23 Junho 2015
Em Roma, na manifestação de domingo contra o gênero, viu-se o sinal de uma lacuna, de uma sutil linha de fratura, de uma impaciência que as hierarquias eclesiásticas dificilmente poderão ignorar.
A opinião é do jornalista e apresentador italiano Pierluigi Battista, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 21-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Desta vez, o mundo laico não pode reclamar, como de costume, das ingerências vaticanas, das intromissões da Igreja, do confessionalismo das hierarquias. Uma manifestação tão maciça como se viu no domingo, em Roma, contra "a ideologia gender", indicada como tirânica manipulação da natureza e dos próprios fundamentos humanos da sociedade, fez com que explodisse um sentimento escondido de uma parte consistente do mundo católico, mas sem inputs de cima, sem a mobilização partida dos púlpitos.
É a antítese daquilo que aconteceu na Irlanda com o referendo sobre os casamentos gays. Lá, na ausência de uma massiva participação do episcopado de Dublin, o eleitorado católico desobedeceu, expressando-se a favor. Aqui, na cidade que é o lugar simbólico onde o vigário de Cristo também é o bispo de Roma, as ruas se encheram de católicos que manifestaram o seu desespero cultural por uma forma de ver as coisas, o demonizado "gender", que, na sua opinião, erradica a humanidade de si mesma.
É a primeira vez que isso acontece na era do Papa Francisco. É a primeira vez que o sexo, o gênero, aquilo que é homem e aquilo que é mulher, o próprio ato da união carnal da qual brota a procriação entra plenamente nos "valores inegociáveis", naquela esfera de escolhas que diz respeito às questões primeiras e últimas da vida e da morte.
É a primeira vez que a praça é mobilizada e lotada não simplesmente por causa daquilo que é chamado de "união entre casais do mesmo sexo", mas em uma esfera de interrogações que têm a ver com a cultura, com a concepção do mundo, com a própria ideia da natureza.
É um campo sobre o qual o Papa Francisco decidiu não intervir com força. Certamente, não para renunciar dos fundamentos da visão cristã das coisas, mas para não agravar a conflitualidade com o mundo secular. A Igreja "enfermaria" do Papa Francisco não quer fazer outros feridos, não quer cavar trincheiras contra o espírito do tempo, não quer desencadear uma guerra santa contra o desvio secularista.
A manifestação desse domingo, ao contrário, sim. Foi a expressão de um fronte da rejeição que é mais extenso do que a mídia é capaz de imaginar. Foi o renascimento de um movimento de guerra cultural contra a modernidade que parecia ter se apagado com o novo papado. Eis a outra diferença com movimentos como o francês "Manif pour tous".
Naquele caso, o episcopado francês pisou no acelerador do protesto, sancionou a harmonia entre um sentimento generalizado e as instituições responsáveis pela arregimentação do mundo católico. Aqui em Roma, viu-se o sinal de uma lacuna, de uma sutil linha de fratura, de uma impaciência que as hierarquias eclesiásticas dificilmente poderão ignorar.
Esse é o verdadeiro sinal de alerta para o mundo laico, ou ao menos para aquela parte da opinião pública que considera indispensável o reconhecimento das proteções e do direito para os casais do mesmo sexo que querem se unir civilmente, sem discriminações.
A guerra cultural, ao contrário, estava na base da ação do cardeal Camillo Ruini, quando dirigia o episcopado italiano. Ele a chamava de "projeto cultural" e queria reiterar a ideia de que o cristianismo não devia ser vivido só no isolamento das consciências, na dimensão privada, mas também impôr os seus valores culturais na arena pública.
A batalha sobre os "valores inegociáveis" tinha essa base: a guerra contra o aborto, contra a fecundação assistida, pela defesa do embrião, pela rejeição da eutanásia. Todos temas que tocavam diretamente a esfera da vida e da morte ou, melhor, da intervenção humana na origem da vida e no seu fim, o protesto contra uma tecnociência que queria tomar com prepotência o lugar do Criador na determinação da vida e da morte.
Mas a ação de Ruini tinha diretamente o apoio de dois pontífices: João Paulo II (que já no início dos anos 1980 apoiou a mobilização católica no referendo depois perdido, sobre o aborto) e, depois, o Papa Ratzinger. Hoje, tudo é diferente. Uma parte do mundo católico faz por conta própria, lota as ruas sem um mandato eclesiástico, fornecendo uma imagem de si implicitamente polêmica em relação à atitude "acomodante" do Papa Bergoglio.
E faz isso sobre um tema, o do "gênero", que agora, na sensibilidade do mundo moderno e de uma parte mesma do universo católico, como aconteceu na Irlanda, foi assimilado sem mais traumas e crises de rejeição.
A ideia de que o mundo católico manifeste, como no domingo, uma sensibilidade exasperada e ressentida sobre uma visão filosófica do mundo, considerada, porém, essencial para a integridade da fé, é uma novidade que todos nós dificilmente considerávamos tão sentida e central.
No catolicismo italiano, abriu-se uma fenda profunda que chega direto ao coração das instituições eclesiásticas. A manifestação antigender, ao mesmo tempo, é um pesadelo e um aviso. A fonte de um novo e imprevisto conflito. O mundo laico não pode dormir tranquilo.
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Rejeição ao gênero e uniões gays redescobrem as ruas. Artigo de Pierluigi Battista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU