19 Junho 2015
Mudar no catolicismo pode ser uma coisa curiosa, com a carta encíclica muito esperada do Papa Francisco sobre o meio ambiente, Laudato Si’, sendo a mais recente ilustração disso – e não apenas porque um rascunho seu vazou na imprensa italiana três dias antes de sua publicação oficial.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 18-06-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Aos não familiarizados com o assunto, grandes transições na Igreja Católica muitas vezes parecem irromper do nada, na sequência de um longo período em que a Igreja parece ter estado paralisada no tempo. Tal foi o caso, por exemplo, com o Concílio Vaticano II, em meados da década de 1960, que lançou o catolicismo em um curso de modernização e reforma.
Olhando retrospectivamente, no entanto, podemos ver que alguns tremores se fazem visíveis antes mesmo que um terremoto de fato aconteça.
Isso é bem verdade em se tratando da encíclica Laudato Si’, apresentada nesta quinta-feira (18) em uma coletiva de imprensa no Vaticano, que contará com um clérigo ortodoxo oriental e um cientista secular especialista em mudanças climáticas. A doutora Carolyn Woo, presidente da Catholic Relief Services e ex-reitor da faculdade administração da Universidade de Notre Dame, foi também convidada para estar presente.
O documento Laudato Si’ parece destinado a entrar para a história como um importante ponto de inflexão, o momento em que o ambientalismo ficou em pé de igualdade com respeito à dignidade da vida humana e à justiça econômica, ao lado do ensinamento social católico. Sem dúvida, esta publicação também transforma imediatamente a Igreja Católica no principal representante moral na pressão dirigida se combater o aquecimento global e as consequências advindas das alterações climáticas.
Na verdade, porém, nada disso deveria ser surpresa para aqueles familiarizados com a doutrina católica oficial sobre o meio ambiente, tal como ele evoluiu ao longo do último meio século.
Quando a maré começou a virar
Não muito tempo atrás, a ideia de um ambientalismo católico foi recebida, por alguns, como uma contradição em termos.
Nas décadas de 1960 e 1970, era moda entre os pioneiros do movimento ambiental culpar a tradição judaico-cristã pela indiferença selvagem da humanidade para com a Terra. O professor Lynn White Jr., da Universidade da Califórnia, publicou um influente artigo na revista Science, em 1967, onde culpava a Bíblia por fazer os ocidentais se sentirem “superiores à natureza, desprezando-a, dispostos a usá-la segundo os nossos caprichos”.
Embora reconheça correntes contrárias na história cristã, como a de São Francisco de Assis – cujo famoso Cântico do Sol [ou “Cântico das Criaturas”] deu o título à nova encíclica –, White conclui com uma acusação rasteira: “Continuaremos a ter uma crise ecológica pior até que rejeitemos o axioma cristão de que a natureza não tem nenhuma razão para a existência, salvo a de servir ao homem”.
Se procurarmos um momento em que a maré começou a virar, esse momento pode estar atrelado a quatro anos depois que o ensaio de White foi publicado: a carta apostólica Octogesima Adveniens, de 1971, do Papa Paulo VI.
Emitido no 80º aniversário da Rerum Novarum – encíclica de 1891 do Papa Leão XIII, hoje vista como tendo lançado a tradição moderna do ensinamento social papal –, o documento de Paulo VI [Octogesima Adveniens] foi o primeiro texto a conter um parágrafo inteiro dedicado ao meio ambiente. Nele, Paulo VI usou uma linguagem muito parecida com aquela presente em Laudato Si’, e Francisco cita-o. “O ser humano começa a correr o risco de destruir [a natureza] e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação”, escreveu o Paulo VI. “O cristão deve voltar-se para estas percepções novas, para assumir a responsabilidade, juntamente com os outros homens, por um destino, na realidade, já comum”.
Um ano depois, Paulo VI enviava uma carta para uma cúpula ambiental reunida em Estocolmo na qual escreveu: “O cuidado de preservar e melhorar o ambiente natural (...) vai ao encontro das necessidades que são profundamente sentidas entre os homens do nosso tempo”. Ele advertiu contra “o avanço, muitas vezes cego e turbulento, do progresso material deixado ao seu próprio dinamismo”, insistindo que este progresso deve ser substituído pelo “respeito à biosfera (...) que se tornou ‘uma Terra’”.
João Paulo II e Bento XVI
O Papa João Paulo II jjcontinuou esta tradição de maneira significativa.
Em um discurso à Comissão Europeia e ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Estrasburgo, no ano de 1988, João Paulo II se referia a “um meio ambiente natural seguro e saudável” como um direito humano positivo, a par com os direitos positivos à saúde, à educação e a um padrão de vida decente.
João Paulo II também dedicou sua mensagem ao Dia Mundial da Paz de 1990 à “Paz com toda a Criação”.
“O gradual esgotamento da camada de ozônio e o consequente ‘efeito estufa’ que este provoca já atingiram dimensões críticas como consequência do crescimento industrial, das enormes concentrações urbanas e das necessidades energéticas grandemente aumentadas”, escreveu o pontífice polonês.
“Escórias industriais, gases produzidos pela combustão de carburantes fósseis, desflorestamento imoderado, uso de alguns tipos de herbicidas, refrigerantes e propelentes, tudo isto, como se sabe, é nocivo para a atmosfera e para o ambiente”, disse ele.
Em 2001, João Paulo II localizou o berço da crise ecológica no momento em que os seres humanos pararam de se considerar servos de um Deus-Criador, e em vez disso se colocaram como “déspotas autônomos”.
João Paulo disse que a pessoa humana, finalmente, parece estar “entendendo que ele deve finalmente parar diante do abismo”. Repetidamente ele convocou a humanidade a uma “conversão ecológica”, arrependendo-se pelos pecados infligidos à natureza.
Um compêndio de doutrina social católica emitido pelo Papa João Paulo II em 2004 endossava abertamente o “princípio da precaução”, em apoio a medidas imediatas de proteção ao meio ambiente.
O Papa Bento XVI, apelidado de o “Papa Verde” pela sua defesa do meio ambiente, tem um extenso histórico de palavras e ações ecologicamente sensíveis.
Em 28 de agosto de 2006, durante um discurso de Angelus, em Castel Gandolfo, residência de verão do papa, Bento XVI disse que “o grande dom de Deus” da criação “está exposto a sérios riscos por opções e estilos de vida que podem degradá-lo”.
“A degradação ambiental torna insustentável particularmente a existência dos pobres da terra”, disse ele. “Em diálogo com cristãos de várias confissões, precisamos empenhar-nos em cuidar da criação e partilhar seus recursos em solidariedade”.
Bento XVI sustentou esta retórica com ação. Ele aprovou a instalação de uma bateria de mais de 1 mil painéis solares no topo principal do salão de audiências do Vaticano, a fim de fornecer corrente elétrica, luz, aquecimento e refrigeração através da captação de energia solar.
Menos de um mês depois, o Vaticano anunciava que tinha assinado um acordo para se tornar o primeiro estado “neutro em carbono” na Europa. Com um acordo com a Planktos / KlimaFa, empresa internacional de ecorrestauração, uma “Floresta Ambiental Vaticana” foi criada no Parque Nacional Bükk, na Hungria, no intuito de compensar as emissões anuais de CO2 do Vaticano.
Ousando em outros níveis
Enquanto esta transformação do ensino papal se desenrolava, as conferências episcopais e outros líderes católicos ao redor do mundo tornavam-se, cada vez mais, ousados.
Em 2000, por exemplo, os bispos do Noroeste Pacífico – região que engloba parte dos Estados Unidos e do Canadá – emitiram uma carta pastoral defendendo a conservação da Bacia Hidrográfica do Rio Columbia.
Os seus princípios fundamentais incluíam a administração e o respeito pela natureza e o bem comum. Eles promoveram a ideia de se ter a criação como o sendo “livro da natureza”, uma fonte de revelação e discernimento teológico ao lado da Bíblia.
“O divisor de águas, visto através dos olhos vivos da fé, pode ser uma revelação da presença de Deus, uma ocasião de graça e de bênção”, escreveram eles. “Há muitos sinais da presença de Deus no livro da natureza, os sinais que complementam os entendimentos de Deus revelados nas páginas da Bíblia, seja nas escrituras hebraicas, seja nas escrituras cristãs”.
Nas Filipinas, em 2007, uma coalizão de ordens religiosas e ONGs católicas observou que um relatório do governo previa que nada menos de 25% da população de Manila poderia carecer de acesso à água potável num futuro próximo. Como resultado, o grupo anunciou planos para “dar abrigo” a candidatos políticos com posições favoráveis à problemática ambiental.
Em 2006, em um comunicado a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, juntamente com o seu homólogo protestante, declarou um “direito humano à água” e a um meio ambiente seguro. Ela manifestou também o apoio a alternativas comunitárias, contrariamente à privatização da água.
Proteger a floresta amazônica da destruição tornou-se, praticamente, uma cruzada nacional para a Igreja Católica no Brasil.
“A Igreja não é contra o desenvolvimento, mas opõe-se àquele desenvolvimento que priva as populações de seu futuro. Temos que nutrir um respeito pela natureza”, disse Dom Orani João Tempesta, de Belém, falando em nome da CNBB em fevereiro de 2007.
Um outro exemplo clássico latino-americano desta crescente corrente ecológica vem um documento de 2007 que os bispos desse continente adotaram em Aparecida-SP – documento não por coincidência escrito, em parte, pelo futuro Papa Francisco.
Uma seção inteira do documento [de Aparecida] é dedicada ao meio ambiente, até mesmo citando o cântico do século XIII composto por São Francisco de Assis a partir do qual o título Laudato Si’ foi tomado.
O “Documento de Aparecida”, como ficou conhecido, fala de uma crescente consciência da natureza como uma herança que a humanidade recebeu de Deus, que tem de ser protegida como um espaço para a vida humana compartilhada. Esta herança, adverte o documento, “muitas vezes se manifesta frágil e indefesa diante dos poderes econômicos e tecnológicos”.
O documento expressou gratidão a todos os que se dedicam à defesa da vida e do meio ambiente, e que uma importância especial tem de ser dada aos pequenos agricultores “que, com amor generoso, trabalham duramente a terra”, para “tirar o sustento para suas famílias e contribuir com todos os frutos da terra”.
Ele também abraçou a visão de que o aquecimento global e as mudanças climáticas resultam da atividade humana: “A região se vê afetada pelo aquecimento da terra e a mudança climática provocada principalmente pelo estilo de vida não sustentável dos países industrializados”, lê-se no documento.
“Tornando-se ecológico” na prática
Esses desenvolvimentos no ensinamento oficial tiveram consequências diretas em termos de prática pastoral.
Um exemplo é a Paróquia St. Joan of Arc, em Minneapolis, Minnesota. Esta paróquia formou uma “comissão de ecoespiritualidade” em 1997, com o objetivo declarado de “sensibilizar e mudar o comportamento em todas as relações com a terra, com suas criaturas e uns aos outros”.
Quando em 2000 se tomou a decisão de se remodelar o centro paroquial, este grupo trabalhou em cooperação no sentido de construir um projeto ecologicamente correto.
Como resultado, o novo centro paroquial reutilizou ou reciclou 80% dos materiais da antiga estrutura. Os construtores utilizaram produtos de madeira proveniente de florestas sustentáveis, pavimentos de cortiça da casca de carvalho, cadeiras de escritório feitas a partir de jarros de leite reciclados, escadas feitas de borracha de pneus reciclados, e soleiras feitos de soja, postagens indesejadas nas caixas de correios e jornais reciclados.
A terra em torno do centro foi ajardinado com espaço um verde expandido, com plantas nativas resistentes à seca, exigindo menos água. Além disso, contou com uma vegetação específica para incentivar a vida selvagem, contando com sombreamento estratégico para reduzir o consumo de energia e árvores recuperadas.
Um outro exemplo: consideremos a Paróquia St. Gabriel of the Sorrowful Virgin, no extremo norte de Toronto. Em 2006, esta paróquia completou uma renovação da igreja que custou 10,5 milhões de dólares americanos, de acordo com os padres passionistas que trabalham na paróquia, a “igreja mais verde no Canadá”.
A Paróquia St. Gabriel foi a primeira igreja no Canadá a receber a certificação de prata no programa Leadership in Energy and Environment Design, que exige uma redução de 40% no consumo de energia em comparação a uma igreja moderna construída para servir como base.
Um guia de ação ecumênica emitido em torno do mesmo período, destinado tanto a católicos quanto a protestantes (chamado “Greening of the Parish – Making the Congregation a Model for Environmental Justice”), ofereceu um check-list para aumentar a consciência ecológica, incluindo os seguintes itens:
• Adquirir artigos de papelaria 100% reciclados não advindos da derrubada de árvores.
• Montar o seu próprio centro de reciclagem de papel de escritório e lixo.
• Andar de bicicleta, caminhar ou pegar o transporte público sempre que possível.
• Reduzir o consumo de tintas.
• Reduzir o consumo de água. (Completar esta lista com esta dica: “Colocar um tijolo ou garrafa de água cheia dentro do tanque de descarga para reduzir o uso de água em cada uso.”)
“Pensar globalmente e agir localmente”. É, de fato, difícil de imaginar um exemplo melhor do que este encontrado nessa paróquia. O entusiasmo ambiental que toma forma dentro catolicismo está sendo registrado pelo público mais amplo.
Por exemplo, Sarah Taylor McFarland, pesquisadora não católica da Northwestern University, publicou um livro em 2007 chamado “Green Sisters”, documentando “a penetração e o significado de um movimento verde” entre as ordens religiosas femininas.
O livro introduz os leitores a irmãs que são contrárias a gramados cuidados manualmente ao redor de suas residências, preferindo criar jardins orgânicos usados pela comunidade; construir estruturas habitacionais alternativas e conventos com materiais renováveis; adotar tecnologia verde para banheiros de compostagem, com painéis solares, iluminação fluorescente e veículos híbridos; e transformar as suas propriedades comunitárias em locais comuns, sendo santuários para a vida selvagem.
Embora o livro de Taylor se concentre na América do Norte, o movimento que ela descreve é mundial.
Um artigo na edição de outubro de 2007 da revista Sierra Club intitulado “Padre Power”, ao documentar os esforços do clero católico na América Latina para defender a terra e o ambiente contra corporações multinacionais poderosas, ilustra também a conscientização crescente no mundo secular de que algo está se levantando dentro da Igreja. Marilyn Berlin Snell, autora do texto, chamou-lhe de um “movimento ecológico da libertação”.
Acolhida não completa
Com certeza, esta acolhida católica da causa ambiental não é completa.
Há destacados ecocéticos no rebanho católico, e também há muitos católicos pró-vida que se preocupam com as conexões entre a defesa secular do meio ambiente e a pressão por medidas de controle populacional, tais como o aborto e métodos contraceptivos.
O catolicismo tem uma diferença filosófica essencial com alguns dos elementos mais radicais do movimento verde, insistindo que há algo espiritual e moralmente singular a respeito da vida humana dentro do mundo criado.
Essas preocupações encontram lugar na encíclica Laudato Si’, o que significa que, assim como os pontífices que a precederam, Francisco, também, está pintando com um tom de verde distintivamente católico.
Sem dúvida, Laudato Si’ representa um importante passo na tradição católica, passo que, provavelmente, irá ecoar nos confins da Igreja. Se esta encíclica constitui um terremoto, ela é, no entanto, precedida por uma longa série de tremores teológicos e pastorais.
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Se “Laudato Si’” constitui um terremoto, muitos tremores o antecederam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU