Por: André | 23 Junho 2015
“O verdadeiro humanismo é aquele que vai dizer que eu reconheço em todo ser vivo ao mesmo tempo um ser semelhante e diferente de mim”, afirma Edgar Morin (1).
A entrevista é de Antoine Peillon e Isabelle de Gaulmyn e publicada por La Croix, 21-06-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Você não hesitou, após sua leitura, em qualificar a Encíclica Laudato Si’ de providencial. O que quer dizer?
Providencial, não no sentido da divina providência! Mas nós vivemos uma época de deserto do pensamento, um pensamento fragmentado em que os partidos que se dizem ecologistas não tem nenhuma real visão da magnitude e da complexidade do problema, em que perdem de vista o interesse daquilo que o Papa Francisco, numa maravilhosa fórmula retomada de Gorbatchev, chama de “casa comum”. No entanto, esta preocupação com uma visão complexa, global, no sentido de que é preciso tratar as relações entre cada parte, sempre me animou (2).
Neste “deserto” atual, pois, eis que surgiu esse texto que vejo bem estruturado, e que responde a esta complexidade! Francisco definiu a “ecologia integral”, que não é, sobretudo, esta ecologia profunda que pretende converter ao culto da Terra e subordinar tudo a ela. Ele mostra que a ecologia toca profundamente as nossas vidas, a nossa civilização, os nossos modos de agir, nossos pensamentos.
Mais profundamente, ele critica um paradigma “tecnoeconômico”, esta maneira de pensar que ordena todos os nossos discursos e que os torna obrigatoriamente fiéis aos postulados técnicos e econômicos para tudo solucionar. Com esse texto, há ao mesmo tempo um apelo par a tomada de consciência, uma incitação a repensar a nossa sociedade e a agir. Esse é o sentido de providencial: um texto inesperado e que mostra o caminho.
Você encontra no texto uma perspectiva humanista da ecologia?
Sim, porque através desta noção de ecologia integral, a encíclica convida a ter em conta todas as lições desta crise ecológica. Mas também com a condição de precisar a noção de humanismo, que tem um duplo sentido. Na verdade, é o que Francisco disse em seu discurso. Ele critica uma forma de antropocentrismo.
Existe, com efeito, um humanismo antropocêntrico, que coloca o homem no centro do universo, que faz do homem o único sujeito do universo; em suma, onde o homem se situa no lugar de Deus. Eu não sou crente, mas penso que esse papel divino que se atribui, às vezes, ao homem é absolutamente insensato.
E, uma vez que nos encontramos nesse princípio antropocêntrico, a missão do homem, muito claramente formulada por Descartes, é conquistar a natureza e dominá-la. O mundo da natureza tornou-se um mundo de objetos. O verdadeiro humanismo é, ao contrário, aquele que vai dizer que eu reconheço em todo ser vivo ao mesmo tempo um ser semelhante e diferente de mim.
Você fez sua esta invocação de Francisco de Assis, retomada pelo papa, que fala do irmão Sol, que implica uma forma de fraternidade com o que os cristãos chamam de Criação?
O papa teve a sorte de encontrar no cristianismo São Francisco de Assis! Porque se não tivesse sido isso, teríamos poucas referências...
Hoje, nós sabemos que temos em nós células que se multiplicaram desde as origens da vida, que elas nos constituem como qualquer ser vivo... Se remontarmos à história do universo, nós nos daremos conta de que carregamos em nós todo o cosmos, e isso de uma maneira singular.
Há uma profunda solidariedade com a natureza, embora sejamos diferentes, pela consciência, pela cultura... Mas, apesar de sermos diferentes, somos todos filhos do Sol. O verdadeiro problema não é nos reduzirmos ao estado da natureza, mas não nos separarmos do estado de natureza.
O Santo Padre é levado a encontrar na Bíblia um certo número de elementos que justificam sua abordagem. Mas eu penso, ao contrário, que a Bíblia narra uma criação do homem totalmente separada dos animais, e que ela começou a gerar este pensamento antropocêntrico, que a mensagem de Paulo continuou, separando o destino pós-morte dos humanos dos outros seres vivos. Esta concepção separa, na minha opinião, a civilização judaico-cristã das outras grandes civilizações.
Mas justamente na Encíclica Laudato Si’ o Papa dá uma interpretação oposta do Gênesis...
É verdade, podemos muito bem fazer interpretações cosmogênicas do Gênesis, especialmente porque “Elohim”, que é o Deus do Gênesis, é um plural singular: ele é uno e múltiplo. Também podemos encontrar nele uma espécie de turbilhão criador. É verdade também que, no Gênesis, está escrito que no princípio Elohim separa o céu da Terra.
Essa também é uma ideia interessante, porque para que haja um universo é preciso uma separação entre os tempos (passado, presente e futuro) e o espaço (aqui e lá). Mas, minha concepção, que se situa na esteira de Spinoza, repousa sobre a capacidade criadora da natureza. Eu creio que a criatividade não parte de um criador inicial, mas de um evento inicial.
Você conhece bem a América Latina. Você tem o sentimento de que a reflexão de Francisco é tributária da cultura argentina?
Sim, com certeza. O que sempre me impressionou é sentir na América Latina, de modo geral, uma vitalidade, uma capacidade de iniciativa que não encontramos aqui [na Europa]. Na encíclica, por exemplo, eu encontro esse sentido da pobreza, tão forte nesse continente.
Na Europa, nós esquecemos completamente os pobres, nós os marginalizamos. Mas também na encíclica o conceito de pobreza está vivo, como as manifestações do Movimento dos Sem Terra ou do povo, no Brasil.
Enfim, é verdade que a Argentina, que conheceu tantas provações, que foi obrigada a pagar sua dívida porque estava falida, é um país em que há uma vitalidade democrática extraordinária. Eu não diria que é um milagre, mas foi necessário que um papa viesse de lá, com esta experiência humana.
É um papa impregnado por esta cultura andina que opõe ao “bem estar”, exclusivamente materialista europeu, o “bem viver”, que é desenvolvimento pessoal e comunitário autêntico. A mensagem pontifical apela para uma mudança, para uma nova civilização, e sou bem sensível a isso. Essa mensagem é, talvez, o ato número 1 para uma nova civilização.
Para além desta encíclica, como você vê a contribuição das religiões na nossa sociedade?
Todos os esforços para acabar com as religiões fracassaram completamente. As religiões são realidades antropológicas. O cristianismo conheceu uma contradição entre alguns de seus desenvolvimentos históricos e sua mensagem inicial, evangélica, que é o amor dos humildes. Mas, depois que a Igreja perdeu seu monopólio político, uma parte dela encontrou novamente a sua fonte evangélica.
A última encíclica é uma completa refontalização evangélica. Os cristãos, quando animados pela fonte da sua fé, são tipicamente pessoas de boa vontade, que pensam no bem comum. A fé pode ser uma salvaguarda contra a corrupção de políticos ou de administradores. A fé pode dar coragem.
Se, hoje, numa época de virulência, as religiões voltassem à sua mensagem inicial – em particular o islã, onde Alá é o Clemente e o Misericordioso –, elas seriam capazes de se compreender. Hoje, para salvar o planeta, que está verdadeiramente ameaçado, a contribuição das religiões é bem vinda. Esta encíclica é uma brilhante manifestação disso.
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Um renomado sociólogo
Nascido em 1921, Edgar Morin é um renomado sociólogo e filósofo, mundialmente conhecido, diretor de pesquisa emérito do CNRS, Doutor Honoris Causa de 27 universidades de todo o mundo. Membro da resistência durante a guerra e comunista, ele, no entanto, se afasta do partido em 1948. Entre 1969 e 1970 morou na Califórnia, nos Estados Unidos, onde ele acorda para a questão ecológica.
Em O paradigma perdido: a natureza humana, publicado em 1973, ele explica que o homem não é o senhor da natureza, mas seu parceiro e que é tanto a natureza que se impõe ao homem como o contrário. Sua obra fundamental, O Método, faz da noção até então vaga de “complexidade” uma importante realidade.
Ele é o autor de uma obra traduzida para mais de 30 línguas e publicada em 42 países, que compreende quase 80 livros e uma dúzia de filmes.
Notas:
(1) Último livro publicado: L’Aventure de “La Méthode” (A Aventura de “O Método”). Seuil, 176 p., 18 euros.
(2) Ver especialmente de Edgar Morin, com Anne-Brigitte Kern, Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 2011.
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“A Laudato Si’ é, talvez, o ato número 1 de um apelo para uma nova civilização”. Entrevista com Edgar Morin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU