senhor tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e guardar”. Interessante é que essa visão de harmonia de que o papa fala no mesmo parágrafo coincide com o entendimento que os povos indígenas andinos conservam desde tempos imemoriais quando falam do Sumak Kawsay, o "Bem Viver": existe um ser supremo que criou todas as coisas e por isso deve ser amado e respeitado. Esta consciência faz o homem e a mulher viver em paz consigo mesmo e em harmonia com os irmãos e irmãs e ao mesmo tempo com todos os seres criados, com o mundo que nos circunda.
Como colocar em prática? Primeiro precisamos “tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo“, como diz a encíclica. É necessário começar a questionar nossas atitudes dominadoras e exploradoras e, em nível municipal, estadual e federal, adotar políticas de respeito e carinho para com a natureza. O papa Paulo VI dirigiu já em novembro de 1970 uma mensagem à FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e disse: “O homem gastou milênios para aprender a submeter a natureza, a dominar a terra. Agora soou a hora de ele dominar o seu próprio domínio”. Estou convicto de que a educação ambiental deve começar no seio da família e ter um lugar proeminente na formação escolar.
No ano passado, o senhor me disse que levou quatro temas ao papa: acesso a eucaristia na Amazônia, questão indígena, ecologia humana e sobre o povo do Xingu. Essas preocupações estão presentes na encíclica?
Naquela inesquecível audiência, descrevi ao papa Francisco a realidade da Amazônia e as condições em que vivem os seus povos. Referi-me primeiro às nossas comunidades e lamentei que, por causa da acentuada escassez de padres, a população só tem acesso à eucaristia algumas vezes ao ano. Falei dos povos indígenas e entreguei-lhe uma mensagem do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), previamente redigida, chamando a atenção para os diversos pontos do documento. Disse a ele que os povos indígenas só sobreviverão física e culturalmente se permanecerem em suas terras, que hoje são ameaçadas pelos grandes projetos governamentais, pelas empresas mineradoras e madeireiras e pelo agronegócio. Aí o papa me revelou que estava escrevendo uma encíclica sobre a ecologia. Insisti logo que num documento dessa envergadura não poderia faltar uma clara referência à Amazônia e aos povos indígenas. O papa recomendou-me então que enviasse ao cardeal Turkson alguma contribuição minha nesse sentido o que, voltando ao Brasil, imediatamente fiz.
Ao ler agora a encíclica deparo-me com vários pontos em que é bem notório que o papa levou em conta os nossos anseios e angústias e demonstra claramente que os assumiu como suas próprias preocupações. No número 38, por exemplo, falou sobre a importância da Amazônia “para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade” e acrescentou que “quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos”. No número 146 refere-se explicitamente aos povos indígenas dizendo que é “indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura".
Algumas críticas dizem que a encíclica é "antitecnologia", porque ela condena o poder que a tecnologia nos dá ou dá às empresas. O senhor concorda com essas críticas?
Quem fala desse jeito ou só leu a encíclica de maneira superficial ou então de modo preconceituoso e vai na onda do Jeb Bush, pré-candidato à presidência dos EUA pelo Partido Republicano. Unem-se a políticos conservadores e empresários que consideram o papa liberal demais por causa de sua abertura a questões sociais e sua repetida crítica a um capitalismo selvagem gerador de miséria e exclusão social. Chegam até ao despropósito de chamar Francisco de “papa marxista”. Querem confinar o papa na sacristia da Basílica de São Pedro no Vaticano. Só aceitam que fale sobre questões internas da Igreja, sobre liturgia e sacramentos e negam-lhe o direito de opinar e tomar posição em relação a assuntos de ordem social, política e econômica. Isso é um absurdo. O papa em nenhum momento se declara contra a tecnologia e os avanços da ciência em nosso tempo. O que ele condena, com toda a razão, é “a submissão da política à tecnologia e à finança“ e lamenta que “há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum". Quem vai negar isso?!
O que muda para cada católico após a encíclica?
O que muda para as e os fiéis da Igreja Católica é que daqui para frente a questão ecológica faz definitivamente parte de nosso engajamento. Ninguém mais pode afirmar que lutar em favor do meio ambiente, que é o lar que Deus nos confiou, é prerrogativa de algum partido político. Ao professarmos a nossa fé em “Deus Pai, Criador do céu e da terra”, declaramos nossa missão de zelar por esse mundo, inclusive em vista das futuras gerações, como o papa diz no número 78 da encíclica: “Se reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder".
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Dom Erwin Kräutler: "As palavras do papa incentivarão a defesa da Amazônia" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU